1 de setembro de 1999

Uma reforma indispensável?


O Conselho Europeu de Colónia, em Junho deste ano (1999), decidiu o lançamento de um processo de reforma das instituições comunitárias, a ser preparado durante a presidência finlandesa (2º semestre de 1999), a ser iniciado durante a presidência portuguesa (1º semestre de 2000) e a ser concluído durante a presidência francesa (2º semestre de 2000). Esta revisão limitar-se-á, no essencial, às questões da composição da Comissão Europeia, da reponderação dos votos no Conselho e à extensão do número de decisões a serem tomadas por maioria qualificada.

Foi, desta forma, dado cumprimento àquilo que havia ficado decidido no Protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão (os chamados “leftovers”), a que se juntou a pretensão de alguns Estados membros de rever uma vez mais a lista dos temas hoje ainda sujeitos a unanimidade.

Como é sabido, havia sido aceite em Amesterdão que uma nova reforma institucional deveria ter lugar antes do próximo alargamento, a qual é, por alguns Estados, considerada condição sine qua non para a entrada dos novos países na União.

Encontramo-nos assim, nos próximos meses, com uma tarefa de grande exigência à nossa frente, tanto mais que se sabe existirem grandes divergências entre os Estados quanto ao sentido final deste exercício.

Valerá a pena ser claro e começar por dizer que o título deste texto não é casual. Portugal sempre foi dos países que manifestou o seu cepticismo quanto à necessidade de se proceder a uma rearranjo das instituições que pudesse, de alguma forma, provocar substanciais desequilíbrios no actual sistema de representação de interesses no quadro da União. Durante a última Conferência Intergovernamental (1996/97), deixámos evidenciadas as nossas dúvidas quanto à necessidade imperativa de se tocar nos actuais padrões de representação dos Estados - em especial no que respeita aos votos no Conselho e ao modelo da Comissão.

Não estivemos sozinhos nesta posição e o que saiu - ou o que não saiu - de Amesterdão é o resultado da vontade conjugada de alguns Estados, de pequena e média dimensão, no sentido de procurarem resistir a pressões para diminuir a sua representação nas instâncias decisórias. Por outro lado, há que reconhecer que Amesterdão foi uma óbvia derrota para os maiores Estados, que não conseguiram fazer vingar a sua ideia de alargar, em termos do processo de decisão, a sua distância em relação a parceiros de inferior dimensão demográfica. Nessa altura, foi por muitos de nós dito que, para além das questões de eficácia que alimentavam o argumentário dos maiores países, havia que ter em conta um problema de aceitabilidade das mudanças perante as nossas próprias opiniões públicas. A próxima questão estará, a meu ver, em saber se as condições que não existiram em Amesterdão, e que inviabilizaram então um acordo neste domínio, se alteraram tão substancialmente de forma a torná-lo agora possível.

Nessa altura, estavam em cima da mesa duas ideias essenciais: reduzir a Comissão Europeia e dar mais votos no Conselho aos Estados com mais população. Vejamos cada uma dessas ideias separadamente.

A Comissão

No caso da Comissão, a ideia que foi avançada como mais radical, que era de origem francesa, assentava no pressuposto de que não haveria, na prática, mais do que 10 ou 12 verdadeiros pelouros e que, por essa razão, esse deveria ser o número máximo de Comissários. A Comissão Santer ajudou, algumas vezes, a alimentar esta ideia, ao falar igualmente na inexistência de um espectro de atribuições em termos de pelouros que pudesse ocupar os seus 20 Comissários.

Obviamente que a resposta a esta teoria está hoje dada pela própria Comissão Prodi, ao ter encontrado espaço de trabalho para 20 comissários e, ao que parece, sem que haja dúvidas de que terão tarefas suficientes para se ocuparem. À época, porém, a questão foi mais complicada de gerir e, como posição de recuo, aceitou-se a ideia de que se poderia considerar algum reforço do poder voto dos maiores Estados, desde que estes prescindissem de indicar dois comissários, como hoje acontece com a Alemanha, a Espanha, a França, a Itália e o Reino Unido. Para sermos claros: garantir a equidade dentro da Comissão teria, como “preço”, dar mais alguns votos aos Estados mais populosos.

Porém, este sistema só funcionaria até ao limite de 20 Estados membros, que o mesmo é dizer, até ao limite de 20 comissários, devendo ter lugar uma nova reforma a partir do momento em que outra fosse a perspectiva de dimensão da União. Para muitos observadores, a Comissão Europeia, ao colocar no chamado “primeiro grupo” dos candidatos alargamento precisamente seis países quis, desde logo, “forçar” a revisão mais alargada.

Valerá aqui fazer um parêntesis para sublinhar a incongruência deste “trade off”, que é totalmente contraditório com a ideia formal de que a Comissão é uma instituição independente dos Estados membros e que os comissários exercem os seus cargos “esquecendo” o país de onde são originários. Ao trocar votos por comissários está-se, na realidade, a assumir que o jogo do poder passa por ambas as vertentes, o que contradiz a teoria e torna mais cínica a prática.

Voltando ao que está em jogo, importa deixar evidente que a proposta original francesa, dos 10/12 comissários, está hoje completamente ultrapassada e que já nem mesmo Paris a defende. Por outro lado, parece criada na generalidade dos Estados membros a ideia clara de que não será viável a qualquer Estado vir a prescindir, num horizonte visível, da possibilidade de vir a indicar um membro para a Comissão Europeia.

Sendo assim, o que irá ser decidido na nova Conferência Intergovernamental quanto à Comissão? Embora não possamos estar a limitar a liberdade do exercício - e Portugal, enquanto presidência, terá naturalmente uma atitude neutral, que se distinguirá da posição nacional que defenderemos - a verdade é que não vislumbramos muito espaço de manobra no que toca à Comissão.

Eu deixaria mesmo algumas questões: alguém acha plausível que os cinco Estados membros que há escassos meses nomearam, cada um deles, os seus dois comissários, por um período de cinco anos, estão dispostos, a meio desse período, a prescindir de um deles ? Alguém acha que qualquer desses comissários está disposto a ceder o seu lugar, tendo em atenção que a sua designação foi feita, com o acordo do Parlamento Europeu, para o período total do mandato ? Alguém está seriamente convencido que alguma coisa vai mudar até ao termo de exercício destes novos comissários, em Junho de 2004?

