31 de março de 2011

José Alencar

A morte deve ter andado um tanto desorientada, nestes últimos anos, com José Alencar. O antigo vice-presidente de Lula fintava-a com regularidade, sempre com um sorriso nos lábios, num desafio constante, uma espécie de teimosia irónica. Mas tudo tem o seu fim e estava escrito que, um dia, José Alencar ia perder uma das batalhas. Que iria ser a última.

Quando, em 2003, Lula foi aconselhado a ter Alencar na sua "chapa", dificilmente poderia prever que este industrial mineiro, escolhido para lhe dar credibilidade junto do setor privado, se iria transformar num dos seus mais leais apoios, num sustentáculo valioso, que nunca vacilou, mesmo nos piores momentos dos seus dois mandatos.

Praticamente desde a minha chegada ao Brasil, tive o inestimável privilégio de poder manter com José Alencar uma relação marcada por uma forte estima e simpatia. Recordo jantaradas divertidas em nossa casa, com José Alencar a contar-nos, com a graça imensa que tinha, as insuperáveis historietas mineiras, daquela gente que "nunca se zanga mas também nunca se reconcilia". Pena tenho de não saber reproduzir as aventuras do "Fernandinho", cuja saga, acabada num posto consular nos Estados Unidos, era um êxito garantido para as audiências. Mário Soares, Jorge Sampaio e Freitas do Amaral, entre outros visitantes portugueses, foram testemunhas do ambiente aberto e franco que a segunda figura da hierarquia brasileira sabia criar à sua volta.

Há uns meses, recebi em Paris uma simpática nota manuscrita de José Alencar, em resposta aos votos de restabelecimento que eu lhe havia formulado, aquando de uma das suas, cada vez mais frequentes, recaídas. Dela transparecia, para além da sua profunda ligação a Portugal, a sua imensa fé religiosa, que talvez tenha sido uma das fontes onde ia beber a sua admirável coragem.

Lamento não ter comigo a garrafa da "melhor cachaça do mundo", que fez questão de me enviar, depois de eu ter elogiado o néctar, num almoço em casa do ministro brasileiro da Defesa, Nélson Jobim. Nesse dia, ainda abalado por um internamento recente, José Alencar disse-me, em voz baixa: "Temos de arranjar dois copos daquela cachacinha que ali está, com rótulo verde. Mas não diga à Mariza, porque um deles é para mim..."

Logo que puder, vou beber um copo dessa cachaça pela memória desse amigo, um homem bom e corajoso, que se chamou José Alencar.


(Artigo publicado no "Correio da Manhã", 31.3.11)

30 de março de 2011

Programme de stabilité*

La presse européenne a été, ces derniers jours, spécialement attentive à la situation politique portugaise et, en particulier, au rejet par le parlement du dernier Programme de Stabilité et de Croissance (PSC), ce qui a entraîné la demande de démission du Premier Ministre José Sócrates.

Des dirigeants européens, ainsi que de nombreux commentateurs internationaux, ont analysé la situation créée au Portugal émettant, parfois, des jugements de valeur sur le sens de la décision parlementaire portugaise.

Personne ne doute du fait que, bien plus qu’ailleurs, cette question a été, et l’est encore, l’objet d’une importante polémique au Portugal. Le Gouvernement et l’opposition entretiennent un intense débat sur les possibles conséquences de la votation qui n’a pas approuvé le PSC : l’exécutif affirme que ce dernier va dans le sens des recommandations de la Commission et de la Banque Centrale Européenne, qu’il était autorisé à exécuter, et l’opposition considère que le gouvernement a dépassé le mandat qu’il avait pour assumer des engagements à l’extérieur. Ce débat, qui n’est pas encore clos, finit par constituer la toile de fond sur laquelle se projette l’idée de convocation d’élections anticipées.

D’après la façon dont l’opinion publique internationale vient de se prononcer sur ce sujet, on éprouve la sensation que l’on n’a peut-être pas suffisamment intériorisé que le système européen repose, avant tout, sur l’affirmation démocratique des institutions représentatives de ses États.

On pourra dire, parfois, que la rationalité technico-économique de quelques décisions devrait, en théorie, être indépendante de désagréments d’ordre national qui finissent par influencer l’efficacité du système collectif.

C’est une erreur de penser cela. Au stade dans lequel se trouve la construction européenne, la principale responsabilité des gouvernants continue d’être celle envers les institutions de leur propre pays, qui leur accorde la légitimité pour gouverner et prendre des décisions.

Tout comme dans le passé, où certains traités européens ont échoué ou ont dû être rectifiés par des référendums dans quelques États, l’Europe doit apprendre à vivre avec la diversité de ses modèles institutionnels, avec la différente force de ses gouvernements dans leur ordre interne et, ainsi, avec les effets, paralysants ou non, que certaines positions nationales viendront générer sur le processus collectif. Ceci est valable pour le vote parlementaire qui, au Portugal, serait à l’origine d’une crise politique, tout comme nous avons naturellement accepté la décision irlandaise de réaliser un suffrage, ou comme, en ce moment, nous attendons le résultat du vote finlandais, avec l’impact qu’il aura dans l’approbation du nouveau Mécanisme de Stabilité.

