30 de março de 2006

A Europa nas Nações Unidas

O debate em torno da compatibilidade entre a projecção externa da União Europeia e a afirmação individual dos seus Estados nas instituições multilaterais encontra um interessante objecto de análise no caso das Nações Unidas.

Este texto não pretende deter-se sobre como as coisas poderão evoluir no futuro neste domínio, atentas as mutações no perfil institucional da União e a maturação de uma cultura de representação externa comum, mas quer simplesmente registar uma perspectiva sincrónica do modo como as coisas actualmente se passam, daí extraindo algumas ilacções.

Igualmente está fora dos nossos objectivos sumariar os interessantes modelos de cooperação institucional em funcionamento entre as Nações Unidas e a União Europeia, numa grande variedade de áreas de trabalho, designadamente no que toca à prevenção de conflitos e às intervenções para manutenção da paz e da segurança internacionais.

Serão, assim, desenvolvidas três perspectivas: o modo de funcionamento interno da União na ONU, o seu posicionamento no quadro das estruturas de representação política regional dentro da Organização e, finalmente, a situação particular que envolve a presença europeia no Conselho de Segurança.


A cultura política comum

Convém começar por constatar que a cultura de coordenação de políticas que é aprofundada, desde há anos, na União Europeia, em Bruxelas, tem uma tradução paralela em Nova Iorque (o que, com adaptações, é válido para as outras instâncias da ONU, em Genebra, Viena ou Nairobi). Os Estados membros da União debruçam-se nas Nações Unidas, através daquela que é já uma complexa rede de formatos funcionais (alguns regulares, outros ad hoc), sobre a esmagadora maioria das matérias que são objecto de discussão na Assembleia Geral ou no quadro do Conselho Económico e Social (ECOSOC) e respectivos órgãos subsidiários. E, em cerca de 90% desses temas, assumem já posições comuns[1].

A linha de abordagem segue o estipulado no Tratado da União Europeia (Artº 19, nº 1), que prevê que “os Estados membros coordenarão a sua acção no âmbito das organizações internacionais e em conferências internacionais”, nas quais “defenderão as posições comuns”.

Mas enquanto que, na lógica de discussão em Bruxelas, há sempre matérias tabu para alguns países – aqueles que são mais ciosos de preservar a sua autonomia intergovernamental nessas áreas –, em Nova Iorque os 25 são forçados a abordar praticamente todas as temáticas, mesmo, por exemplo, a questão das candidaturas nacionais no quadro da ONU, até há poucos anos explicitamente excluída da coordenação comunitária.

Semanalmente, realizam-se dezenas de reuniões de peritos de todas as missões da União Europeia, antecedendo ou acompanhando, numa estrutura paralela de coordenação, a agenda da Organização. Os embaixadores da União Europeia reúnem entre si, pelo menos, uma vez por semana e todos os semestres com os seus interlocutores externos tradicionais (EUA, Rússia, China, Japão, Grupo do Rio, grupo CANZ - Canadá, Austrália e Nova Zelândia, países associados, etc), bem como com o Secretário-Geral, os seus representantes especiais, as principais figuras do Secretariado e das agências das Nações Unidas.

Dada a predominância na ONU de matérias que estão fora da competência comunitária propriamente dita (i.e., áreas que os Tratados prevêem como relevando da competência comunitária e não já dos seus Estados membros), o papel coordenador das presidências semestrais acaba por ter, neste quadro, um relevo maior face à Comissão Europeia do que aquele que se sente no dia-a-dia em Bruxelas[2]. A Comissão não intervém no Conselho de Segurança, fá-lo apenas informalmente nas Comissões da Assembleia Geral e tem um estatuto muito limitado no ECOSOC, pelo que se limita, as mais das vezes, a tentar fazer garantir que aquilo que é o múnus das suas competências no âmbito dos Tratados se reflecte no modo como os Estados membros geram uma posição comum que represente a União. Fá-lo também a montante, em Bruxelas, no grupo do Conselho que adopta certas posições comuns nas Nações Unidas (CONUN) e procura prolongá-lo em Nova Iorque nas diversas dimensões técnicas em que a União aí se organiza. E, sejamos claros, este é um processo em que se detecta alguma frustração por parte da Comissão, pelo facto de dispor nas Nações Unidas de um estatuto institucional substancialmente mais limitado do que aquele que está habituado a exercer a partir de Bruxelas. De notar que a Comissão procura também, frequentemente, dar relevo ao seu papel nos processos das Nações Unidas através da sua intervenção no financiamento dos programas ou das agências da Organização, de que o PNUD é talvez o exemplo mais evidente[3].

