3 de junho de 2005

Um plano B

O “Não” francês de domingo[1] tem de ser respeitado, precisamente na mesma medida que o “Sim” já decidido em outros países. Estes últimos não podem ver desprezada a sua vontade, só porque um grande Estado fundador decidiu, conjunturalmente, não aderir àquilo que o seu próprio governo negociou e aprovou. A vontade soberana dos que já se pronunciaram positivamente sobre o Tratado Constitucional, e dos que ainda irão pronunciar-se nesse mesmo sentido, deve ser tida em plena consideração, a menos que se entenda que a União Europeia não passa de uma farsa em que só a vontade de alguns deve prevalecer.

Não vale a pena, contudo, tapar o sol com uma peneira e fingir que este é um problema exclusivamente francês. Como disse o MNE português, “o resultado do referendo em França deve ser tido em conta pelos franceses, mas também por todos os Estados-membros”. Com efeito, o que se passou em França diz respeito a todos nós e, até por uma solidariedade europeia primária, temos que partilhar esse problema. Assim, e em lugar de se alimentar um angustiado sentimento de orfandade institucional, todos deveríamos empenhar-nos, desde já, na procura de soluções construtivas para um problema comum.

Vejamos uma hipótese de trabalho.

1. O processo de ratificação deve continuar nos países onde está previsto, na consciência de que o resultado do referendo francês vai ter efeitos noutras consultas, embora não necessariamente num sentido unívoco. Os governos que aprovaram o Tratado Constitucional devem continuar a empenhar-se na sua aprovação e, em particular, procurar desconstruir os aspectos do “Não” em França e noutros países que sejam relevantes para as preocupações das respectivas opiniões públicas e que possuam indiscutível legitimidade, à luz do espírito europeu. Quero com isto dizer que aspectos xenofóbicos e populistas por detrás da rejeição do Tratado devem merecer apenas a consideração táctica devida.

2. Terminado que seja o processo de ratificações, e avaliados os resultados no conjunto de países em que não tiver sido possível concluí-lo com sucesso, o Conselho Europeu poderia nomear um “grupo de reflexão” ou de “sábios” destinado exclusivamente a fazer uma inventariação e análise das razões que terão estado subjacentes às rejeições verificadas. Esse grupo, a ser presidido por uma personalidade da dimensão e autoridade de um Jacques Delors (mas nunca de um Valéry Giscard d’Estaing, por razões que julgo óbvias), proporia os termos de um Protocolo ou de um Acto Institucional complementar ao Tratado Constitucional, que pudesse aclarar os aspectos tidos por mais controversos ou ambíguos deste último e que ajudasse a responder a algumas das legítimas preocupações suscitadas nas opiniões públicas, em especial daquelas onde o Tratado houvesse sido rejeitado. Em qualquer dos casos, teria de ficar bem claro que não estaríamos a reabrir a negociação do Tratado. Não menorizo a dificuldade deste exercício, até porque os diversos “Não” encerrarão preocupações frequentemente contraditórias. Mas não devemos também desprezar o facto do sentimento europeu então prevalecente poder ter um efeito positivo sobre a vontade comum de chegar a um consenso.

3. O resultado do trabalho do “grupo de sábios” seria submetido, como é de regra, a uma Conferência Intergovernamental, cujos resultados teriam de ser ratificados por todos os Estados Membros. Para os países que já houvessem aprovado o Tratado, restaria apenas a ratificação do Protocolo ou Acto Institucional. Os que tivessem sofrido processos de rejeição, por referendo ou por votação parlamentar, submeteriam às suas opiniões públicas ou parlamentos, respectivamente, o novo “pacote”, isto é, o Tratado complementado com a nova figura institucional criada para responder também às suas próprias preocupações.

Dir-se-á que este processo pode ser longo (uma ratificação europeia demora, em média, 18 meses) e que nada garante que, no seu termo, venha a ter sucesso. Concedo que sim, mas ainda não vi mais nada no mercado das ideias e nunca é cedo demais para tê-las.
  




[1] Este texto surgiu no jornal “Público”, imediatamente após o referendo francês que recusou a Constituição Europeia. Uma parte das recomendações nele adiantadas deixou de ter sentido, em função dos factos supervenientes. Outra, porém, poderá manter alguma actualidade.