Nestas condições, talvez valha a pena que nos interroguemos sobre o que se pretende extrair, nesta reforma, dos Estados que hoje têm, e apenas querem conservar, o seu único comissário.  O que ganhariam em troca de votos concedidos aos Estados mais populosos?

A reponderação dos votos

A revisão do poder de voto no Conselho é hoje tida, por alguns grandes Estados, como um passo essencial para a recuperação da sua posição no processo decisório onde, sendo afirmam, a maioria qualificada necessária para fazer aprovar legislação se obtém hoje com uma representação cada vez mais diminuta de população europeia.

Salvo melhor opinião, este raciocínio parte de pressupostos falseados.

O primeiro tem a ver com a circunstância de que não há, hoje em dia, uma relação, ainda que tendencial, entre o poder dos Estados no Conselho e as suas respectivas populações. Ou melhor, essa relação existe, grosso modo, para os pequenos e médios Estados, mas já deixa de existir para os “grandes”. Dou dois exemplos: Portugal e a Áustria têm, respectivamente, 5 e 4 votos, tendo entre si uma diferença de população de 1,5 milhões; a Alemanha e a Itália têm 10 votos cada, embora entre esses países haja uma diferença de 23 milhões de habitantes. Se se quer introduzir medidas de equidade, porque não começar por aqui ?

O segundo pressuposto que me parece não colher tem a ver com aquilo que poderíamos designar com o “sentido de agregação” dos votos no Conselho. As votações no Conselho não se fazem nunca - todos o sabem! - numa lógica de “grandes” contra “pequenos”. Jamais na história comunitária, como se pode provar, se registou, nem por uma única vez, uma conjugação dessa natureza. E porquê? Porque a agregação dos votos no Conselho, nomeadamente em matéria legislativa, tem muito mais a ver com a identidade de interesses dos Estados do que com a sua dimensão. Essa identidade de interesses é feita, essencialmente, à luz do grau de desenvolvimento dos Estados, que se reflecte nas suas opções em matéria de definição de padrões comunitários.

Quando estamos perante uma directiva ambiental, para dar um exemplo, é óbvio que a identidade entre as posições de uma Alemanha e de uma Suécia é muito maior da que existe entre a Suécia e Portugal. Com efeito, o grau de desenvolvimento da Suécia, onde os padrões ambientais são elevados e em que terão sido tomadas já, no passado, uma série de medidas que a directiva se limita a estender a outros Estados, tenderá a afastar, na altura da votação, esse país de Portugal, onde o atraso nesse domínio implicará novos investimentos (a tecnologia até pode ser sueca...), com repercussões financeiras sobre, por exemplo, as unidades produtivas, com impactes óbvios na competitividade dos respectivos produtos. Neste caso, como é evidente, a Suécia votará ao lado da Alemanha, que tem um grau de desenvolvimento ambiental similar, e nunca com países “médios”, como Portugal, que tem um desenvolvimento muito inferior neste domínio. Alguém pensa que, no futuro de uma União alargada, um país como o Luxemburgo vai votar alguma vez ao lado da Lituânia, contra a França ou o Reino Unido, só porque se trata de Estados de pequena dimensão?

Mas neste caso, perguntar-se-á, qual é a razão pela qual os grandes Estados querem agravar o fosso decisório face aos menos populosos? E porque razão o querem fazer já, antes do primeiro dos próximos alargamentos?

Por um conjunto variado de razões, umas de natureza económica, outras de natureza política mais geral.

As razões de natureza económica prendem-se com a dualidade de desenvolvimento que atrás mencionei. A manter-se, no futuro, uma simples projecção automática do actual modelo de ponderação de votos, e trazendo o próximo alargamento para o seio da União um grupo de Estados que, por alguns anos, estarão abaixo dos padrões médios de desenvolvimento que nela prevalecem, poderia potencialmente vir a registar-se, nesse mesmo futuro, uma agregação de países da União com menor grau de desenvolvimento que - numa lógica de representação de interesses comuns -, pudesse vir a conseguir formar minorias de bloqueio. Se tal viesse a suceder, isso representaria que os grandes Estados mais desenvolvidos, em aliança objectiva com outros países pequenos e médios que com eles têm interesses convergentes, deixariam de poder continuar a garantir o domínio avassalador que hoje têm sobre o processo legislativo e sobre a gestão orçamental da União. A necessidade de evitar que futuros alargamentos limitem esta sua liberdade é uma das óbvias razões do interesse em alterar o processo decisório.

A segunda razão tem uma perspectiva mais política e prende-se com as novas dimensões da União - a PESC e a Justiça e os Assuntos Internos.

No primeiro destes casos, começa a desenhar-se um óbvio interesse dos maiores Estados, que coincidem, em geral, com os que dispõem de Forças Armadas e de dispositivos diplomáticos de maior dimensão, de garantir que o seu papel decisório naquilo que seja decidido em nome da Europa se faça predominantemente de acordo com a conjugação dos seus interesses. Esta afirmação de vontade tornar-se-á mais premente à medida que, no âmbito da PESC, se forem definindo mais “estratégias comuns”, isto é, linhas gerais de actuação, decididas por consenso em sede de Conselho Europeu, cuja implementação se fará depois por maioria qualificada. Sejamos realistas: as “estratégias comuns”, que o futuro tenderá a generalizar a todas as áreas geográficas e aos principais temas horizontais, são um mecanismo para permitir que a PESC seja decidida por maioria qualificada, embora com uma cláusula de “interesse nacional vital”, que países como Portugal conseguiram garantir em Amesterdão. Ora, num contexto em que a unanimidade deixa de se aplicar, é óbvio que os Estados mais fortes, que têm uma política externa e de segurança de grande visibilidade, entendem não poderem ser limitados em decisões que passam a comprometê-los perante o mundo externo. Daí, pois, o interesse - também na PESC - para um reforço da sua representação.