Este processo de afirmação de posições europeias nem sempre é de fácil execução, sendo exigida à Presidência uma grande capacidade de gestão de interesses, tanto mais que a constante necessidade de adaptação face às alterações da situação no terreno (p.e., a evolução da posição de outros grupos regionais) requer uma mobilidade de reacção local em tempo real muito grande, por vezes difícil de compatibilizar com o processo decisório interno de alguns Estados membros.

Também por esse motivo, e no que toca à actuação dos 25 em Nova Iorque, a experiência mostra que as Missões diplomáticas da União Europeia têm vantagem em manter uma massa crítica mínima em cada domínio, por forma a conseguir projectar-se com eficácia na ambição que a União tem de cobrir o essencial das áreas em que as Nações Unidas se desdobram. Essa mesma experiência revela, também, que Missões de países de menor dimensão dentro da União conseguem, por vezes, ultrapassar as limitações da sua própria projecção ao fazerem reflectir, no processo de construção da atitude europeia nas Nações Unidas ou até na intervenção individual em estruturas da Organização (como seja o trabalho das Comissões), uma maior capacidade técnica ou de performance por parte dos seus peritos em determinadas áreas. Verifica-se, aliás, uma tendência crescente para uma espécie de especialização de países da União em certas temáticas da agenda da ONU (no trabalho no seio da União e fora dela), resultante de orientações deliberadas da sua acção externa e, algumas vezes, por virtude de uma eficaz potenciação de modelos privilegiados das suas relações bilaterais ou regionais que transportam para o seio da União.

A este propósito, parece ser de relevar que um sábio aproveitamento dessas vantagens comparativas tende a “igualizar” nas Nações Unidas aquilo que em Bruxelas é a flagrante diferença institucional de representação entre os Estados – seja em peso no processo decisório no Conselho, seja em vozes no Parlamento Europeu, seja mesmo na presença desigual no aparelho burocrático. Convém ter presente que, nas matérias que não hajam sido já decididas no CONUN ou em outras instâncias do Conselho, em Bruxelas, os 25 não votam entre si no seio das Nações Unidas para apuramento das suas posições, sendo sempre obrigados a consensualizá-las, pelo que não sofrem da limitação de terem o seu peso diferentemente ponderado. Pode mesmo dizer-se que cada país União continua a ter um verdadeiro direito de veto na formulação da posição colectiva nas Nações Unidas – e este aspecto não deve ser deixado de ponderar no contexto do processo decisório em Bruxelas e do seu futuro. Serve isto para notar que, se excluirmos a força potencial de implementação operativa que sempre credibiliza de forma diferente a posição tomada por cada Estado – como é o caso especial do Conselho de Segurança ou as decisões em que directamente se projectem diferentes potenciais económicos dos Estados membros –, um pequeno país União Europeia, se bem organizado, pode acabar por ter uma influência no processo de formação da posição colectiva da União nas Nações Unidas muito desproporcionada face à sua dimensão decisória formal.

