1 de outubro de 2003

Da Democracia na Europa


Agora que o trabalho da Convenção sobre o Futuro da Europa recolheu dos lideres europeus, como se previa, o ambíguo estatuto de “boa base de trabalho” para a futura Conferência Intergovernamental (CIG), regressaremos ao debate polarizado entre soberanistas e federalistas.

 

Nos primeiros, vamos encontrar os que procurarão explorar a ambiguidade do novo modelo em favor da figura do Presidente do Conselho Europeu – logo, da intergovernamentalidade -, tentando que o novo MNE europeu acabe sob a sua subordinação e manietado pela unanimidade na PESC. Esperarão também que o novo papel atribuído aos parlamentos nacionais possa ajudar a travar o aprofundamento integrador. Alguns, mais radicais, procurarão vir a aproveitar os novos processos de ratificação a 25 (com alguns inevitáveis referendos) para lançar uma frente de rejeição do novo modelo institucional, agitando com o espectro da cedência definitiva de áreas essenciais de soberania. Isso está facilitado no caso dos países menos populosos, onde se evidenciará a escassa capacidade nacional futura para influenciar o processo decisório.

 

O federalismo tenderá a permanecer em pousio táctico. Pressentindo, com realismo, que o ar do tempo não é o mais propício a certos avanços radicais, os federalistas contabilizam, contudo, alguns incontestáveis ganhos da futura Constituição (desde logo, a aprovação do conceito), nomeadamente no aumento das votações por maioria, no correspondente acréscimo do papel do Parlamento Europeu, o qual também ganha no processo de designação do Presidente da Comissão. Comemorarão, ainda, o reforço das funções da Comissão na área externa, onde esperam poder explorar a “internalização” do novo MNE europeu. Tiveram a arte de vender bem algumas concessões formais em matéria de subsidiariedade – o palavrão que comporta a ideia da tomada das decisões a um nível tão baixo que se não perca a eficácia – e, com isso, seduziram e desactivaram muitos parlamentares nacionais, a montante das ratificações pelas suas assembleias, ao dar-lhes um novo estatuto no escrutínio na coisa europeia. Mas agora, os federalistas acham que o tempo é de esperar para ganhar, na sua vetusta leitura de que a integração europeia é como que um inelutável plano inclinado para o modelo federal, uma espécie de determinismo que é a versão bruxelense do “processo histórico”.

 

E há os cínicos, também dos dois lados. Os que esperam que a confusíssima trindade de poderes – presidentes do Conselho Europeu e da Comissão e MNE europeu (o qual, por sua vez, será também vice-presidente da Comissão) – crie, a prazo não muito longo, uma conflitualidade explosiva que acabe por ser mais uma parteira da História europeia. É no sentido do rebentamento dessa conflitualidade que esses cínicos se dividem. 

 

Uns acham que esse será o momento da tomada de consciência europeia que garantirá “amanhãs que cantam” loas ao modelo federal, iluminando definitivamente os povos sobre os malefícios da preeminência dos governos nacionais, em prejuízo da óbvia racionalidade do processo integrador. 

 

Os outros esperarão que os povos nacionais percebam, finalmente, que o aprofundamento do projecto europeu é uma falácia que funciona apenas em favor da continuação da dominação pelo directório e apelarão a uma espécie de “levantamento nacional anti-federalista” em vários países, com a consequente vaga de fundo na exigência do repatriamento de competências.

 

Finalmente, há os optimistas ou ingénuos, igualmente de ambos os lados: os que julgam que a próxima CIG será ainda o momento para rectificar de forma significativa o que a Convenção produziu, por pressão de alguns governos ou como fruto dos debates a desencadear nos “fringe meetings” dessa famosa sociedade civil que a bem sucedida operação giscardiana de Bruxelas conseguiu meter no bolso. Alguns poderão ganhar alguma coisa na forma, mas – não nos enganemos – prevalecerá a verdade de Lampedusa.

 

Mais coisa menos coisa, este é o esquisso da constelação de posições que aí vem. 

