A ideia da apresentação do livro “Revolução em Portugal“ nesta Embaixada surgiu de uma conversa casual, em minha casa, com o Professor Henryk serwievsky.
Ao saber que uma obra sobre o período da Revolução de Abril estava a ser publicada no Brasil, considerei interessante que ela pudesse ser aqui lançada.
E pareceu-me também curioso, na minha dupla qualidade de Embaixador de Portugal e de militar participante na Revolução de 1974, poder aproveitar para dizer algumas palavras neste acto.
Porém, a vida prega-nos partidas e razões familiares mais do que imperativas impedem que eu possa estar aí hoje convosco.
Por isso, pedi ao nosso Conselheiro Cultural, Dr. Adriano Jordão, que lesse em meu nome este texto.
Esta é uma substituição muito apropriada, aliás.
Para quem não saiba, o Dr. Adriano Jordão era, como eu, militar no dia 25 de Abril de 1974 – imaginem!
O meu objectivo nesta apresentação, é, primeiramente, saudar o lançamento deste interessante trabalho da autoria de Walder Góes, a importância de ver publicada esta espécie de diário de um jornalista sobre o convulso Portugal de então, através do olhar de um estrangeiro.
Um estrangeiro “ma non troppo”, como será sempre o caso de um Brasileiro em Portugal.
Estamos, além disso, perante o olhar analítico e inteligente de alguém saído de um país onde existia uma ditadura, um regime opressivo que também anulava as liberdades e abafava o quotidiano.
Assim, um dos aspectos interessantes deste livro é que ele nos permite recordar textos que eram então lidos no Brasil, descrevendo o tempo da liberdade reconquistada por outro país, escritos com o objectivo de serem publicados numa imprensa que ainda permanecia amordaçada.
E é aí que a arte da escrita jornalística melhor se expressa, nesse hábil teatro de sombras que é falar sobre uma realidade como se ela fosse independente de outra que está sempre presente, mas só se insinua implicitamente.
Trata-se de um jogo subliminar que agora, com o tempo já passado, podemos apreciar melhor.
E o livro de Walder Góes fá-lo sempre de forma muito interessante, servido por uma excelente escrita e uma perspectiva arguta, de onde se decanta o essencial dos factos históricos, como a realidade viria a provar.
Aproveitando este momento, eu gostaria também de vos falar um pouco de como se chegou ao Portugal do 25 de Abril e do modo como aquela Revolução foi vivida no tempo imediato.
É que a Revolução de Abril, o seu desencadear e o modo como veio a evoluir, só pode ser bem entendida se se conhecer a génese da sociedade política portuguesa em que teve lugar.
Convém começar por deixar claro que a Democracia, em Portugal, não é uma coisa nova.
Embora com um interregno de cerca meio século do regime derrubado no 25 de Abril, ela já marcou a Historia portuguesa por mais de 180 anos.
De certo modo, foi a presença da Corte portuguesa no Brasil que criou o caldo de cultura que fez ruir, definitivamente, o Absolutismo em Portugal.
No seu regresso, D. João IV ter-se-á dado conta que o país mudara na sua e pela sua ausência e que os ventos da liberdade política haviam chegado, inapelavelmente, àquele extremo sudoeste da Europa.
O Brasil foi assim, talvez, a última sede de expressão do Absolutismo português.
Todo o Século XIX em Portugal foi, a partir de então, atravessado por uma tensão política muito forte, inicialmente numa guerra civil entre facções absolutistas e liberais, que mais tarde evoluiu para um confronto politicamente mais regulado, entre monárquicos e republicanos.
O peso cada vez mais preponderante das ideias liberais e até socializantes, o papel crescente das sociedades secretas que alimentavam o alvo republicano como cenário de fundo, a crise do modelo colonial em África e a notória incapacidade da corte portuguesa de enquadrar a vontade de mudança que atravessava o país – tudo isso conduziu ao golpe civil e militar que implantou a República, em 5 de Outubro de 1910.