O segundo caso é, porventura, aquele em que, em tese, melhor se poderia compreender uma relação mais directa entre o poder de voto e o peso demográfico. Com efeito, na área da Justiça e dos Assuntos Internos estamos perante decisões que afectam diferentemente os países, em função da dimensão das respectivas populações. Há, porém, uma realidade que não pode deixar de ser considerada: esta é uma área onde tradicionalmente assenta o eixo da soberania dos Estados, onde se verificam culturas jurídicas mais diversas e, frequentemente, reservas nacionais de competência, nomeadamente de natureza parlamentar, difíceis de ultrapassar.

Tal como na PESC, a área da Justiça e dos Assuntos Internos toca, de muito perto, aquilo que constitui a expressão do poder nacional, por outras palavras, a área em que os Estados devem ser considerados tendencialmente iguais. Daí a dificuldade em avançar para uma desigualização ainda mais pronunciada do que a que hoje já existe no Conselho.

Dito isto, importa ponderar em que medida há espaço de manobra, na próxima CIG, para trabalhar na alteração ao actual modelo de ponderação de votos. Um terreno em que Portugal tem assentado a sua reflexão prende-se com a possibilidade de introdução do chamado sistema da “dupla maioria”. Neste sistema, procurar-se-ia, sem alterar o actual modelo de ponderação, fixar um mecanismo de representatividade demográfica mínima: nenhuma decisão por maioria qualificada seria válida se nela não estivesse representado um conjunto de países cujo somatório de população fosse inferior a uma certa percentagem da população total da União. O argumento demográfico atrás referido ficaria contemplado e, sob o ponto de vista democrático, dar-se-ia um salto em frente. Mas será que os “grandes” países, para além da Alemanha, estão dispostos a enveredar por um sistema que, pela primeira vez, os desigualiza face àquele país?

A extensão da maioria qualificada

Depois desta digressão pelas questões da Comissão e do poder de voto no Conselho, convirá abordar, finalmente, o terceiro vértice do “triângulo institucional” que vai estar em revisão: a extensão da maioria qualificada.

É para todos evidente que o funcionamento da União Europeia terá, cada vez mais, que ser gerido por votações não sujeitas à unanimidade, prática intergovernamental que se tem revelado frequentemente bloqueadora, servindo algumas vezes como instrumento e forma de pressão para garantir vantagens noutros tabuleiros. Há uma consciência crescente que a evolução futura terá de ir nesse sentido.

Importa registar que, contrariamente a uma leitura meramente formal que ainda subsiste em muitos sectores, a preservação da unanimidade – o chamado direito de veto – é frequentemente apenas uma falsa defesa para os pequenos e médios países. A vida interna da União Europeia é feita de equilíbrios muito frágeis e é praticamente impossível a um país de menor dimensão conseguir sustentar uma oposição isolada contra todos os restantes, a menos que esteja em causa um “interesse vital” muito evidente, sem que isso desencadeie pressões noutros domínios, quase sempre impossíveis de gerir.

Esta tendência para a utilização da maioria qualificada não pode, porém, ser desligada da circunstância de, também crescentemente - e com lógica democrática indiscutível -, as decisões que o Conselho toma por essa via deverem ser submetidas a co-decisão do Parlamento Europeu.

Ora aqui coloca-se uma outra questão. Como é sabido, o PE tem vindo a revelar, de ano para ano, uma tendência para que as suas decisões sejam tomadas numa lógica de representação de importantes interesses nacionais, independentemente das linhas ideológicas nele projectadas. Basta ver como votam os deputados portugueses ao Parlamento Europeu quando estão em causa importantes questões para o nosso país, como os têxteis ou os fundos estruturais. Mas, neste caso, importará pensar que, no Parlamento Europeu, a diferença de representação entre os Estados aparece muito mais ligada à sua dimensão demográfica. Repito um exemplo que costumo dar: Portugal tem 5 votos no Conselho para 10 da Alemanha, isto é, uma relação de 1 para 2; mas, quando chegamos ao Parlamento Europeu, Portugal tem 25 deputados e a Alemanha 99, isto é, praticamente uma relação de 1 para 4.

Com o que acabei de referir quero dizer, muito concretamente, que sempre que uma medida legislativa é submetida a co-decisão estamos, um tanto subliminarmente, a “reponderar” o peso dos maiores Estados, desta vez mais diferenciadamente que no Conselho. Ora se pensarmos que há uma tendência para a generalização da co-decisão a todas as medidas de natureza legislativa em que o Conselho decida por maioria qualificada isso significa que os maiores Estados “ganham poder” cada vez que tal se aplica. Nestas condições, será legítimo que ainda reforcem mais o seu poder ao nível do Conselho ?

Este raciocínio não nos deve, porém, colocar necessariamente numa posição de retracção face à extensão da maioria qualificada. Com efeito, a funcionalidade da União é também do nosso interesse e seria extremamente perigoso estar a adoptar uma linha de orientação que facilitasse bloqueios e prejudicasse as políticas comuns.

A extensão da maioria qualificada deve ser, assim, avaliada à luz do mérito de submissão a esse procedimento das várias medidas que possam estar em causa. Há terrenos, nomeadamente os que se ligam às grandes questões de natureza estruturante da União, em que a utilização dessa forma de voto é contraditória com o modelo de representação de Estados que a União Europeia de hoje prevê. Por outro lado, em tudo quanto as questões a decidir no âmbito da UE possam pôr em causa competências internas inalienáveis (como a ratificação de tratados) ou interesses cuja última decisão deva ser sempre de natureza nacional (fixação de orçamentos) é óbvio que a unanimidade deve ser preservada. Alguém já imaginou o resultado que um país como Portugal teria obtido na Agenda 2000 se a decisão final tivesse sido tomada por maioria qualificada?

O modelo híbrido actual

A maneira como se apresenta no debate europeu o conjunto de temas que atrás desenvolvemos representa, a meu ver, uma leitura um tanto redutora do modelo de revisão institucional. Diria mesmo que estamos perante uma perspectiva conservadora, que tem por detrás a ideia de que, sem tocar no essencial do actual modelo institucional, se procura apenas adaptá-lo a uma gestão mais confortável a quem já hoje o domina.

