1 de novembro de 2005

Portugal e a política externa brasileira


       A ideia central deste exercício é identificar alguns parâmetros característicos da actual política externa brasileira e procurar cruzá-los com as linhas centrais mais relevantes da afirmação de Portugal no quadro externo. A partir daí, tentar-se-á constatar apenas o que for óbvio: as coincidências, as eventuais dissonâncias ou os diferentes sublinhados.
       A observação da política externa brasileira, ao longo dos tempos, é um exercício fascinante, para o qual podemos contar hoje com uma óptima historiografia e uma análise teórica interna de grande valia. Servida por uma excelente escola de diplomacia, mundialmente reconhecida, a política externa brasileira configura um dos mais bem sucedidos modelos ditos “do Sul”. E os últimos anos mais não têm feito do que confirmar que estamos perante um modelo coerente e dinâmico.
       Embora seja sempre difícil, e mesmo caricatural, tentar tipificar um quadro de opções externas de um país, julgo poder dizer que o Brasil assenta hoje a sua afirmação internacional em alguns postulados-base. Vou tentar identificá-los:
     
       - a necessidade do reforço do tecido político-económico regional em que o Brasil está inserido, com vista a favorecer o desenvolvimento económico-social e a criação de condições para um futuro de paz e estabilidade de todos os Estados da região, bem como a servir de instrumento eficaz de interlocução a um nível mais global;
       - a preeminência do sistema multilateral, como instrumento regulador da sociedade internacional, ao qual, na sua perspectiva, importará introduzir mudanças que, simultaneamente, reforcem as suas democraticidade, representatividade, legitimidade e credibilidade;
       - uma política alargada de criação de acordos e entendimentos estratégicos globais “a Sul”, como forma de gerar uma dinâmica multipolar na ordem mundial e abrir espaço para novos e criativos modelos de articulação entre países emergentes e em desenvolvimento, com impactos na respectiva relevância à escala global;
       - a afirmação de uma nova liderança na gestão do posicionamento dos países em desenvolvimento na ordem económica internacional, em especial no quadro da Organização Mundial de Comércio (OMC) e nas negociações comerciais entre espaços de integração regional;
       - a titularização de uma agenda própria “do Sul” na ordem internacional, nomeadamente através da promoção de políticas multilaterais de combate à fome, à pobreza e à exclusão social, de mecanismos de protecção do desenvolvimento sustentável, bem como a transformação das instituições financeiras internacionais à luz de uma nova filosofia no apoio aos processos de desenvolvimento.

       Embora estes cinco tirets estejam longe de esgotar a ambiciosa e criativa agenda internacional do Brasil, eles representam, na minha perspectiva, os eixos que importa considerar para o modelo de abordagem a que me propus.
      Vou tentar analisar, perante cada um deles, o modo como Portugal se situa.
   