Porém, há que registar que, com períodos autoritários intermitentes, Portugal havia vivido, até então, quase 90 anos de um regime de vivência democrática, que não diferia muito da que então se experimentava em muitos países europeus.
A partir de 1910, e por 16 anos, um regime republicano de cariz parlamentar impôs-se no país.
Esse tempo é marcado por uma tensa polarização entre uma sociedade rural conservadora, politicamente apoiada no caciquismo e com forte influência da igreja, e uma pequena e média burguesias urbanas que ocuparam o essencial dos espaços político-partidários, elas próprias sob forte pressão da agitação nos meios operários – onde o anarquismo e o socialismo radical detinham uma influência importante.
Este complexo puzzle viria a gerar uma instabilidade sócio-política quase permanente, agravada com as tentativas de restauração monárquica e uma inquietação que se sabia crescente nos meios militares, descontentes com a desordem nas ruas e feridos por uma inglória e patética participação na I Guerra Mundial.
Perante uma sociedade portuguesa aturdida e assustada por essa instabilidade, um golpe militar conservador interrompeu esta primeira experiência republicana, em 28 de Maio de 1926.
A chegada dos militares ao poder fez-se quase com naturalidade, dado que seguiu o exemplo de outros países europeus, de que a Espanha era o modelo mais próximo.
Estávamos perante a revolta dos “tenentes” do 28 de Maio, como em 1974 iriam aparecer os “capitães” do 25 de Abril.
A Ditadura Militar, como singelamente se auto-apelidou, veio anos mais tarde a gerar o regime civil do Estado Novo, a ser consagrado na Constituição de 1933.
Nos seus princípios reflectia-se uma espécie de fascismo “soft”, acomodado entre conceitos muito conservadores, fruto de uma espécie de ruralismo político, com a incipiente economia do país enquadrada num regime para-corporativo, que anulava o perigoso sindicalismo e que ia beber as suas bases ao modelo mussoliniano.
Importa notar, porém, que o grau de violência do regime não se pode comparar ao de outros modelos autoritários europeus, cifrando-se em menos de 100 as mortes provocadas deliberadamente pelas forças repressivas do regime – isto, note-se, em 48 anos.
Tal não evitou que, ao longo desses mesmo anos, muitas e muitas largas centenas de pessoas tivessem sido presas, algumas por mais de duas décadas, por vezes muito para além dos períodos a que haviam sido condenadas e em alguns casos em condições penais degradantes.
A polícia política constituiu-se numa realidade omnipresente, os partidos não eram autorizados, as liberdades públicas eram fortemente restringidas e a tortura era regularmente aplicada aos activistas mais radicais.
Com uma vida cívica e intelectual altamente condicionada, a censura aos mídia nunca desapareceu e muitas foram as pessoas afastadas de funções públicas por mera dissidência política.
Apesar de organizar actos eleitorais com regularidade formal, onde as fraudes eram óbvias, nunca nenhum membro da oposição conseguiu ser eleito para a chamada Assembleia Nacional, o nome do parlamento do regime.
António de Oliveira Salazar foi o estratega e, posteriormente, o condutor deste persistente regime. Ministro das Finanças da Ditadura Militar, passou rapidamente a ídolo dos oficiais revoltosos em 1926 e, pela sua mão, viria a chefiar o Governo, onde se manteria, ininterruptamente, entre 1932 e 1968.
Receoso do contágio do radicalismo esquerdista vizinho, Salazar apoiou com sucesso Franco na Guerra Civil espanhola, entre 1936 e 1939.
Durante a II Guerra Mundial, jogou de forma a não hostilizar a Alemanha e sentiu a tempo o vento da sorte aliada, colando-se-lhe com habilidade, optando por conceder facilidades militares nas ilhas dos Açores às forças que viriam a ser vitoriosas.
Como prémio, e com a Guerra Fria a colocar muitos anti-comunistas do mesmo lado da barricada, o seu regime sobreviveu aos tempos democráticos então dominantes e não sofreu pressões insuportáveis para a sua liberalização.