Nesta perspectiva, o modelo actual reveste-se de alguns perigos para os países de pequena e média dimensão e, em particular, para aqueles que, dentre eles, têm um padrão de desenvolvimento que se situa abaixo da média da União. É que não se situando um país como Portugal no centro do padrão de interesses que se projecta em Bruxelas, e ao não ter, cumulativamente, uma capacidade de intervenção muito elevada no processo de decisão, a sua colocação num modelo de solução maioritária deixa-o ao sabor da formação dessas maiorias, nas quais, em particular desde o último alargamento, raramente se sente confortavelmente representado. Dirão alguns que esta é uma questão que se resolve com o tempo e com o desenvolvimento que ele trará. O problema, porém, é gerir o quotidiano até ao momento em que se conseguir uma compatibilidade com o nível médio da União.

A progressiva perda da unanimidade, que caracterizava o modelo intergovernamental, não tem sido entretanto compensada pela instituição de mecanismos de natureza mais federal - através de uma instituição onde os diversos Estados tenham representação idêntica e através de fórmulas de federalismo fiscal, que permitam desencadear reequilíbrios distributivos automáticos de natureza financeira. Estamos, assim, a viver num modelo híbrido que, como é óbvio, é o terreno ideal para a consagração de “directórios”, que cada vez se sentem menos obrigados a proceder à disponibilização de mecanismos compensatórios e parece darem como adquirida a inevitabilidade da dualização de desenvolvimento, agora que já obtiveram as vantagens do mercado interno e a liberdade de expressão financeira e empresarial dos seus importantes interesses económicos.

Por outro lado, entendo que a Comissão Europeia não tem, manifestamente, cumprido bem o seu papel. A União Europeia não é uma mera organização internacional, onde a maioria ganha e a minoria perde. A União dispõe de uma instituição sui generis - a Comissão Europeia - que, por representar a União como um todo, deve, em cada uma das suas propostas, ter o interesse de todos os Estados em permanente conta - e não apenas o interesse pressentido da maioria que lhe vai aprovar essas mesmas propostas. Mesmo os interesses mais marginais e mais minoritários são interesses atendíveis, em especial quando expressos por Estados que têm em curso um esforço de desenvolvimento e de aproximação à média da União, que pode ficar em risco pela adopção de certas decisões

Ora verificamos que não tem sido esse, em anos recentes, o padrão de comportamento da Comissão. Bem pelo contrário, em muitos sectores a Comissão mais não fez do que projectar os interesses maioritários e, com essa orientação, contribuiu para afectar sectores importantes no quadro de desenvolvimento de alguns países. Algumas lamentáveis decisões tomadas na área das relações económicas externas aí estão a prová-lo de forma flagrante e um país como Portugal foi, nesse domínio, particularmente penalizado.

Uma outra reforma ?

Nesta perspectiva, e a haver vontade política para tal, talvez tivesse sido possível ir um pouco mais longe e colocar em discussão o actual modelo de equilíbrios interinstitucionais e partir daí para um repensar total da União do futuro.

Esse exercício que, convém dizê-lo desde já, não está na agenda da próxima revisão, poderia passar por uma reconsideração do papel dos Parlamentos Nacionais no contexto comunitário e por uma reflexão sobre o estatuto do próprio Parlamento Europeu, nos moldes em que funciona. Com efeito, e sem colocar em causa o reforço da dimensão democrática na União, creio que é preciso rompermos, de uma vez por todas, com o mito de que é pelo reforço do Parlamento Europeu que se colmata o “défice democrático” de que tanto se fala. É importante perceber e fazer entender que os Governos, ao actuar no Conselho, têm atrás de si a legitimidade que lhe é conferida pelo voto popular e que, ao contrário do Parlamento Europeu - que não pode ser dissolvido em nenhuma circunstância - estão sempre na iminência de cair por decisão dos parlamentos em que se apoiam. A questão essencial em termos de democracia está, a meu ver, muito mais ao nível das competências que “fogem” dos Parlamentos Nacionais para a esfera comunitária do que na descoberta, no seio desta, de mecanismos de compensação e controlo por afirmação de uma legitimidade europeia, manifestamente prematura para o grau de consciência comum que hoje marca os cidadãos dos Estados membros. Se não queremos que a União se transforme na realidade distante do cidadão que o abstencionismo nas recentes eleições para o Parlamento Europeu denuncia, torna-se indispensável gerar um modelo de representação dos Parlamentos Nacionais no processo interinstitucional. E porque não partir daqui para uma representação tipo senado europeu?


A presidência portuguesa
e a Conferência Intergovernamental

As ideias que atrás expressei, e que são fruto de uma experiência que muito releva dos debates da última CIG, constituem algumas das preocupações que têm estado no centro da posição nacional em matéria institucional.

É perfeitamente natural que estas ideias possam evoluir, em confronto com outras perspectivas e com o curso das realidades em discussão durante a próxima CIG, que caberá a Portugal lançar.

No que toca à gestão desse exercício, é intenção do nosso país levá-lo a cabo com a maior abertura de espírito, tendo como eixo referencial o esforço em curso por parte da presidência finlandesa. A partir do que resultar desse trabalho, é nosso objectivo lançar linhas de reflexão que possam ser outras tantas pistas para a descoberta de consensos que permitam à presidência francesa, que nos sucederá, finalizar o processo com sucesso, a fim de fazer desaparecer o último dos problemas formais a serem ultrapassados antes do primeiro dos próximos alargamentos.

E porque a opinião desses novos Estados não pode ser indiferente a quem, como nós, está a definir o futuro institucional em que se processará a sua futura integração, entendemos importante garantir que esses países acompanham o evoluir da reforma institucional e sobre ela são ouvidos, numa base meramente consultiva e informativa, mas, mesmo assim, num modelo que pretende antecipar o espírito de parceria e solidariedade que está subjacente à sua própria inclusão no processo de integração europeia.

(Publicado em “Europa – Novas Fronteiras” (nº 5, 1999), Centro de Informação Jacques Delors, Lisboa)



Uma Europa solidária?