América do Sul versus América Latina

       Quanto ao primeiro ponto – reforço do sistema político-económico regional –, começaria por notar que foi sempre com grande entusiasmo que Portugal acompanhou a formação do Mercosul, a densificação do seu tecido de políticas e o seu carácter embrionário como elemento de integração regional. Desde o primeiro momento, o nosso país reconheceu as virtualidades deste projecto para o desenvolvimento económico-social dos países envolvidos, e dos que poderia vir a abranger no futuro, tanto mais que ele significava a vitória de uma ordem de valores de liberdade, democracia e justiça social que eram comuns ao próprio projecto europeu em que nos inserimos.
       Portugal tem notado que os projectos que envolvam a América do Sul têm representado, para o Brasil, uma prioridade nos modelos de entendimento que procura promover no âmbito do continente americano. Percebemos a racionalidade geopolítica desta opção, tanto mais que se torna evidente que há lógicas de vizinhança próxima que facilitam a identificação de interesses comuns, seja na coordenação estratégica em matérias de natureza política mais global, seja na abordagem de temas transnacionais com uma dimensão regional específica, como é o caso do ambiente, do combate ao narcotráfico e à criminalidade que lhe está associada.
       De facto, ao procurar reforçar a América do Sul com uma crescente identidade própria, de que o projecto da Comunidade Sul-Americana das Nações (agora chamada Unasul) é uma interessante evolução em termos de modelo de cooperação política à escala regional, o Brasil está a contribuir, de forma decisiva, para se afirmar, como grande país democrático que é, como uma potência de influência, susceptível de ser um eixo de articulação da sua vizinhança próxima. Isso permitirá favorecer a capacidade de prevenção de conflitos intra-regionais e contribuir também para a criação de plataformas colectivas de promoção de diálogo que facilitem a regularização de eventuais tensões internas nos Estados vizinhos.
       Neste quadro, e não sendo um país da região, compreender-se-á que Portugal não possa ser indiferente, por razões que são óbvias, à evolução das tensões políticas na Venezuela. Foi, aliás, o próprio Presidente Lula que revelou ter estimulado o nosso país a manter-se empenhado neste importante dossiê, onde se jogam interesses vários e, em especial, equilíbrios geopolíticos que excedem a sua dimensão nacional.
        Para Portugal, a criação de uma massa crítica própria que permita auxiliar à resolução dos conflitos regionais, bem como à promoção de soluções constitucionais para redução da conflitualidade dentro de alguns dos Estados, constitui sempre um interessante objectivo. Tem sido essa, aliás, a linha que defendemos para outros quadrantes geográficos.
       Todos temos de ter a consciência que outras alternativas a este modelo poderão vir a passar pela presença condicionante ou constrangente de poderes exógenos à sub-região, normalmente aproveitando a fragilidade ou a complacência de alguns parceiros, com consequências históricas que configurariam muito mais do que um simples recuo temporário.
       Mas também percebemos que a vocação regional do Brasil se não esgota a sul do continente, porque, como diz Marco Aurélio Garcia, “a ênfase sul-americana da política externa brasileira não significa abandonar uma perspectiva latino-americana e caribenha”. É o que fica evidente, por exemplo, no caso da liderança brasileira das forças multinacionais no Haiti e na sua política, muito específica, face a Cuba.
       No primeiro caso, a presença brasileira no Haiti configura uma tendência de responsabilização regional que, como antes referi, vai no sentido do que Portugal preconiza como desejável em matéria de operações de paz. 
       No segundo caso, o nosso país revê-se na leitura europeia que pugna pela necessidade do regime cubano dar concretos sinais de abertura em termos de respeito pelos Direitos Humanos e pelos princípios democráticos. Como o Brasil, discordamos da tentativa de aplicação extra-territorial de normas legais impostas num quadro nacional específico e entendemos, contra a opinião de outros, que as portas do diálogo político não se podem fechar nunca. Sem querer ir muito mais longe neste tema, diria que o Brasil tem, apesar de tudo, uma leitura mais flexível do que a União Europeia quanto à condicionalidade política que deverá ser apresentada a Cuba, no quadro da sua desejável inserção na comunidade internacional. Mas o Brasil partilha o essencial das nossas preocupações.   

A aposta multilateral

       Passaria ao segundo ponto, para sublinhar que, no tocante à preeminência do sistema multilateral, tem sido patente que há uma coincidência muito grande de pontos de vista entre Brasília e Lisboa.
       Portugal é um activo defensor do multilateralismo como instrumento privilegiado de regulação da ordem internacional e, tal como o Brasil, favorece uma reforma do sistema das Nações Unidas, nomeadamente o alargamento do Conselho de Segurança onde – como sempre dissemos – o Brasil deve ter direito a um lugar permanente, pela relevância do seu papel como actor regional, com expressão à escala global. Cabe lembrar, neste contexto, que o Brasil não tem armas nucleares nem conflitos externos pendentes, possui uma economia cada vez mais expressiva e uma forte e respeitada tradição diplomática. Tudo isto o qualifica para tal papel.
       Talvez não tenhamos, rigorosamente, a mesma leitura sobre as virtualidades e exequibilidade da transformação da Assembleia Geral numa espécie de contra-poder ao Conselho de Segurança, com vista a “assumir as suas responsabilidades na administração da paz e da segurança internacionais”, como foi proposto pelo Presidente Lula, mas somos muito favoráveis a um reforço deste órgão no quadro da divisão onusina de poderes.
       Encaramos também, com muita simpatia, a perspectiva brasileira de conferir uma utilidade mais efectiva ao Conselho Económico e Social (ECOSOC), que deve encontrar o seu ponto de articulação com o Conselho de Segurança, na prevenção dos conflitos e nos processos de reconstrução pós-conflito.
       Como o Brasil, Portugal coloca o seu pleno empenho na generalização da cobertura do Tribunal Penal Internacional e do Acordo de Quioto, bem como no completar do quadro normativo de combate ao terrorismo de natureza internacional. Neste particular, Portugal, tal como o Brasil, salienta a necessidade de serem tidas em atenção as raízes sociais, económicas e políticas do terrorismo, nomeadamente as de natureza regional, e defende que o seu combate deve sempre fazer-se no escrupuloso respeito pelos Direitos Humanos.
       Aqui chegados, convirá relevar que Portugal assume hoje, no seu desenho de evolução desejável da ordem multilateral, uma diplomacia de matriz marcadamente ética, como um dos factores identitários fundamentais da sua política externa. Assim, e na perspectiva portuguesa, os limites à não-ingerência deixam de ser válidos quando estiverem em causa valores maiores de natureza humanitária, da defesa da ordem democrática, do Estado de Direito e da protecção dos cidadãos e dos seus direitos fundamentais, nomeadamente o exercício pleno das liberdades políticas e de expressão. Uma análise comparada com a perspectiva brasileira quanto a esta temática específica está, contudo, por fazer.