No que toca aos aspectos substantivos da sua intervenção, é patente que a União Europeia tem vindo a afirmar crescentemente uma filosofia de abordagem temática coerente e altamente enriquecedora para o trabalho das Nações Unidas – sendo hoje o principal aliado do Secretariado nas agendas de modernidade que este procura desenvolver. A União é o principal criador e propulsionador de iniciativas com hipóteses de sucesso, pela ausência de radicalismo e pela capacidade de intermediação de que dispõe em vários quadrantes regionais, bem como pela força objectiva do conjunto de Estados que tem por detrás (nomeadamente nos planos político e económico-financeiro), o que confere um grande credibilidade à sua intervenção. Essa credibilidade é ainda reforçada pela circunstância da União, não raramente, assumir temáticas que não derivam directamente de uma afirmação mecânica de interesses próprios dos seus Estados, mas que representam orientações político-culturais que vão no sentido “politicamente correcto” da agenda internacional, muitas das vezes fruto da sua sensibilidade às expressões organizadas das respectivas sociedades civis. Neste domínio, convém lembrar que a União é um interlocutor privilegiado das Organizações Não-Governamentais (ONG), que nela vêm uma via disponível para canalizar muitas das suas preocupações sectoriais.

Note-se, ainda, que a União Europeia fala muitas vezes nas Nações Unidas, não apenas em seu próprio nome, mas também dos seus países associados, bem como, com frequência, de outros países que lhe estão próximos. Essa representação, que chega a agrupar mais de 30 Estados – os quais, recorde-se, representam de longe a maior parcela da riqueza mundial –, confere um peso excepcional à sua voz nas Nações Unidas.

Como é natural, este papel decisivo na fixação do próprio ritmo de trabalho da Organização dá-lhe uma posição central em todos os grandes debates, os quais acaba por influenciar como nenhum outro país ou grupo regional. Aqui se distingue dos EUA, que quase sempre têm uma força de “condicionamento” – uma espécie de “poder negativo” - muito superior à sua capacidade de influência substantiva. Pode, assim, dizer-se que, nas Naçóes Unidas, a União Europeia existe, de facto, como um poder configurador das agendas da Organização e é por todos percebida como tal.


A Europa e os outros

É obvio que a União tem uma tendência natural, por uma coincidência de padrões culturais e históricos de abordagem, para coordenar as suas posições com outros Estados democráticos com economias de mercado, ocidentais na maioria dos casos – os EUA e os chamados Estados like-minded. A prática demonstra, contudo, que esta agregação de posições funciona numa lógica de “geometrias variáveis”, dependendo das temáticas em causa e sofre regulares distorções derivadas de determinantes geopolíticas ou de outros circunstancialismos.

Vejamos os dois casos.

No caso americano, a lógica da similitude de princípios publicamente assumidos apontaria para uma aliança operativa permanente da União Europeia com os EUA no seio das Nações Unidas. Contudo, como sempre se tem visto, em especial depois da Guerra Fria, nem sempre as coisas correm, na prática, dessa forma. Se em áreas como os Direitos Humanos é possível, frequentemente, encontrar um importante terreno comum a explorar (embora com algumas divergências regulares, em áreas que Washington faz depender de juízos geopolíticos próprios ou de considerações de política interna), tal não sucede numa multiplicidade de outros casos. Por detrás destas dissonâncias está um conjunto variado de razões, que vai desde a singularidade da leitura americana do papel das Nações Unidas na regulação da ordem internacional até a muito distintas filosofias face a importantes temas – como a política de ajuda ao desenvolvimento, as questões ambientais (Protocolo de Kioto), a ordem jurídica internacional (Tribunal Criminal Internacional), a política de testes nucleares (Acordo CTBT), o comércio internacional (conflitos na OMC), as políticas de desminagem, entre muitas outras áreas. Numa leitura caricatural e forçosamente redutora, dir-se-ia que à concepção instrumental e supletiva que Washington tem da ONU, opõe a União Europeia uma filosofia de constante afirmação da preeminência da organização como principal regulador político da ordem internacional, nas diversas facetas do actual processo de globalização, e de espaço privilegiado para a fixação e monitorização de cumprimento dos compromissos colectivos na ordem internacional.

