As mudanças políticas que ocorreram na Geórgia no final de 2003 vieram chamar, uma vez mais, a atenção para um mundo muito vasto, constituído pelos Estados que resultaram do desmantelamento da União Soviética. Dos países bálticos à Ásia Central, da Bielorússia ao Cáucaso, os últimos anos converteram a periferia da Rússia numa área política algo heterogénea, onde se cruzam interesses económicos e estratégicos, cuja evolução dá sinais de perturbar frequentemente o poder político em Moscovo.
Terá a Rússia razões fundamentadas para temer um surto induzido de instabilidade nas suas cercanias, com implicações efectivas na sua segurança futura? Ou estará Moscovo a reagir de forma desproporcionada à constatação da dificuldade de controlar os processos políticos gerados à sua volta? E que condições terá para promover uma reacção eficaz, em moldes que preservem a sua imagem e credenciais internacionais como poder democrático?
A vizinhança imediata
O processo que levou Moscovo, no auge da implosão da URSS, a ter de conceder plena soberania a vários dos seus Estados integrantes, pondo fim a uma União que havia sido preservada em torno de um modelo político em colapso, acabou por dar origem a realidades nacionais diversas, mas, em grande parte, assentes em regimes de matriz algo autoritária, embora com fórmulas constitucionais teoricamente democráticas. Com excepção dos Estados bálticos, na maioria desses países sobreviveu uma cultura política que, curiosamente, passou a ter mais a ver com a herança dos tempos soviéticos do que com a situação entretanto instalada na própria Rússia contemporânea.
Aos primeiros tempos dessa fragmentação sucederam-se tentativas de retomada centrípeta de alguma coordenação de políticas, de que a CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi o exemplo mais patente. Mas a desconfiança histórica e os ciclos de instabilidade nos diversos Estados afectaram sempre os fundamentos de tais estruturas de cooperação intergovernamental, a que a crise económica quase generalizada afectou a eficácia funcional. Além disso, alguma flutuação na afirmação externa das novas lideranças russas, fruto de razões internas e da evolução da conjuntura internacional, deu origem a etapas também diversas no seu relacionamento com o near abroad, não obstante a permanência de algumas constantes.
Esta nova realidade circundante trouxe a Moscovo, talvez mais do que a nostalgia de um poder perdido, a necessidade de convivência com a proliferação de entidades políticas autónomas, com dinâmicas próprias, quase sempre marcadas pelo sinal de uma potencial instabilidade política, fruto das suas crises de legitimidade. Aquela que sempre foi a matriz da preocupação histórica de Moscovo – a segurança no seu cenário estratégico de proximidade – converteu-se numa crescente obsessão, em particular para um poder militar que cedo entendeu que tinha de se contentar com um futuro sofrível de afirmação tecnológica, com tudo o que isso implica em termos operacionais, além do mais num quadro constrangente de colocação de forças convencionais. A falta de meios económicos para apoiar qualquer actividade significativa sustentada fora da sua área geográfica continua hoje a limitar a possibilidade da Rússia servir como polo de atracção para os seus vizinhos, com excepção dos casos em que algum recurso a Moscovo se mostra como escapatória para afrontar crises internas ou a proteger tais regimes no quadro de pressões internacionais. Em qualquer dos casos, as limitações com que a Rússia se defronta são óbvias: a sua credibilidade internacional não lhe permite arriscar ultrapassar, sem custos sérios, a red line da ingerência interna e, por outro lado, algum nacionalismo estruturante da identidade dos Estados que se destacaram da URSS constitui-se quase sempre como uma limitação a uma excessiva promiscuidade política com Moscovo. Se a nostalgia da “doutrina Brejnev” subsiste ainda na mentalidade de alguns, o realismo político deve já ter interiorizado a noção de que as aventuras têm um preço internacional muito elevado.
Um caso interessante continua a ser a relação de Moscovo com os países da Ásia Central, onde o padrão autocrático assume modelos diversos, que nalguns casos reproduzem mimeticamente a liturgia soviética. Face às singularidades destes regimes, a Rússia assume uma atitude de compreensão, alegando o respectivo estádio de transição e procurando demonstrar, contra o seu próprio exemplo, que não é prudente queimar etapas, apenas para impor um modelo democrático. Tem vindo a ser interessante observar o modo como a Rússia procura explorar alguma “solidão” internacional de alguns desses Estados, estendendo-lhes sempre a mão política, num esforço que deve ser também lido como de recuperação de alguma influência. Uma influência que tem como limite as próprias condições económicas da Rússia, que lhe não permitem assumir-se como sólida alternativa no plano da ajuda internacional.