Com a entrada em vigor do novo Tratado da União Europeia, aprovado em Amesterdão, ficará concluída mais uma etapa no processo de adaptação dos instrumentos da União à conjuntura político-económica que resultou das alterações de natureza estratégica ocorridas no continente na última década.

Convém ter presente que a Europa se vê confrontada, em simultâneo, com a necessidade do alargamento a Leste e com o imperativo de garantir uma solidez económico-monetária que lhe permita uma posição confortável na batalha inadiável da mundialização, o que a obriga a um esforço urgente para preservar a sua competitividade no mercado global.

Paralelamente, a União continua à procura de um consenso sobre as estruturas que lhe permitam enquadrar toda essas dimensões com o possível aprofundamento da políticas e, ao mesmo tempo, assegurar a compatibilidade das diversas realidades nacionais que comporta no seu seio.

Porque o processo europeu tem, cada vez mais, de ser transparente, porque as diversas opiniões públicas começaram a interessar-se fortemente pela construção europeia e, por vezes, a questionar as cedências de soberania que ela encerra, os passos futuros no sentido integrador têm-se revelado progressivamente mais difíceis. Por um lado, porque o aprofundamento da União toca áreas cada vez mais próximas do cerne dessas mesmas soberanias; por outro, porque uma Europa muito diferenciada apresenta hoje agendas de preocupações muito variáveis e por vezes contraditórias, de país para país.


Que Europa queremos ?

Neste cenário em mutação acelerada, importa situar o Tratado de Amesterdão. Muitos concordarão facilmente - em Portugal e no resto da União - se se disser que Amesterdão foi uma etapa que, sendo necessária, terá ficado aquém dos passos suficientes para dar resposta a todas as questões com que a nova Europa se defronta. Esta aparente unanimidade no diagnóstico sobre os deméritos relativos do novo tratado esconde, contudo, profundas divisões na terapêutica. Poderá haver aqui um grande equívoco e não temos a certeza de que, neste aparente consenso, todos estejamos hoje a falar do mesmo.

Com efeito, é naquilo que falta fazer que as divergências são mais patentes, precisamente porque há um fosso de interpretações sobre o que deve ser feito e sobre a finalidade do trabalho europeu em comum. A questão está em saber o que queremos, se os outros também querem o mesmo e, no caso de coincidirmos, se todos estamos dispostos à cedência de meios e à mobilização de vontades para avançar no projecto europeu que desse consenso resultar. Esta é a questão central e não vale a pena sobre ela estar a alimentar eufemismos.

Alguns referem como prioridade a revisão dos actuais mecanismos de funcionamento da União, as novas mudanças a introduzir nos Tratados, a inevitabilidade de nova reforma institucional. Chega-se mesmo a adoptar, face a este tipo questões, uma espécie de europeísmo “bola-de-neve”, marcado por um urgente e militante revisionismo, que induz um discurso politicamente correcto de que começa a ser arriscado alguém afastar-se, sob pena de ser acusado, subliminar ou abertamente, de ser adepto de um nacionalismo estreito e de uma não partilha do “grande desígnio” que, no entanto, quase todos se esquivam a definir em concreto - na velha lógica de que “o movimento é tudo, o fim é nada”.

Vamos por partes. Talvez não fizesse mal ao projecto europeu que, em vez de estarmos, dia após dia, a auto-flagelarmo-nos com angústias existenciais, sofridas pela ineficácia da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e pela ausência de uma voz europeia em matéria de defesa e segurança, parássemos um pouco para pensar sobre se estamos ainda todos no mesmo barco ou se, na realidade, vamos já hoje por caminhos diferentes e, porventura, contraditórios. É que a Europa de hoje cada vez mais se assemelha àquelas velhas famílias que pretendem afirmar uma imagem unida perante a sociedade exterior quando, na realidade, não conseguem resolver os seus problemas internos, por aparentemente já lhes faltar algo que una todos os membros, por sobre os seus egoísmos individuais.

Vale a pena termos a coragem de chamar as coisas pelos seus nomes, em vez de andarmos numa aparente competição de europeísmo, numa espécie de PREC comunitário em que cada um se sente absolvido pelo maior radicalismo que assume.


Porquê a Europa ?

Estar no projecto europeu é interessante se e quando esse projecto corresponder aos anseios das comunidades nacionais que nele participam, nomeadamente se for possível gerar uma mais-valia que funcione como valor acrescentado para vantagem de todos. A União Europeia, na filosofia que está subjacente aos Tratados é, para Portugal e para os portugueses, um projecto que corresponde aos requisitos essenciais para o tornarem atractivo: consubstancia uma dimensão ética, cultural e estratégica em que nos revemos, funciona como instrumento de desenvolvimento e de melhoria das condições de vida da nossa população e, nas partilhas de soberania que encerra, não afecta os valores de identidade nacional que a presente geração portuguesa interpreta como devendo ser preservados nesta fase histórica. Correndo o risco de todas as simplificações, no essencial, a questão é mais ou menos esta.

Só que, como sucede com todas as instituições, nós temos a obrigação de aferir constantemente se o modelo enquadrador está, ou não, adequado ao diacronismo da realidade a que se aplica. E é aqui que uma pergunta se coloca: será que os termos de referência que temos hoje perante nós, quando falamos da União Europeia, estão a ser lidos identicamente por todos ? Mesmo descontando as diferenças de perspectiva, derivadas das conjunturais agendas nacionais de interesses, será que há hoje um “interesse comum” europeu, percebido unanimemente como tal ?

Um entusiasmo europeísta mais militante dirá, com certeza, que ensaiar um raciocínio destes deriva, apenas, de uma mera atitude de cepticismo, de descrença nas virtualidades da própria Europa. Mas é preciso que se diga que a ideia europeia não é uma crença, é uma aposta racional que, como tal, tem de se justificar permanentemente no quotidiano. E, por essa via, pode e deve ser questionada se e quando não corresponder aos anseios daqueles a quem se dirige - de todos ou de alguns. O europessimismo que as sondagens hoje confirmam em muitas sociedades europeias não é um “defeito” das populações, é o produto da inadequação da Europa que temos àquilo que as pessoas dela esperam. Daí que valha a pena que, antes de nos precipitarmos na discussão sobre a reforma dos instrumentos da actual Europa político-económica, façamos um debate sobre se todos entendemos o mesmo daquilo que se diz ser a União Europeia e as suas ambições.