As novas alianças

       Uma terceira ordem de prioridades do Brasil liga-se à sua recente vocação para o estabelecimento de acordos estratégicos com outros Estados do “Sul”.
       Nos últimos anos, e no prolongamento de uma política de diálogo que, desde há muito, soube construir e prolongar com outros actores internacionais, o Brasil revelou um interessante dinamismo que o conduziu a entendimentos de natureza bilateral ou plurinacional, de grande alcance potencial. O objectivo concreto é, nas palavras utilizadas pelo Presidente Lula no seu discurso de posse, “estimular os incipientes elementos de multi-polaridade da vida internacional contemporânea”.
       Algumas críticas surgiram no mercado dos comentadores face a esta opção brasileira por dar ênfase à sua relação com os países em desenvolvimento. Ora a verdade é que nada indica que esta opção tenha sido feita em aberto detrimento de outras dimensões externas. O que aconteceu é que esse movimento foi simultâneo com a ocorrência de alguns bloqueamentos na relação no Brasil com o “Norte”, de que são exemplo as dificuldades técnicas em torno da negociação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), os problemas negociais no estabelecimento do acordo Mercosul-União Europeia e os atrasos ocorridos no debate do dossiê agrícola no quadro da OMC, no âmbito do ciclo de Doha.
       Mas voltemos às escolhas externas de novos parceiros feitas pelo Brasil.  Destacaria cinco iniciativas nesse contexto.
    A primeira diz respeito à China. Com ousadia, o Brasil estabeleceu laços de natureza económica muito concretos com Pequim, concedendo à economia chinesa o seu reconhecimento como economia de mercado. Esta aposta está, a meu ver, ainda numa fase de teste, porquanto o modelo em vigor – exportação de matérias-primas do Brasil para a China e importação brasileira de produtos chineses manufacturados – não cessa de suscitar algumas reticências nos sectores industriais brasileiros concorrentes da produção chinesa, um pouco aturdidos com a invasão de muitas mercadorias baixo custo.
       No plano estratégico, porém, esta opção do Brasil só pode merecer encómios. Quaisquer que sejam os fantasmas de alguns, a realidade é que a China passa por um processo de transformação interna cuja evolução positiva só pode fazer-se se associada à sua progressiva consagração internacional como economia de mercado. A União Europeia, e com ela Portugal, assume esta opção como decisiva, a prazo, para o equilíbrio global, pelo que esta linha de orientação brasileira é vista por nós com grande simpatia.
       Ainda no campo estritamente bilateral, o Brasil encetou também uma aproximação à Rússia, havendo hoje perspectivas de um relacionamento comercial cada vez mais intenso. Também esta aproximação vai na linha que, no seio da União Europeia, temos preconizado, no sentido de garantir à Rússia um quadro crescente de articulação externa, por forma a fazer frutificar a sua economia e a reforçar a sua abertura, garantindo, por essa via, a solidificação da sua estabilidade, a qual, naturalmente, não é indiferente a uma União Europeia alargada até às suas fronteiras.
       Numa lógica “Sul-Sul”, que associa os equilíbrios geopolíticos com os interesses económicos, o Brasil tem ainda feito esforços de coordenação com a Índia e com a África do Sul, com a criação do IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), numa articulação que combina as legítimas ambições desses três Estados em verem assegurados lugares permanentes no Conselho de Segurança na ONU e, ao mesmo tempo, conjuga alguns interesses comuns no âmbito do comércio internacional.
       Nomeadamente em relação ao primeiro daqueles propósitos, Portugal tem, como já referi, grande simpatia pelas ambições do Brasil e da Índia e reconhece a importância da África estar representada futuramente, em permanência, no Conselho de Segurança da ONU, sendo Pretória um candidato perfeitamente qualificado para tal.
       Finalmente, é muito interessante a iniciativa, sob a liderança do Brasil, da promoção de uma reunião em Brasília entre os países árabes e os países da América do Sul. Este encontro consagra uma ofensiva diplomática de grande alcance levada a cabo pelo Brasil, nos últimos anos, junto dos Estados árabes, no sentido de tentar reforçar os laços económicos e promover um diálogo político mais substantivo entre os dois mundos. Os sinais deste exercício são positivos, embora naturalmente sempre tributários das agendas retóricas que as questões do Próximo e Médio Oriente determinam. O facto de haver terceiros países que não esconderam a sua incomodidade com o exercício acaba por ser, a meu ver, a prova provada da sua real importância. Dito isto, é óbvio que se trata de uma iniciativa muito interessante, que um país como Portugal não pode deixar de saudar e estimular, atentas as suas excelentes e crescentes relações com o mundo árabe.
       Ainda a África. Não tendo a intenção de abordar aqui a questão específica da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), diria que o Brasil regressou, mais recentemente, a um renovado interesse por África, com que só podemos congratular-nos. O Presidente Lula e o chanceler Celso Amorim têm desenvolvido uma ampla agenda de contactos com países africanos, com os quais mantêm constante diálogo político e estabelecem amplas redes de cooperação bilateral. O prestígio do Brasil em África é muito grande e só tem condições para crescer.
       Na perspectiva de Portugal, que tem procurado, no âmbito bilateral, manter uma grande atenção às dificuldades de desenvolvimento e de estabilização política em África, bem como pugnado, no quadro multilateral, por políticas realistas de ajuda aos países em desenvolvimento, esta relação “Sul-Sul”, que o Brasil tem titulado, é da maior importância e alcance.

