30 de junho de 2012

Prefácio

Este é um livro que eu gostaria de ter lido, já há vários anos. Se assim tivesse acontecido, estou certo que o meu prazer, como viajante gustativo por muitas e diversas mesas, pelos locais do mundo onde a vida e a curiosidade me levaram, teria sido bem diferente. Logo verão porquê.

É um lugar comum dizer-se que a alimentação está no centro da história das civilizações e que, através dela, muito se definem as sociedades e as culturas comportamentais que delas emergem. Mas talvez não se reflita suficientemente sobre o facto de que o apuramento das práticas gastronómicas constitui, em si mesmo, um sinal de qualificação desse mesmo tecido cultural.
 
Este livro situa-se na confluência da História, da cultura e do prazer. É, simultaneamente, uma obra de considerável fôlego histórico-cultural e um modelo notável de divulgação sobre uma temática riquíssima, embora por vezes apenas explorada de forma ligeira. Não é este o caso.
 
Fortunato da Câmara traz-nos, numa linguagem que combina virtualidades várias – a boa escrita, o ritmo apelativo, o registo culto, o rigor histórico, a diversidade cosmopolita –, uma visão interessada e interessante sobre a origem e a história de muitas especificidades alimentares com que um viajante, ou um mero apreciador com hábitos mais estáticos, frequentemente se cruza. Apoiado em leituras sólidas, o autor conduz-nos por terrenos descritivos e interpretativos que, de forma bem fundamentada, nos ajudam a perceber melhor produtos que, em muitos casos, fazem parte do nosso panorama quotidiano, sem que, até agora, nos tivéssemos interrogado sobre o porquê da sua designação, os lugares de onde partiram ou as figuras a eles ligados. Ou, se assim o fizémos, muitas vezes ficámos sem resposta. Ora ela aqui está, nesta obra, fruto seguro de muitos e bem sucedidos anos de pesquisa, como o demonstra a impressionante bibliografia citada.
 
O texto deste livro, num registo que nunca perde o sentido de escrita agradável que, a meu ver, se deve sempre seguir quando se abordam componentes dos prazeres centrais da nossa vida, ajuda-nos a melhor entender a evolução dos produtos e as suas geografias, bem como algumas influências que os solavancos dos tempos neles acabaram por ter, tudo isso envolvido num processo muito bem sucedido de contextualização histórico-cultural.
 
No que constitui uma das suas facetas mais particulares, esta obra é também um interessantíssimo roteiro por figuras a cujos toques de genialidade culinária, ou de presença histórica associada, se ficou a dever a consagração de uma “marca” ou a popularização de uma certa identidade gastronómica.  E, de forma muito curiosa, chegamos mesmo à origem de algumas corruptelas, em matéria de designações de certas receitas ou pratos, que hoje fazem parte de um acervo de linguagem comum.

Posso assegurar – porque é essa a minha experiência pessoal bem forte – que um leitor atento não voltará a olhar da mesma forma para a lista de um restaurante, em Portugal ou em outros lugares do mundo, após ter lido este livro. Passará a ter, com toda a certeza, uma curiosidade acrescida para ir à procura de novas experiências que coloquem a expressão de um sabor nas várias tipologias gastronómicas aqui destacadas, seja como mero apreciador dos prazeres da mesa, seja como artista, profissional ou amador, das artes culinárias.
 
Com o mesmo gosto que eu próprio tive, desejo aos leitores uma boa viagem através deste roteiro de prazeres gustativos pelo qual Fortunato da Câmara nos conduz com maestria e profunda erudição. 

(Prefácio escrito para o livro "O Mistério do Abade de Priscos e outras histórias curiosas e deliciosas da gastronomia", de Fortunato da Câmara)

4 de abril de 2012

Cante Alentejano


Nos últimos dias, suscitou alguma polémica a decisão governamental de não apresentar à UNESCO, no corrente ano, a candidatura do Cante Alentejano ao estatuto de património cultural imaterial da Humanidade. A comissão promotora da iniciativa, ecoando o sentimento de outros apoiantes da mesma, manifestou o seu desagrado por esta tomada de posição.

É compreensível o desapontamento que atravessa as comunidades alentejanas que estiveram envolvidas na preparação do projeto, às quais tinha sido criada uma expetativa temporal para a conclusão do mesmo. Devo dizer, porém, que entendo menos bem algumas despropositadas e menos elegantes acusações personalizadas que surgiram neste contexto, que apenas posso levar à conta de exagerada emoção entretanto suscitada. 

Desde o primeiro momento que os interlocutores que, no quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa e em Paris, dialogaram com os representantes da candidatura deixaram muito claro serem amplamente favoráveis à iniciativa, a qual, aliás, desde o início estimularam. Esse terá sido também o sentimento das altas autoridades do Estado e outras personalidades que expressaram o seu apoio à mesma. Toda essa solidariedade para com o projeto era dada, naturalmente, no pressuposto de que a candidatura seria apresentada com condições de pleno sucesso, tanto mais que, no caso de uma eventual rejeição, o processo teria de esperar cerca de cinco anos antes de poder ser repetido, com o incontornável efeito negativo que tal decisão não deixaria de ter na memória interna da própria UNESCO.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros não tem, no seu seio, uma "expertise" própria, pelo que, como em casos análogos, teria sempre que se apoiar, para a formulação do seu juízo sobre a oportunidade de apresentação da candidatura, em opiniões técnicas abalizadas, nomeadamente as que se projetam na comissão científica que a própria organização criou.

A comissão científica da candidatura foi presidida pelo professor Rui Vieira Nery, que já exercera idênticas funções na recente e bem sucedida candidatura do Fado ao estatuto agora pretendido pelo Cante Alentejano. O professor Vieira Nery pediu, entretanto, demissão do cargo e, ao fazê-lo, deixou algumas críticas àquilo que entendia serem alguns pontos menos consistentes desta candidatura. Sem desprimor para os restantes membros, a pessoa que, de forma unânime, era considerada como imediatamente mais qualificada, no seio da comissão científica, era a professora Salwa Castelo-Branco, a quem, aliás,os promotores da candidatura haviam solicitado a revisão final do respetivo processo. Ora também esta eminente especialista, conjuntamente com outro membro da comissão, considerou que, no seu estado atual de preparação, a candidatura teria fragilidades que poderiam conduzir à sua rejeição.

O Ministério dos Negócios Estrangeiros - e não apenas a Comissão Nacional da UNESCO, como erradamente é sugerido - entendeu que, perante estas abalizadas opiniões e em tais condições, constituiria um elevado risco propor a candidatura este ano. Nada do trabalho já feito, na laboriosa preparação do dossiê que foi desenvolvida, se perderá. Apenas se pretende que, no tempo que agora temos pela frente, possam vir a ser colmatadas as deficiências e os problemas entretando detetados.

Todos temos interesse em que ao Cante Alentejano seja dado um estatuto internacional à altura da indiscutível qualidade que esta manifestação popular tem, como fator identitário de uma região e como património cultural de prestígio do próprio país. Por isso, com serenidade e redobrado rigor, vamos trabalhar para que, num prazo que esperamos curto, possamos apresentar na UNESCO uma candidatura de sucesso do Cante Alentejano.

(texto publicado na edição de 4.4.12 no "Diário de Notícias")