A Europa que temos

A Europa comunitária, laboriosamente construída à sombra do exorcizar do conflito franco-alemão, a que se cumulou o cimento agregador da Guerra Fria, representou um projecto de integração que, assente na economia de mercado e num modelo social sui generis, procurou sedimentar o desenvolvimento deste lado do continente, sob um referencial institucional democrático e com uma cultura de valores tendencialmente comum.

O evidente sucesso deste projecto político-económico, apoiado num gradualismo que sempre consolidou os passos anteriores, e os legitimou através de uma progressiva socialização da própria ideia europeia, conduziu naturalmente a maiores ambições: a criação de um mercado único (e já não de uma mera zona de livre-câmbio), com a instituição da livre circulação de pessoas e de mercadorias e, no topo deste processo, a criação de uma moeda única.

Para gerir esta complexa construção, que teve de incorporar sucessivamente novas partilhas de soberania em áreas cada vez mais sensíveis, foi sendo afinado um modelo institucional de representação múltipla, com vectores tipicamente intergovernamentais (o Conselho), de natureza proto-federal (a Comissão) e de expressão democrática crescentemente envolvida no processo legislativo (o Parlamento Europeu). O equilíbrio entre estas instâncias sofreu, entretanto, alterações sensíveis a que tem vindo a ser dada consagração nos Tratados, mas sempre numa linha de tendencial integracionismo - que muitos interpretam como imperativamente federal.

A consciência de que uma voz económica só tem condições para se fazer ouvir quando apoiada numa vontade política, levou à progressiva criação de estruturas de representação externa que potenciassem os evidentes sinais de partilha de interesses no plano diplomático e de segurança internacional, fruto de uma comum cultura de valores éticos que resulta dos padrões médios que decorrem dos modelos políticos representados pelos Estados membros. Daí a lógica de se caminhar para uma PESC. Mas convém ter claro que é também das hesitações e das contradições objectivas entre as perspectivas estratégicas dos diversos Estados membros - que vão da tradição neutral ao ultra-atlanticismo, das lógicas de potência regional às apetências para partilhas federais - que acaba por nascer muita da frustração nesta área, com consequências visíveis em termos operativos, nos cenários de proximidade onde uma Europa activa se justificaria.

Por outro lado, foi-se verificando que a densificação dos laços económico-sociais dentro do espaço comunitário, fruto das interdependências induzidas pelo mercado interno e pela livre circulação de pessoas e bens, implicava ir mais longe no trabalho comum em outras políticas colaterais. Daí a necessidade de caminhar para a comunitarização de outras áreas de natureza económico-social e, noutra dimensão, de procurar vias progressivamente comuns no domínio da segurança e da regulação da circulação das pessoas na ordem intracomunitária.

Porque este projecto punha em confronto aberto sociedades e economias com níveis muito desiguais de desenvolvimento, foram encaradas medidas de compensação que procurassem reduzir as disparidades regionais de base, atentas naturalmente as especificidades próprias que sempre as marcariam e desigualizariam. Essas políticas serviriam de suporte a um crescimento colectivo mais harmonioso que, sendo simultaneamente um terreno para uma estabilidade socio-política do conjunto, pudesse fundamentar sociedades mais prósperas que induzissem um efeito global de enriquecimento em todo o espaço coberto pelo projecto. Estamos a falar do princípio da coesão económica e social, que os Tratados consagram.


A Europa do “directório”

Só que o óbvio sucesso do empreendimento europeu, e da aplicação das políticas em que se fundou, poderá, na perspectiva de alguns, ser a origem das dificuldades com que a actual UE se confronta. A Europa enfrenta hoje a dificuldade em manter viva a ideia que criou de si própria, que “vendeu” como a sua imagem de marca e que, no fundo, a tornou apelativa aos olhos daqueles que agora dela querem fazer parte.

Esse problema implica repensar o modelo dos futuros alargamentos. É hoje evidente que, na Europa dos Quinze, há uma forte corrente que aponta no sentido de que será difícil, a médio prazo, conseguir garantir um elevado grau de homogeneidade, ainda que tendencial, entre os actuais e todos os futuros Estados membros, que possibilite a sustentação de um modelo comum que tenha um nível de integração similar ao actual. A ideia das “cooperações reforçadas” é, aliás, a resposta institucional antecipada a esta questão.

A actual discussão em torno do quadro financeiro a médio prazo não é alheia a este problema. Por parte dos países mais ricos da União começa a haver a percepção de que estamos perante um corpo de políticas que, tendo tido êxito na sua aplicação, é demasiado “caro” para ser adoptado em pleno na União alargada que aí vem. A solução, por isso, passaria por baixar o envolvimento da União em algumas dessas políticas, por forma a que o alargamento, quando se fizer, venha a constituir um encargo bastante menor.

Nestas condições, a ideia central deste projecto seria assegurar o desiderato do alargamento, embora ligando-o a um corpo de políticas menos exigente que o actual, assumindo que a Europa do futuro terá forçosamente de aceitar uma dualidade em matéria de desenvolvimento dos seus membros. Importante, contudo, será garantir as vantagens do mercado interno e o sucesso da moeda única, funcionando ambos como eixo de uma super-União que constituiria o “núcleo duro” do sistema. No plano institucional, uma reforma a realizar antes da admissão dos novos países asseguraria que o conjunto de Estados actuais com um padrão mais elevado de desenvolvimento manteria as rédeas do processo orçamental e de produção legislativa, nomeadamente por um reforço da sua posição no processo decisório. Essa hegemonia passaria, nessa lógica, a ter expressão privilegiada ao nível da representação política externa, que seria, na prática, dirigida pelos Estados com uma maior capacidade de afirmação diplomática e militar, legitimada nomeadamente pela sua maior contribuição financeira para o projecto comum. Se tudo isto sugere a palavra “directório”, é disso mesmo que estamos a falar.
   