A particular conflitualidade surgida em torno do caso da intervenção no Iraque, a partir de 2003, configurou um tempo muito específico no relacionamento entre os EUA e a União Europeia no seio da ONU. Porém, no saldo dessa crise, não se viu nenhum país europeu tentado a subscrever a leitura reducionista americana do papel da ONU no mundo contemporâneo, como Washington talvez desejasse. Essa é, talvez, a marca distintiva essencial da posição europeia.  

Um segundo caso de relacionamento da União é representado por outros Estados, no essencial tidos por like-minded, mas cujo grau de desenvolvimento, especificidades económicas e políticas conduzem a uma abordagem por vezes diferenciada de certos temas. Estão neste particular alguns países associados e os membros do Grupo do Rio, que reúne Estados latino-americanos[4]. Constata-se, por exemplo, que em políticas como o “Financiamento para o Desenvolvimento”, que esteve em discussão na cimeira de Monterrey (2001), se verificam maiores identidades tácticas de alguns desses mesmos Estados com posições do chamado G-77 (que hoje agrupa mais de 130 países ditos “do Sul” ou equiparados). Similares divergências também se registam, a título de exemplo, quanto às grandes opções em matéria de política agrícola, onde o Grupo de Cairns[5] – com muitos dos seus membros a partilharem uma cultura de valores próxima da União – se afirma frequentemente em campos opostos. E, finalmente, note-se que a posição da União Europeia em matérias de natureza orçamental conflitua muitas vezes com a natural atitude de países que se situam noutras áreas da escala de contribuições.

Significa isto que a União está orgulhosamente só nas Nações Unidas? Não, mas serve para dizer que, não obstante manter com alguns países like-minded uma estreita coordenação em muitas áreas do trabalho, a União sofre hoje de uma singularidade que a identifica bem como uma unidade autónoma no contexto da Organização. Dessa identificação ressalta uma lógica de valores perceptível e coerente, que conduz a uma previsibilidade de atitude e de reacção (o que é próprio de um poder diplomático coerente), bem como uma matriz de interesses muito transparente (fruto da acomodação negociada da sua própria diversidade). Tudo isto, a somar ao seu peso real, converte a União num broker essencial no processo de obtenção de compromissos dentro das Nações Unidas.

Neste contexto, a União é frequentemente – e pode-se dizer, crescentemente – o construtor das “pontes” entre algum radicalismo que emerge do G-77 (onde a acomodação de interesses tem outra lógica de resultados) e a proverbial intransigência (em versão benévola, escassa flexibilidade) dos EUA. Daqui resulta para a Europa um papel de grande relevo na formatação da maioria das resoluções e, como é obvio, no diálogo constante com o Secretariado.

Há, contudo, que ter consciência que este peso da União Europeia começa a ser visto com alguma preocupação por parte, quer dos EUA, quer de outros grupos regionais. Independentemente da bondade das opções doutrinárias que afirma, à União começa a ser assacada uma suspeita de deriva algo hegemónica no tratamento e na concretização operativa de alguns temas em análise na Assembleia Geral ou no ECOSOC (como sejam as questões de desenvolvimento, de Direitos Humanos, de género, etc.). O alargamento da União – que em Nova Iorque foi prenunciado pela subscrição das posições europeias, de forma quase sempre passiva, nos anos anteriores à adesão – foi lido por alguns como tendo constituído um factor de agravamento do actual cenário. Daí que a evolução da União Europeia leve a que se comece a falar na importância de ser repensado o próprio quadro quase-formal de arrumação regional em que as Nações Unidas têm vivido até agora.


A questão do Conselho de Segurança

Das três perspectivas de abordagem propostas, resta a mais complexa: o Conselho de Segurança.