Dans le cas portugais, je conseille de moins regarder l’arbre et un peu plus la forêt. Ainsi, nous devons noter, en priorité, que le Gouvernement et le principal parti de l’opposition, bien qu’ayant pris des positions opposées à propos de l’acceptation du projet du dernier PSC, ont toutefois affirmé leur pleine et commune adhésion aux objectifs de réduction du déficit, pas seulement pour l’année en cours mais aussi pour les deux prochaines années, sans qu’il y ait la moindre divergence entre eux en ce qui concerne  les engagements que le Portugal a souscrit auprès des institutions internationales. 

*Artigo publicado no diário económico "Les Echos" (30.3.11), sob o título "Programme de stabilité: pourquoi nous, Portugais, avons dit "non". Link aqui.

26 de março de 2011

Retratos de cidades*

Ialta – Recordarei para sempre a marginal dessa antiga praia aristocrática do mar Negro, de onde a “nomenklatura” soviética há muito já tinha desertado, nesse ano tão longínquo na história, de 1980. O simbolismo diplomático levou-me a visitar Ialta, atrás da memória da moderna Tordesilhas. Nem a beleza do palácio Livadia, em cujo jardim figurei Stalin, Roosevelt e Churchill, atenuou a tristeza que ressoava das lojas cheias de nada interessante e de gente resignada ao cinzento da vida. Nunca regressei.

Alcântara – Em 2006, esta cidade do silêncio agarrou-me pelo inesperado da monumentalidade das suas casas fantasmas, onde somos obrigados a imaginar uma anterior vida de fausto que não rima em nada com a atualidade. Não deixa de haver uma inescapável ironia na circunstância desta urbe de outros tempos, feita de sombras e ausente de gentes, ser hoje a vizinha mais próxima do avançado centro de atividades espaciais brasileiras. Do outro lado da baía de S. Marcos, fica a sensação que S. Luís do Maranhão, entretida no culto dos seus azulejos, nem parece notar esta sua pérola colonial.

S. Tomé – Foi a minha primeira ida a África, em 1976. A cidade tinha o ritmo, ao mesmo tempo apaziguante e abafante, de uma vilória portuguesa, na qual alguém havia plantado alguns edifícios de soberania, de gosto mais do que discutível. A marginal, que deve ter sido bonita, perdera muita da graça no seu descuido. Era a capital de um país novo, a nascer numa cidade que já estava velha. As pessoas que cruzava nas ruas pareciam estar à espera de alguma coisa indefinida. Regressei algumas vezes, com alguma angústia, a esse país de gente simples e simpática, suspenso no tempo, nosso amigo.

Trieste – Conhecia-a pela filatelia, com o seu particular estatuto internacional, no pós 2ª guerra, que aguçou a minha curiosidade adolescente. Li-a mais tarde como ninho de espiões, de encontro dos mundos da sombra. Em 2004, em alguns dias, pude constatar a ambiguidade de uma urbe italiana pelo nome, austríaca pelo caráter e jugoslava (não eslovena) pela natureza. Percebi então melhor por que Ian Morris escreveu “Trieste or the meaning of nowhere”. Não creio que dois visitantes possam dela trazer a mesma ideia.

Panjim – Em 2007, fui a Goa para tentar perceber o Portugal que por aí passara e o que dele ficara. Saí de lá mais confuso do que quando cheguei. Passar nas Fontaínhas, ou em ruas com nomes que nos são comuns, não obsta a que estejamos num mundo que é bem diferente de nós, porque provavelmente sempre o foi. Como português, senti que o passado que ainda por ali anda em algumas esquinas é já só um pretexto para reforçar a singularidade local. O que, contudo, nos deve deixar orgulhosos, mais de cinco séculos idos.  

Serajevo – A capital da Bósnia-Herzegovina nunca deixou de ser o lugar geométrico mais simbólico das tragédias da Europa. Desde que lá fui, pela primeira vez, em 1996, sempre senti o peso insuportável dos seus imensos cemitérios, uma vida quotidiana recolhida sobre si própria, como que temerosa dos olhos espalhados pela orografia envolvente. Nos seus habitantes, há como que uma espera permanente do dia seguinte, a que o visitante atento não consegue escapar. Para a Europa, Serajevo é a anti-Bruxelas.

Singapura – Pode a perfeição ser um defeito? Há qualquer coisa de totalitário numa cidade que exclui, porque os afasta com vigor, a pobreza e o menor desvio do padrão comportamental definido como ideal. Nas ruas floridas e nas lojas opulentas daquela ilha artificial, onde o sucesso é a lei de vida, há um mimetismo idealizado do ocidente, incrustado numa Ásia de que sobrevivem apenas os clichés desejáveis. Bandeira chamaria Pasárgada a Singapura?   

* Publicado na revista "Intelligent Life", edição portuguesa, primavera 2011