As instituições e a solidariedade

Perante este cenário, a questão está em saber se faz ainda qualquer sentido falar de um projecto europeu marcado por regras de solidariedade e, muito em especial, se há algum padrão que identifique aquilo que poderia ser uma certa leitura de Esquerda na Europa dos nossos dias. E testar, neste contexto, o comportamento a nível europeu dos Governos que se reivindicam do socialismo democrático.

Muitos dirão que essa perspectiva pode e deve ser encontrada na definição e na execução das políticas, não tendo necessariamente a ver com os modelos institucionais e com o processo decisório.

Correndo o risco de ir contra a maré, gostávamos, contudo, de deixar claro que entendemos que uma perspectiva progressista da Europa tem de se afirmar em todas as dimensões do projecto comunitário, a começar pelo modelo de relação entre os Estados. Não faz sentido afirmar políticas de solidariedade, com expressão na execução diária das medidas da União, se paralelamente caminharmos para o aprofundamento de uma desigualização entre os Estados, numa deriva que tende, no limite, a tornar dispensável a vontade de alguns na definição dos termos de referência do processo colectivo. É que estamos a falar de uma União, onde os interesses marginais ou periféricos têm de fazer parte da resultante final, não de uma organização internacional onde a maioria domina e a minoria apenas acata.

A Europa da solidariedade começa no modo como os Estados se respeitam entre si, qualquer que seja a sua dimensão, na forma como garantem aos países mais pobres e aos menos populosos os meios para fazerem ouvir a sua voz e a manifestarem, com efeitos concretos na decisão final, as suas preocupações específicas, por mais marginais que sejam. Não é contraditório com qualquer princípio democrático garantir aos Estados mais pequenos - e, dentre estes, aos menos prósperos - o direito a afirmarem a sua singularidade num projecto colectivo. Valerá a pena pensarmos que o projecto federal típico fornece muito mais garantias de equidade que o modelo híbrido em que vivemos, onde o domínio dos mais fortes apenas é atenuado por algumas seguranças dadas pelo actual modelo institucional que, talvez por isso, está actualmente sob fogo.

A solidariedade deveria, igualmente, expressar-se pelo reforço dos mecanismos de compensação interna das desigualdades entre Estados e regiões, pela incentivação dos apoios tendentes a um desenvolvimento mais harmonioso dentro do espaço comunitário. Não se está, neste domínio, a apelar a esquemas caritativos: está-se, muito simplesmente, a procurar fazer ver que o livre acesso a um mercado global sem fronteiras ou os benefícios retirados do retorno dos fundos justificam a manutenção de apoios compensatórios. Isto para não falarmos do diferenciado impacte dentro da União, em termos de concessões, que a sua política de relações económicas externas encerra, quase sempre em desfavor dos países tecnologicamente menos desenvolvidos e das agriculturas do Sul.


O teste do alargamento

Repare-se que este tipo de questão se liga, com facilidade, ao processo de alargamento. Ter connosco, num projecto comum, países que procuram solidificar os seus processos de desenvolvimento e de democracia, é, já em si, um gesto de solidariedade - sendo, obviamente, também um interesse objectivo dos próprios países actuais da União, que assim alargam o seu horizonte de estabilidade e garantem a conquista para o seu modelo produtivo de novos mercados. Mas, também aqui, nunca é demais repetir, os ganhos e os custos são diferenciados e será importante tê-los em atenção no balanço final.

O apoio político que o Governo português deu, desde o início, ao processo de alargamento baseia-se precisamente nessa perspectiva solidária de garantir aos que procuram integrar o espaço de progresso que é hoje a União a mesma oportunidade que a nós foi dada em 1986. Julgamos estar a ser coerentes, mesmo se esta coerência comporta, como é natural, alguns custos.

Mas não vemos que tal postura seja a que marca a leitura restritiva, em termos de encargos financeiros, que alguns países hoje assumem no delinear do planeamento da União para os próximos tempos. Com efeito, verificamos mesmo que alguns dos Estados que, com mais entusiasmo, se lançaram no movimento impulsionador do alargamento estão hoje na primeira linha dos mais reticentes em assegurar os meios necessários para a sua plena realização. E ao advogarem um corpo de políticas menos oneroso, logo, menos denso e eficaz na cobertura das necessidades dos que vão ingressar futuramente na União, esses Estados revelam um egoísmo que não pode deixar de ser denunciado.

A atitude favorável à diluição do quadro integrador, feita com alibis de subsidiariedade ou com simples pretextos de restrição de encargos, tem forçosamente que ser avaliada num contexto político. Não podemos deixar que, com total impunidade, se dissolva o tecido de políticas que a União foi criando e que é, particularmente para alguns Estados menos capazes de assegurarem a sua sustentação autónoma, um elemento estruturante da sua participação na União e uma garantia dada às respectivas populações para uma progressiva aproximação à media dos restantes parceiros.


O euro e a Europa social

Estamos, aliás, convictos que, muito rapidamente, teremos que dar resposta a questões de novo tipo criadas pela introdução da moeda única, talvez mesmo mais cedo do que muitos desejariam. A sustentação do projecto da União Económica e Monetária vai ter que se projectar num conjunto muito alargado de políticas colaterais, sem o que se criarão disfunções sectoriais que minarão a aplicação do sistema. Veremos, a propósito, como evoluem os mecanismos de harmonização das políticas fiscais, de emprego, de coordenação das políticas económicas e de aproximação em outras áreas essenciais para a coerência do projecto. Não é mesmo de excluir que, num prazo mais ou menos curto, a União tenha de organizar uma nova Conferência Intergovernamental sobre este tema e é vital que o debate destas questões se comece a processar desde já.

Mas vai ser importante verificar o modo como os Governos europeus actuais - uma “maioria de esquerda” que matematicamente se projecta na União - interpreta a própria dinâmica da moeda única, isto é, se deixa que ela seja o instrumento de tensão desigualizadora que o liberalismo dela procurará aproveitar, numa lógica extrema de competitividade, ou se opta por enquadrá-la de forma regulada num percurso de apoio ao crescimento que tenha permanentemente como referente a necessidade de proteger e melhorar o modelo social europeu.