Dão-se por conhecidas as razões que conduziram ao actual modelo do Conselho de Segurança, nomeadamente no que toca aos seus cinco membros permanentes. E também se assume como adquirido que, para uma esmagadora maioria dos observadores, tal modelo está flagrantemente desajustado das realidades do mundo contemporâneo, sofrendo de um evidente “défice democrático”, o mesmo é dizer, de uma assumida crise de legitimidade que tem conduzido, desde há mais de de dez anos, a debates recorrentes com vista a tentar descortinar uma saída consensual para a reforma do Conselho, de que as propostas apresentadas pelo Secretário-Geral, em inícios de 2005, são um corolário. A este respeito, basta notar aquilo que hoje é a anacrónica ausência de Estados derrotados na Segunda Guerra Mundial (como a Alemanha ou o Japão) ou de áreas do mundo ou grupos de países com relevo incontestado na cena mundial (como a África, a América Latina ou os países árabes). A actual situação é, em si mesma, tão irracional que quase parece já não ser passível de resolução por via racional… e quem dela usufrui agarra-se ao status quo na razão directa da sua própria fragilidade.

Dito isto, para bom entendedor, vejamos como funcionam as coisas entre a União Europeia e os seus membros presentes no Conselho de Segurança, começando por notar o que o Tratado da União Europeia prevê neste âmbito no seu Artº 19º, nº 2: “Os Estados membros que sejam igualmente membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas concertar-se-ão e manterão os outros Estados membros plenamente informados. Os Estados membros que são membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas defenderão, no exercício das suas funções, as posições e os interesses da União, sem prejuízo das responsabilidades que lhes incumbem por força da Carta das Nações Unidas”.

Registe-se, desde já, que a União tem sempre um ou dois Estados, no Conselho de Segurança, a título de membros não-permanentes. Isto significa que a União Europeia dispõe, quase sempre, de quatro vozes no Conselho, o que constitui uma expressão importante naquele contexto. Porém, as novas realidades decorrentes do alargamento da União vieram demonstrar que essa cumulação de posições não se traduz, automaticamente, numa voz comum constante, em especial em debates onde a posição americana esteja muito polarizada.

Para além disso, a leitura do que o nº 2 do Art. 19º prevê, em termos de colaboração dentro da União no quadro das Nações Unidas, para efeitos da PESC, está longe de ser unívoca. Com alguma justiça, há que reconhecer que o Reino Unido e a França transportam para o Conselho de Segurança o essencial da vontade colectiva afirmada no quadro da PESC. Ambos os países partilham, além disso, informação daquilo que o restrito clube dos membros permanentes discute e prepara e, quase sempre, mostram-se razoavelmente disponíveis para colaborarem em alguma reflexão prospectiva. Porém – e aqui reside a grande diferença no tocante à implementação da PESC noutras instâncias – ambos recusam explicitamente aparecer como meros intérpretes ou mandatários da vontade colectiva dos 25, nomeadamente em tudo quanto possa configurar actos de decisão operativa do Conselho. Sempre que pressionados a este respeito, ambos respondem que a força operativa da Europa acaba por sair reforçada pelo facto de ter duas vozes permanentes que, de forma diferente mas no essencial articulada, expressam posições que têm atrás de si dois países com relevância própria no plano mundial. E ambos os Estados fazem um permanente desafio: digam-nos (a posteriori, claro) quando as nossas posições ferirem a vontade acordada na PESC.

O modo de gestão das especificidades dos membros permanentes europeus no funcionamento do Conselho seria, em si mesmo, tema para uma longa tese. Diga-se apenas que, registado o argumento do peso cumulativo que esses países invocam, resta a realidade de a Europa funcionar nesse contexto a várias vozes. E isto representa, queira-se ou não, um factor de fragilização da imagem da União no plano internacional.

Essa fragilização é tanto mais evidente quanto esses mesmos dois membros permanentes, à parte a circunstância de comungarem na defesa da sua presença individual, são frequentemente polarizados em sentidos contrários, por virtude da sua relação diferenciada com os EUA – como o caso do Iraque provou à saciedade. Mas, curiosamente, são eles próprios os primeiros a tentar seduzir os outros membros europeus não permanentes para as suas duas leituras diversas, o que torna a posição europeia refém, para além dessas ideossincrasias, de alguns equilíbrios cíclicos imprevisíveis.

