A reacção da comunidade internacional perante actos terroristas permanece marcada por um debate ideológico que, sendo importante como exercício político, reduz forçosamente o consenso em torno das medidas para lhes fazer face.
Uma certa direita abespinha-se quando alguém pretende trabalhar as raízes do terrorismo, sejam os quadros de exclusão social e política em que o mesmo prospera, sejam os conflitos regionais que ajudarão a potenciar a radicalização. Nela se encontram os que reagem belicosamente quando alguém coloca em causa a bondade da intervenção no Iraque ou questiona as conquistas estratégicas que Washington tem feito sob a capa da luta anti-terrorista. Para esses polícias do espírito, arguir com a injustiça da situação palestiniana ou com as ilegalidades face ao Direito Internacional, como elementos que têm que ser avaliados no quadro dos fundamentos da vaga terrorista, significa, de imediato, colocarmo-nos no universo da justificação, que o mesmo é dizer, ajudar a causa dos terroristas. Este “terrorismo” ideológico deve ser denunciado, sem contemplações, como um novo maccarthismo, porque as situações de injustiça ou de ilegalidade não deixam de o ser apenas pelo facto de terem sido recuperadas por uma agenda radical.
Alguma esquerda, por seu turno, numa obstinada cegueira anti-americana, esquece o carácter retrógrado da mensagem do islamismo radical, a imposição da sua mundividência que está subjacente às motivações terroristas e afasta, com uma facilidade pouco abonatória, o frontal questionamento face à natureza bárbara dos actos indiscriminados que ciclicamente atingem civis inocentes. Numa ambiguidade imperdoável, essa mesma esquerda esquiva-se a condenar liminarmente os actos terroristas, como que temendo que, ao fazê-lo, pudesse pôr em causa a legitimidade de outras reacções de natureza violenta, em casos extremos de lutas de libertação. Ao colocar a questão palestiniana, ou a presença estrangeira no Afeganistão ou no Iraque, como a directa essência justificativa do problema, esta doutrina parece esquecer que, mesmo que tais questões hoje se resolvessem, por um milagre que ninguém espera, as fontes da instabilidade islâmica radical iriam continuar, porque já adquiriram uma dinâmica própria que ultrapassa tais elementos conjunturais. Além disso, o facto de alguém se colocar contra os EUA, por muito desfavorável que possa ser a imagem da sua administração, não lhe confere um automático certificado de honorabilidade ou atenua qualquer culpabilidade, pelo que este maniqueísmo primário se torna igualmente inaceitável.
As recentes acções terroristas com alvos indiscriminados configuram um figurino novo de desestabilização, diferente das acções selectivas que predominaram no passado. E suscitam a grande questão que todos somos chamados a responder: estamos ou não dispostos a dar luta, política e prática, a uma agenda islâmica de assalto radical às sociedades seculares, que são a forma organizada de vida em que queremos assentar o nosso futuro?
Para além da necessidade de medidas de prevenção e combate aos actos terroristas, e mesmo com vista a conferir-lhes legitimidade, é importante chamar a racionalidade a terreiro e procurar saber se, à esquerda e à direita, estamos preparados para desenvolver uma acção política de promoção dos valores das sociedades laicas, das formas de expressão democrática para o exercício do poder político, de respeito pelo Estado de direito, de defesa dos direitos humanos internacionalmente consagrados, nomeadamente os direitos das mulheres e das minorias.
Esta é a questão essencial, para cuja resposta é também necessário que se ouça, mais alto do que se tem ouvido até agora, a voz do islamismo moderado, aquele que consiga conciliar o respeito por uma religião que é promotora de elevados valores éticos com a preservação das regras básicas de convivência e tolerância, próprias das sociedades modernas.
Este é o único debate ideológico que tem uma legitimidade incontroversa. Não perceber isto é contribuir para a nossa divisão e a nossa hesitação perante um adversário que põe em causa todos os modelos de sociedade onde hoje cabe, e queremos que continue a caber, a salutar confrontação política que só a democracia nos permite.
(Publicado no "Diário de Notícias", 29.7.2005)
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