 

Por mais que o acto “refundador” em volta da Convenção se dê ares de “fim da História”, até para sossegar os temores dos que vivem preocupados com a revolução revisionista que marcou o destino dos últimos tratados europeus, há que ter presente que a dinâmica é a marca inelutável deste processo e que, como dizia aquele avisado dirigente desportivo, o que é verdade hoje pode não sê-lo amanhã.

 

Assim, não se admirem se, no fim do exercício da CIG, nas horas finais do novo Tratado de Roma, acabarem por aparecer uns “pontos a discutir ulteriormente”, já com data marcada. Se assim acontecer – como foi em Amesterdão e em Nice -, estaremos perante aquilo a que o jargão europeu designará como os “reliquats” ou “leftovers” de Roma. Se vierem a ler isto, meus amigos, preparem-se para mais uma revisão dos tratados, perdão, da nova Constituição, a prazo. É que a arte dos construtores europeus é como a dos empreiteiros nas nossas casas: deixam sempre algo por concluir e, quando regressam, vêm com o discurso do “já agora porque não...” para fazer mais qualquer coisinha e aumentar a factura.

 

Que fazer ?, como diria um clássico que fingia não saber a resposta. Obviamente que essa resposta agora não é unívoca, porque não há necessariamente um terreno comum mínimo entre os que se sentem tocados pela fé europeísta e os que têm uma perspectiva algo aljubarroteana da História. Salvo talvez a necessidade realista de encontrar formas de salvar o adquirido e de não regredir nas vantagens que só um cego não viu no saldo da integração europeia. 

 

Embora, nuns e noutros, curiosamente, convivam Direita e Esquerda, por razões e medos comuns ou opostos. É este o interessante efeito secundário do debate europeu: deslocar a controvérsia para terrenos que não convocam, com linearidade, as lateralizações ideológicas tradicionais. O que, tornando o debate interessante, o não facilita necessariamente.

 

Mas porque não estamos aqui para um mero “voyeurisme” do fenómeno europeu, vale a pena ler a realidade pelo olhar dos que tendem ultrapassar os problemas de acordo com as regras de trânsito, isto é, pela Esquerda.

 

Nesta perspectiva, creio que a grande questão que se coloca, cada vez com mais pertinência, tem a ver com o processo de afirmação da vontade democrática na decisão europeia. E, nesse contexto, tentar perceber dos ganhos e das perdas.

 

Ao transferirmos para Bruxelas poderes que eram nacionais, fazêmo-lo no pressuposto de que, a nível europeu, vamos encontrar mecanismos de controlo democrático que, de certa forma, possam substituir os que existiam a nível de cada Estado. Partilhamos soberania, logo, devemos partilhar o modo de a regular.

 

A nova Constituição prevê que os parlamentos nacionais possam intervir no processo comunitário. Mas é óbvio que esse esforço de projecção europeia, que foi, desde o início, boicotado pelo Parlamento Europeu, ficou muito aquém do mínimo eficaz e, a meu ver, os parlamentares nacionais acabaram por ser os inocentes úteis da Convenção, tanto mais que o facto de nela terem tido assento facilitará um “soft landing” da futura Constituição nas respectivas assembleias. Os poderes consultivos que ganharam podem, com o tempo, vir a revelar-se interessantes mas, na prática, o seu poder tenderá a ser mais dilatório que efectivo.

 

Questão diferente teria sido se, como alguns pretendiam, os parlamentos nacionais tivessem podido organizar-se com o estatuto de “segunda câmara” do Parlamento Europeu. Mas a ideia não teve pernas para andar porque ressoava a federal, porque criava uma instância de representação nacional equitativa e isso fracturava as desigualdades que o híbrido sistema actual protege.

 

Assim, o padrão prevalecente na gestão europeia desses mecanismos de controlo – a nível do Conselho de Ministros ou do Parlamento Europeu – afirma, ainda de forma mais acentuada, uma chave de distribuição de poder que é cada vez mais proporcional ao peso demográfico. (Esta Constituição agrava isso e é a prova indirecta de que Nice não era um mau Tratado para os Estados de pequena e média dimensão, como alguns tentaram fazer passar). Isso faz com que os países mais populosos tenham progressivamente vindo a ganhar em termos do seu próprio controlo nacional das decisões tomadas a nível europeu, pelo que até estão de parabéns por isso. Mas, porque o poder não é elástico, isso também significa que alguém o está a perder, e nós sabemos bem quem é.