A liderança regional

       E passaria ao quarto ponto daquilo que defini como a agenda externa brasileira: a liderança regional nos processos negociais económicos internacionais, nos quadros da OMC e das relações com os EUA na ALCA e com a União Europeia no Mercosul.
       O presidente Lula costuma falar de uma “nova geografia económica e comercial” e, na realidade, o Brasil mostra-se muito empenhado em redesenhar esse novo mapa. Bem apoiado por um aparelho diplomático de primeira qualidade, que se treinou durante anos numa diplomacia comercial muito eficaz, o Brasil foi o grande promotor e líder do G-20, que tem tomado a dianteira nas negociações económicas multilaterais, de Cancún a Genebra. Embora tivesse de desistir da candidatura do embaixador Seixas Corrêa a director-geral da OMC – um nome que Portugal teria apoiado se o candidato da União Europeia não viesse a ser seleccionado –, o Brasil continua a ter um papel central nestes novos tempos da negociação.
       Menos produtivas têm sido as negociações relativas à ALCA e entre o Mercosul e a União Europeia.
       No primeiro caso, os sinais de evolução são ténues e, por vezes, algo contraditórios, talvez porque não esteja adquirida por todas as partes a bondade do saldo possível deste exercício. Menos que uma questão política, com contornos ideológicos, como alguns pretendem sublinhar, o processo ALCA é tributário de lógicas de interesses muito concretos, que são a linha da frente dos obstáculos com que se defronta.
       Quanto ao Mercosul, uma negociação que directamente nos afecta, gostava de deixar duas notas, não harmónicas entre si.
       A primeira para registar que, no quadro da negociação agrícola do Mercosul com a União Europeia, Portugal pode hoje considerar-se apenas um espectador atento. Com efeito, as grandes reivindicações agrícolas europeias dizem-nos muito pouco, isto é, apenas nos cumpre respeitar a nossa solidariedade formal com os parceiros da União Europeia. Como “contribuintes líquidos” da Política Agrícola Comum da União Europeia (isto é, de uma política para a qual pagamos mais do que recebemos), não temos interesses nacionais importantes a defender neste dossiê e, porventura, numa lógica de egoísmo nacional, que naturalmente não assumimos, teríamos mais vantagens, como importadores e consumidores de produtos agrícolas, se algumas das reivindicações do Mercosul acabassem por ser aceites sem dificuldade. É com este “entusiasmado” estado de alma que estamos a acompanhar o dossiê... Nem mais, nem menos.
       A segunda nota é de sentido bem contrário. Portugal é um país que, tal como outros parceiros da União Europeia, tem vindo a defrontar-se com sérias dificuldades, no domínio pautal, mas também ao nível dos obstáculos não pautais, no acesso do escasso leque se produtos que procura colocar no mercado brasileiro. Temos, assim, uma divergência com o Brasil no capítulo do acesso aos mercados e não vale a pena chamar à colação a retórica da excelência das relações bilaterais para tentar iludir uma realidade que é do pleno conhecimento de todos. Só podemos esperar do Brasil, no âmbito da sua negociação com a União Europeia, uma especial atenção a estes nossos problemas[1].
       E chegámos ao quinto e último vector das prioridades brasileiras – a promoção de uma agenda política “do Sul”.
       É neste terreno que o prestígio do Presidente Lula tem feito a diferença no cenário internacional. Com uma credibilidade que lhe advém do seu sucesso interno em matéria de políticas sociais, o Presidente brasileiro tem desenvolvido interessantes iniciativas tendentes a promover a tomada de consciência internacional quanto à necessidade de uma estratégia concertada na luta contra a fome, a pobreza e a exclusão social, tendo lançado a proposta da criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome. Portugal apoia em pleno estes objectivos.
       Numa dimensão paralela, o Brasil tem advogado a necessidade da assunção de uma diferente filosofia nas práticas das instituições de Bretton Woods. Em particular no que toca ao Fundo Monetário Internacional (FMI), com a autoridade que lhe advém do facto de ter já dispensado o acordo de assistência daquela organização, o Brasil tem pugnado por uma alteração dos respectivos critérios contabilísticos, nomeadamente com vista a isentar os gastos em infra-estruturas nas despesas geradoras de défice, bem como a possibilidade de protecção rápida das economias de países em desenvolvimento que venham a ser objecto de ataques especulativos.
       Gostava de deixar claro que, em todas estas iniciativas, o Brasil pode contar com uma atitude favorável por parte de Portugal, cujo empenhamento activo em temas que envolvam apoio a países em desenvolvimento é conhecido.
       Abordámos cinco temáticas-chave no relacionamento externo do Brasil e procurámos, sobre cada uma delas, projectar o que poderia ser uma perspectiva portuguesa.