Aqui se abre também a famosa questão de um “lugar único” (inaceitável para Paris e Londres) ou de um “novo lugar” para a União Europeia no Conselho de Segurança. Se o primeiro modelo parece inviável, já o segundo pode abrir algumas perspectivas operativas – muito embora se veja por enquanto difícil conciliar ambições diferenciadas de países como a Alemanha ou a Itália e Espanha.

A questão, contudo, também se liga com o futuro da PESC e ao papel do seu Alto-Representante nas instituições multilaterais ou, no futuro, do Ministro dos Negócios Estrangeiros da União. Reino Unido e França – o primeiro mais do que o segundo, reconheça-se – têm assumido uma atitude no sentido de evitar que as intervenções do actual Alto Representante no Conselho de Segurança se possam confundir com a “voz da Europa”. Uma evolução desta situação só parece ter condições de ter lugar se um modelo de representação “aristocrática” (ou de “directório”, se quisermos ser menos subtis) puder proporcionar àqueles dois países, em eventual associação estreita com a Alemanha e em coordenação com alguns outros Estados, a garantia de que o AR/MNE funciona como “fiel administrador” dos seus interesses comuns. Mas esta é uma questão para o futuro e não cabe no objectivo deste texto trabalhar em cenários de projecção - onde também teríamos de considerar a questão já não da PESC mas da PESD e, nesse contexto, especular sobre como resolver a conflitualidade paralizante entre as diferentes culturas de segurança que nela se revelam.

Estes problemas não evitam uma conclusão optimista: a União Europeia constitui nas Nações Unidas uma realidade com crescente pujança e é vista com esperança por outras zonas do mundo, não apenas como um elemento fautor de equilíbrio, de concretização de compromissos essenciais à paz e ao desenvolvimento, mas também como um impulsor fundamental para as finalidades da Organização. Mais do que isso, é vista como uma aposta clara, assumida por uma unidade político-económica com uma intervenção ímpar nas mais diversas áreas do cenário internacional, nas virtualidades e na preeminência do sistema multilateral. Só temos que esperar que a Europa (n)os não desiluda.



[1] “EU countries nearly always tend to vote in the same way in the UN General Assembly, or adopt a similar line in the UN’s functional organizations (nuclear issues are an exception)”, in Steven Everts, Shaping a Credible EU Foreign Policy, Centre for European Reform, London, 2002, pg. 18. O mais completo estudo que conhecemos sobre os padrões de desvio, entre os países UE, no quadro das votações nas NU é de Paul Liuf, The EU starts to find its voice in New York, “European Affairs”, Summer/Fall 2003, Washington.
[2] Situação bem diferente é aquela em que a Comissão Europeia dispõe de competência própria no plano internacional. Nestes casos, a intervenção da União Europeia, através da Comissão, em diversas estruturas do quadro alargado das Nações Unidas, é, de há muito, uma realidade.
[3] A Comissão Europeia dispõe, não obstante o seu limitado papel no âmbito das NU, de uma significativa presença em Genebra, em Nova Iorque e em Viena, no primeiro dos casos com um papel muitoimportante junto de agências das NU ou outras organizações internacionais. Em contraste, o Secretariado-Geral do Conselho tem apenas uma reduzida presença nas duas primeiras cidades. O texto da Constituição Europeia permitiria superar este problema e alguma rivalidade corporativa que actualmente se manifesta entre as duas estruturas.
[4] Mecanismo permanente de consulta e concertação política, criado em 1986, que reune Argentina, Bolívia,  Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Venezuela, Uruguai e um representante da Comunidade do Caribe/CARICOM
[5] Grupo de 17 países exportadores de produtos agrícolas que inclui Estados da América Latina, África e Ásia-Pacífico, como o Canadá, Brasil, Argentina, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, etc.


(Publicado in "Os portugueses nas Nações Unidas - os 60 anos da ONU, Carlos Martins Branco e Francisco Proença Garcia (org), Lisboa, ed. Prefácio, 2006)

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