 

Para um pequeno ou médio país europeu, rico e desenvolvido, este problema pode ser importante no plano simbólico, no orgulho nacional. Mas só nesse plano. É que, na prática, os seus interesses essenciais estão perfeitamente representados na média dos que os grandes países impõem no processo decisório de Bruxelas (todos ricos, com excepção da Polónia e, ainda em certa medida, da Espanha). É que os níveis de desenvolvimento são a grande lógica de alianças em Bruxelas, seja no processo de produção legislativa, seja na repartição orçamental.

 

Já o problema se põe de forma muito mais dramática para um Estado, médio ou pequeno, que não faça parte desse “Turf Club” europeu e que tente afirmar interesses que, por repercutirem a sua pobreza relativa, apareçam como marginais face ao contexto médio. Nesse caso, já não estamos só perante a perda simbólica de controlo democrático das decisões, mas também em face de um processo que ignora ou marginaliza alguns importantes interesses nacionais. Este é um problema que hoje se coloca a um país como o nosso e que vai encontrar companheiros de infortúnio na grande maioria dos novos países aderentes.

 

Há que reflectir no potencial papel moderador da Comissão Europeia neste contexto.

 

Poder-se-á argumentar que o facto da eleição do futuro Presidente da Comissão ser mais “politizada”, por vir a emergir da maioria do Parlamento Europeu, possa conduzir à assunção de novas responsabilidades. Para muitos, isso vai contribuir para a fixação de um programa de acção que pode e deve acolher a generalidade dos interesses em jogo, como saldo de um debate político de fundo.

 

Não alimento esse tipo de ilusões. As realidades políticas Esquerda/Direita, quer em matéria de deputados europeus, quer no que toca a governos, têm uma importância ínfima quando se trata de defender interesses nacionais. Salvo em algumas questões doutrinárias, os debates mais divisivos não se processam nunca por linhas ideológicas, mas por meras expressões dos interesses em causa. Importa ver claro: por exemplo, dentro do Partido Socialista Europeu, o peso dos defensores do agravamento dos poderes em favor dos países mais populosos e mais ricos tem precisamente a mesma expressão que nos grupos mais conservadores. Nunca me foi dado ver qualquer maior solidariedade em favor dos países menos desenvolvidos ou de menor dimensão no seio da “família socialista europeia”, quer no tocante aos fundos estruturais, quer, principalmente, em matéria de repartição do poder decisório. 

 

Alguns bem intencionados retorquirão: mas a Comissão, enquanto tal, como guardiã dos Tratados, vai demitir-se de assegurar a prevalência do “interesse comum europeu”? Em tese não deveria ser assim, mas não é por acaso que, na nova Constituição, os comissários indicados por todos os países deixam de ter direito generalizado de voto (que, note-se, se fazia no seio da Comissão por maioria simples !), como, há muito, os países mais desenvolvidos vinham a reclamar. E aceito apostas em como a primeira Comissão a ser formada com base neste novo modelo terá uma maioria de Comissários vindos da área mais desenvolvida da União, independentemente da dimensão dos respectivos países de origem.

 

Alguns dirão que isto é um processo de intenções, uma teoria conspirativa, e que o que a todos sinceramente preocupa é a eficácia funcional da Comissão (é fantástico como, há poucos meses, todos os parlamentos dos Quinze votaram um Tratado que assentava numa lógica diferente). Eu arrisco-me a pensar que a nova Constituição é um hábil “preemptive strike” para repor o “statu quo ante”. Isto é, para evitar que a mera projecção dos mecanismos institucionais anteriores (e porque Nice não era suficiente) criasse condições para que, com o alargamento, a “nova Europa” menos desenvolvida (mais pobre) pudesse vir a pôr em causa o desequilíbrio de poderes que sempre prevaleceu em favor dos interesses da “velha Europa” desenvolvida (mais rica). 

 

Uma “luta de classes” nacionais na Europa? Nem tanto, mas uma tensão mais desenvolvidos/menos desenvolvidos vai marcar o futuro próximo da União Europeia.


Publicado em "Ideias à Esquerda"