O grande vizinho do Norte

       Mas nenhuma análise da política externa brasileira ficaria completa de não abordássemos explicitamente a sua relação com os Estados Unidos da América.
       Qualquer leitura impressionista da opinião pública latino-americana registará, seguramente, a relação simultânea de atracção e de hostilidade face à potência hegemónica do continente. O Brasil não escapa a esta realidade e não é possível desenhar a sua história sem fazer esse contraponto constante. Os Estados Unidos tanto são vistos como o eldorado que marca os sonhos, como prefiguram a ameaça, a pressão ilegítima, um ambiente de desconfiança.
        A nosso ver, a actual política externa brasileira assume uma relação de grande maturidade na definição da sua relação com os Estados Unidos. Outra coisa não seria de esperar de um país que, sendo uma prestigiada potência regional, tem óbvias ambições como global player, denotando interesses que, medida a respectiva escala, hoje se intercruzam com os de Washington – de que são prova evidente, por exemplo, as iniciativas face ao mundo árabe, bem como a sua política para a China, a Índia ou mesmo no âmbito africano.
        Washington olha hoje para Brasília como um incontornável parceiro numa América do Sul onde já entendeu não terem desaparecido os germes da instabilidade. É óbvio que aos EUA não agradam as reticências brasileiras à ALCA, como não agradaram as fortes críticas feitas à sua política para o Iraque ou a agressividade das posições brasileiras nas guerras do comércio internacional. Além disso, uma certa “compreensão” com a situação cubana ou uma proximidade tida por exagerada como regime venezuelano também podem não cair bem em Washington. Mas, à la limite, Washington também percebe que lhe é muito útil manter uma relação privilegiada com uma grande força democrática do sul do continente, que tem contactos e acessos que a tradicional desconfiança face a uma grande potência não deixa nunca criar.
       Para o Brasil, esta special relationship crítica revela-se como altamente vantajosa: confere-lhe o estatuto de parceiro privilegiado de diálogo, de interlocutor perante situações de crise regionais e, ao mesmo tempo, dá-lhe a possibilidade de manter os EUA à distância física, evitando as tentações endémicas do eterno vírus da “doutrina Monroe”, que marca o código genético americano. É caso para perguntar se os vizinhos do Brasil já se aperceberam verdadeiramente das virtualidades desta realidade face à sua própria autonomia decisória.
       Pela nossa parte, pela parte de Portugal, é evidente que consideramos importante a constatação desta estabilidade de relações entre o Brasil e os EUA. Ela enquadra-se perfeitamente no nosso próprio quadro de entendimento com os EUA, que é um elemento estruturante do nosso espectro de relacionamento bilateral, que não pode nunca ser dissociado da nossa própria agenda de inserção multilateral, em termos de segurança e defesa.
       Vale a pena lembrar que, no nosso país, a estabilidade das relações com os EUA, que reputamos de essencial no nosso quadro externo, esteve sempre ameaçada por dois desvios de sentido contrário, ambos promotores de riscos graves de ruptura no consenso interno: a doença infantil do anti-americanismo e zelo patético dos hiper-seguidistas.
       Curiosamente, na história da política externa brasileira, encontramos também estas duas síndromas a marcar tempos da relação com Washington. Porém, como antes referi, a actual política externa brasileira teve sabedoria para ultrapassar essa polarização e tem hoje um quadro estável de diálogo com os EUA, que não exclui a saudável afirmação de divergências. Também aqui nos encontramos.