O fim da buffer zone
O precipitar dos antigos países socialistas do Centro e Leste do continente para os braços da União Europeia não foi uma surpresa para a Rússia. A Europa comunitária garantia um modelo de estabilização democrática e uma promessa de ajuda ao desenvolvimento económico-social que ia na linha óbvia do projecto das classes políticas emergentes naqueles Estados, quase sempre tributária de uma cultura marcada por forte desconfiança face a Moscovo. A adesão representava, além disso, uma rede subliminar de segurança. Com efeito, esses países entenderam que a simples entrada no clube dos potenciais candidatos à adesão os punha praticamente ao abrigo de uma qualquer, embora improvável, atitude adversa por parte da Rússia, situação bem patente no caso dos três Estados bálticos. Moscovo cedo entendeu que tal movimento era inevitável, tendo talvez contado, erradamente, com a ausência de vontade e de capacidade da União Europeia em avançar com determinação para um processo de tal amplitude.
Com reticências iniciais, em especial ligadas à crescente vocação para uma política de segurança colectiva da União Europeia e à sensível questão báltica, Moscovo conformou-se assim com o alargamento, embora preserve ainda claras reservas à sua extensão sem limites, como haverá oportunidades para confirmar no futuro. Além disso, não deixa de recear, não sem alguma razão, que a estabilidade da relação criada com Bruxelas venha ser posta em causa por eventuais tensões induzidas na PESC pelos novos aderentes, muitas vezes com evidente apetência para explorarem traumas ou contenciosos históricos, ou ainda pendentes, com Moscovo – dado que a nova Rússia continua a ser vista por muitos como um mero sucedâneo da URSS. Neste caso, apenas pode confiar em que a densidade dos interesses da União Europeia sobre si projectados, económicos e de outra natureza, venham a ser um factor de peso para limitar tal deriva.
Mas as objecções essenciais da Rússia quanto ao posicionamento internacional desses países situavam-se noutra dimensão: o alargamento da NATO. Não obstante a Aliança Atlântica ter entretanto elaborado um apreciável quadro formal de cooperação com a Rússia, tendente a gerar confiança e a atenuar tensões, a entrada na NATO de um número significativo de países da Europa Central e Oriental é vista como uma dulcificada “provocação”, que coloca as fronteiras da organização a escassas centenas de quilómetros de Moscovo. A alegada mudança de natureza da organização é um argumento interessante mas demasiado sofisticado para uma cultura político-militar pouco dada a nuances de conjuntura. A circunstância do Ocidente continuar a ligar a ratificação do Tratado CFE Adaptado (que regula a dimensão e colocação das forças convencionais na Europa), bem como a adesão a este Tratado dos países bálticos, à observância pela Rússia dos “Compromissos” firmados em 1999, na cimeira da OSCE em Istambul (retirada de forças e material da Moldova e Geórgia), contribui para potenciar os receios de Moscovo. As fundadas esperanças colocadas pelos EUA no papel da “nova Europa” são um factor acrescido nesta perturbação instalada.
Um alibi de oportunidade
As ondas de choque do 11 de Setembro transportaram a Rússia para uma nova realidade, feita de oportunidades acompanhadas de receios. Por um lado, o seu alinhamento na luta anti-terrorista lançada pelos EUA, com o consequente fechar de olhos circunstancial às suas práticas de imposição político-militar na Chechénia, deram a Moscovo um ensejo para fazer, sem grandes sobressaltos internacionais, aquilo que em circunstâncias normais teria gerado, no mínimo, clamores de condenação. Se a movimentação do nacionalismo checheno não tivesse enveredado pelo desespero como arma política, talvez Moscovo tivesse mesmo conseguido uma solução, neste tempo que lhe foi concedido pela realpolitik.