Será interessante, por outro lado, verificar se essa Europa reunida à volta do euro consegue tornar consistente a sua presença conjunta nas instâncias financeiras internacionais, como forma de ultrapassar os egoísmos de afirmação de alguns protagonistas e garantir uma voz económica sólida que possibilite uma reacção rápida perante as crises.

A nível interno, a possibilidade de lançamento de políticas activas de criação de emprego, através de projectos europeus de incentivação das redes transeuropeias e de apoio às PME’s, poderia ser um interessante caminho para estimular o crescimento, como vem sendo sugerido por António Guterres no seu discurso europeu. O recurso ao endividamento comunitário, através de obrigações europeias (“eurobonds”), constituiria um sinal do empenhamento da União com soluções de natureza comunitária, num momento em que se verificam conhecidas restrições de natureza orçamental para prosseguir, a nível nacional, acréscimos nos investimentos públicos, nomeadamente aqueles que eventuais choques assimétricos provocados pelos impactes diferenciados do euro no tecido económico e social da União vierem a justificar.

Neste domínio, há ainda que não ceder perante as tentativas, que seguramente aparecerão, sob um pretexto de flexibilidade dos mercados de trabalho, à luz da absolutização da busca de competitividade, no sentido de atacar o corpo de direitos económicos e sociais que fazem parte das conquistas do modelo europeu. A Europa da moeda única não é a Europa do pensamento único e não há nenhum determinismo que obrigue a que o modelo europeu se formate sob as teses de um liberalismo extremo. A economia é um instrumento para a melhoria das condições de vida dos povos, não é um fim em si, nem para a realização de determinados objectivos macroeconómicos, por mais essenciais que eles nos pareçam numa determinada conjuntura. Não ter tabus em relação à aceitação da lógica de mercado implica também não partilhar mitos quanto à bondade intrínseca do modelo liberal.

É esse padrão de cultura política, que deve marcar os princípios e que guiar o comportamento, que se espera que a “maioria de esquerda” da União assuma na sua gestão da vida comunitária, seja nas áreas económicas e sociais ou em outros domínios de intervenção em que a acção da União se exerce.


O teste das políticas

Um domínio importante é, como se reconhece, o das relações externas, que não pode ser sacrificado por uma qualquer visão redutora e auto-centrada do papel da União. Com efeito, a tradição de intervenção solidária no campo internacional, seja na ajuda ao desenvolvimento, seja na acção humanitária, seja na defesa dos direitos do homem, na preservação da democracia ou na promoção dos valores do Estado de Direito, não pode ser quebrada no futuro de políticas da União. A PESC terá que corresponder ao prolongamento de uma cultura de valores, à expressão diplomática da Europa das liberdades que a União construiu, em aliança com outros parceiros. Mas essa expressão externa terá sempre que estar subordinada, não a uma espécie de sobranceira razão ética auto-assumida, mas ao respeito pelo Direito Internacional e pelas instituições em cujo mandato se prevê a legitimação das acções no domínio exterior, mesmo que elas apareçam aparentemente justificadas por imperativos de justiça e paz.

Um teste igualmente interessante, e que nos ajudará a aferir da coerência de alguns, será no delicado domínio da Justiça e dos Assuntos Internos (JAI). Aqui, mais do que em qualquer outro campo, há que ponderar permanentemente os critérios de eficácia à luz dos padrões de liberdades públicas e da aceitação de rigorosas exigências em matéria dos direitos dos cidadãos, seja das populações da União, seja de cidadãos originários de países terceiros, aos quais deve ser aplicado um modelo de regulação da sua situação no território da União que compatibilize sempre o rigor com critérios de humanidade, na linha de uma tradição em que a Europa deve continuar a ser pioneira.

Finalmente, a cidadania. A Europa da equidade, que a Esquerda europeia tem procurado promover, encontra na letra dos Tratados da União, com reflexos na execução das políticas, um terreno de afirmação excelente. É importante que se consiga levar à prática políticas de igualdade entre homens e mulheres, de defesa das minorias e de criação de oportunidades para expressão autónoma, mas com audição institucional, de todas as áreas da sociedade. É pela potenciação da cidadania europeia, pela percepção cada vez mais alargada de que esse é um valor acrescentado à dimensão nacional, que se fará a Europa do futuro. É vital que os cidadãos europeus se tornem conscientes e exigentes nos seus direitos, condição essencial para se sentirem parte inteira do projecto comum.


O desafio conservador

São estes alguns temas que nos podem ajudar a reflectir sobre o futuro das políticas europeias e, muito em particular, sobre o que poderemos esperar da atitude de Governos que têm lemas ideológicos que se assemelham aos nossos. Como é tradicional, a Direita costuma ser o mais atento observador da coerência de quem se diz de Esquerda (o contrário nunca se passa...). E esse sector começou já a interrogar-se - e, diga-se, com alguma justiça - sobre o comportamento dos Governos socialistas ou social-democratas da Europa de hoje, inquirindo sobre se eles traduzem, na sua prática política, os princípios que teoricamente caracterizam a sua matriz ideológica.

Pensamos que este é um desafio a que não poderemos fugir e que vai ser interessante verificar o comportamento dos membros da família socialista europeia face ao grande conjunto de questões que hoje dividem a União. Deste teste poderemos vir a concluir se essa família política é apenas um grupo de amigos com interesses bem divergentes, expressos numa lógica nacional que escapa a qualquer tipificação de valores, ou se, pelo contrário, consegue definir uma identidade e um projecto autónomos que marquem uma visão própria da Europa e dos caminhos para o seu futuro. O desfecho da Agenda 2000, as linhas de fractura na questão institucional e a lógica subjacente à aplicação dos novos mecanismos da política externa europeia e da área da segurança interna vão dar-nos parte da resposta a este desafio. A outra parte da resposta sabemo-la nós.

( Publicado no “Portugal Socialista” (nº 219, 1999), sob o título “A Esquerda e a nova Europa”)