Portugal e Brasil

       Mas, afinal, em que se distingue o olhar português sobre o Brasil do dos restantes parceiros europeus?
       A Europa parece olhar para o Brasil como uma potência emergente dotada de um enorme capacidade para se poder consagrar como uma entidade promotora dos valores da democracia e da liberdade, com um salutar efeito contagioso na sua vizinhança. Vê igualmente o país como um mercado muito interessante, dotado de uma estrutura económica pujante, que dispõe já de alguns elementos de segurança macroeconómica que, em larga medida, parecem pô-lo a relativo cobro de desequilíbrios muito pronunciados, por efeito da flutuação da conjuntura política[2].
       Mas a generalidade da Europa vê igualmente o Brasil apenas como um poder sub-regional, pelo que parte dela tem leituras diferenciadas quanto à respectiva vocação enquanto um poder global. Isso tem consequências, por exemplo, no modo como os vários países europeus olham uma possível presença brasileira no Conselho de Segurança da ONU.
       Ora Portugal vê esta questão em moldes algo diferentes. A matriz de afirmação brasileira no quadro internacional configura um poder amigo e próximo, que se exprime em português e que tem os países que falam a mesma língua na sua proximidade política, com uma mútua interpenetração humana que marca o quotidiano das nossas relações, que cria um espaço de automática familiaridade com permanentes consequências no desenvolvimento das mesmas.
       Temos valores de afirmação externa comuns, temos interesses coincidentes em muitos domínios e, o que é mais importante, nenhuma das dinâmicas de afirmação externa do Brasil no mundo é minimamente conflitual com qualquer vector estratégico em que assentamos a nossa política externa. Este quadro favorável é, além do mais, potenciado por uma relação de intimidade que é única e atípica.
       Alguns dirão que não se deve assentar uma dimensão de política externa apenas na afectividade. E têm razão: é por isso que, desde 1998, temos vindo a dar substância e suporte políticos ao movimento de capitais que se associou à recuperação da economia brasileira; e, por essa mesma razão, há hoje um acordo – que é único no nosso quadro de relações externas, mesmo com países de língua portuguesa, vale a pena lembrar – para a regularização de todos os brasileiros que chegaram a Portugal até 2003.
       É porque a relação entre nós tem um carácter diferente que as coisas se passam de maneira diferente do que sucede com outros países, mesmo com aqueles com os quais temos entendimentos formalmente privilegiados. Alguns não percebem isto e nós, Portugal e Brasil, percebemos que eles não percebam.




[1] A esmagadora maioria das questões de contencioso económico sectorial entre Portugal e o Brasil puderam entretanto encontrar uma resolução satisfatória. A entrada em vigor de um acordo entre a União Europeia e o Mercosul iria permitir, contudo, uma maior segurança jurídica futura para os operadores e facilitaria a rápida discussão técnica de eventuais novos casos, cuja remissão para um diálogo político bilateral se torna sempre inconveniente.
[2] Por iniciativa portuguesa, e durante a sua presidência da União Europeia, em 2007, o Brasil passou a beneficiar do estatuto de “parceiro estratégico” da União. Sobre este assunto, ver Francisco Seixas da Costa, “Tanto Mar? – Portugal, o Brasil e a Europa”, Brasília, 2008.


(Texto baseado no artigo homónimo publicado na revista “Política Internacional”, Lisboa, nº 29, Novembro de 2005)









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