Mas a queda das Twin Towers trouxe também uma nova – e, aos olhos russos, preocupante – situação na sua fronteira sul. Com a bênção internacional e com um alibi irrecusável, os EUA avançaram pelas Ásias Meridional e Central com uma displicência que a Rússia não pôde disputar, por se tratar do combate a um inimigo que Moscovo definira como comum. Mas entre o Afeganistão e o Iraque alguma água passou sob a ponte. Embora os EUA mantenham a Rússia como parceiro formal de um diálogo ao mais alto nível, vão apresentando como factos consumados aquilo que Moscovo apreciaria fosse produto de uma regulação negociada.
A actividade dos EUA no Cáucaso era, de há muito, um dado adquirido nos equilíbrios da região. Com um pouco discreto apoio à liderança familiar do Azerbaijão e um compromisso com a política de equilíbrio de sobrevivência de Chevardnadze, Washington tinha já conseguido assegurar, sem preocupações de maior, a sustentação do seu projecto petro-político na região. O pouco discreto apoio de Washington à eclosão vitoriosa da nova liderança geórgia obrigou Moscovo a mostrar as últimas cartas de desagrado: reforço da determinação secessionista da Abcásia e da Ossétia do Sul, com a Ajária como jogada intermédia, e uma inesperada recusa, na reunião ministerial da OSCE, em Dezembro de 2003, em Maastricht, de renovar, embora em moldes que o Ocidente queria novos, os “Compromissos” que havia feito em Istanbul. Recorde-se que parte desses mesmos compromissos se prendem precisamente com a manutenção de três bases russas na Geórgia, contra vontade do governo local.
Mas os restantes compromissos, desta vez relativos à Moldova, originaram também uma outra crise. Quase em simultâneo com o eclodir da revolta geórgia, a Rússia apresenta um hábil plano federal para a Moldova, assente no reconhecimento explícito da autonomia da Transnístria, a região secessionista em que Moscovo mantém tropas e material, que se comprometeu, em 1999, respectivamente a retirar e a destruir. A principal “habilidade” deste plano, rejeitado pelo governo moldavo sob o que a Rússia considera ter sido uma pressão ocidental, previa a continuação por um longo tempo das tropas russas, que mudariam o seu estatuto para “forças de manutenção de paz”, desta vez legitimadas pela comunidade internacional. O fracasso desta iniciativa constituiu um golpe humilhante para Vladimir Putin.
Os próximos anos dar-nos-ão resposta a questões que só agora têm condições para ser postas, até porque os respectivos termos de referência estão em constante mudança. Os EUA começam a dar mostras de não ter pejo em forçar alguma tensão com Moscovo, sempre que tal seja compatível com um universo de cumplicidade objectiva de onde continuam a retirar evidentes vantagens. Por outro lado, a renovada legitimidade interna do Presidente Putin permite-lhe, quando oportuno, afirmar agendas de prestígio nacionalista, com o tema da segurança a servir de alavanca instrumental. Estaremos a caminho de um novo, embora diferente, modelo de Guerra Fria?
( Publicado em "O Mundo em Português", nº 53, Lisboa, 2004)
Os meus cumprimentos pelo texto clarividente de 2004, à luz da guerra da Geórgia. Tudo o que nessa época era (mais ou menos) latente, com a situação actual vivida na Ucrânia, materializou-se, concretizou-se. O texto contém todo o devir que conhecemos agora, mas curiosamente, nunca utiliza o termo "Ucrânia", et pour cause. Mas é claro, de facto, sobre aquilo que hoje é patente e tem a dimensão do escândalo moral e político (para mim que sou ingénuo, para outros, mais frios e experientes, será apenas uma simples manifestação de realpolitik, claro) e que é: a arregimentação da UE (os ditos Acordos de Parceria) e da OTAN (já mais que esgotada a sua missão com o fim da União Soviética, mas que sobrevive e vive como fautor de guerra até ao Afeganistão) para a estratégia de dominação americana (e do seu modelo de capitalismo) de Sines a além dos Urais. Nota já muito à parte: são curiosas as recentes tomadas de posição economico-financeiras do Reino Unido e as hesitações da Alemanha relagtivamente a mais esta frente de guerra, não são?
ResponderEliminarTranscreverei com todas a referências como o exemplo que um análise sólida, ainda que curta, sobrevive ao teste do tempo. Nesses momentos de paixões é sempre importante ouvir quem fala com serenidade.
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