Pelo contrário, viria a ser convidado para país fundador da NATO e, pela mão americana, entrou para a ONU.
Porém, Portugal não viria a ter, como outras potências colonizadoras europeias, uma estratégia inteligente de saída para enfrentar a vaga independentista no que restava do seu império.
Sem perceber que o sonho imperial era isso mesmo, atolou-se, a partir de 1961, em guerras coloniais, as quais, por uma década, foram simultâneas em Angola, Moçambique e Guiné.
Cerca de 200 mil portugueses (numa população de menos de 10 milhões) passaram obrigatoriamente pelas Forças Armadas nas décadas de 60 e 70, com custos sociais e familares muito graves.
Salazar adoeceu em 1968 e foi substituído por Marcelo Caetano, que se revelou incapaz de abrir o regime, não obstante alimentar inicialmente um discurso liberalizante de certo modo equívoco, mas que se revelaria sem sequência.
A questão colonial, para a qual continuou sem soluções, terá sido então o elemento decisivo que rigidificou um regime.
As principais forças empresariais – e é preciso dizer isto alto, de uma vez por todas – nunca tiveram a visão nem o rasgo para se aliarem às personalidades modernizadoras que o início do período de Marcelo Caetano fizera despontar e que poderiam ter auxiliado uma evolução sem ruptura para a democracia.
Os grandes grupos económicos portugueses pagaram bem caro, com o 25 de Abril, essa sua tibieza, a qual, provavelmente, derivou também da sua falta de estratégia para gerir um “phasing out” dos seus importantes interesses em África.
Como acto político, a Revolução de 25 de Abril – e aqui chegamos finalmente ao objecto do livro que hoje é apresentado – acaba por ser a resultante de uma aliança cumulativa de descontentamentos de génese muito diversa.
Esse descontentamento assentava no cansaço das guerras coloniais, no esgotamento do modelo económico, na ausência de entusiasmo para a defesa de um regime parado na História, com o país a ganhar uma crescente consciência colectiva de que caminhava à margem da modernidade.
As guerras colonais haviam obrigado as Forças Armadas a alargarem a sua base de recrutamento, formando oficiais oriundos de classes cada vez mais baixas, por isso cada vez mais sensíveis às realidades criadas pela chocante dualidade social do país.
Por outro lado, a necessidade de formação de quadros de comando conduzia à incorporação obrigatória de milhares de estudantes universitários, um meio onde o ambiente de radicalismo político estava então no auge, incendiado pelas ideologias a que o Maio de 1968, em França, dera ainda maior popularidade.
A junção destes novos recrutas com os militares profissionais que estavam já cansados de uma guerra sem solução política à vista, alimentou nestes últimos um estado de crescente insatisfação face ao poder.
A transformação desse mal-estar num movimento de cariz político foi um salto que alguns souberam ajudar a dar com o 25 de Abril.
O período coberto pelo livro que hoje aqui nos é apresentado inicia-se já depois do 25 de Abril, mas vai a tempo de trazer-nos o essencial das tensões que, pressentidas desde o início, se iriam projectar nos próximos anos.
O livro acompanha a queda trágica de António de Spínola, o General conservador e reformista, crítico de Marcelo Caetano, que os “capitães de Abril” haviam ido buscar para dar respeitabilidade ao seu movimento.
Revela a estratégia de “formiga” do Partido Comunista, a sua hábil colagem ao Movimento das Forças Armadas e nota o seu laborioso processo de expansão dentro dos aparelhos do poder, a utilização da via sindical e a tomada das áreas produtivas, com o aproveitamento das sucessivas crises políticas como suas úteis “parteiras da História”.
Acompanha também a transmutação do Partido Socialista, de grupo com discurso radical a principal paladino da preservação futura das liberdades fundamentais, que vai de par com a luta de Mário Soares para evitar que a legitimidade do acesso ao poder político pudesse ter outra base que não a das eleições livres.
O livro reflecte o árduo papel das forças políticas mais conservadoras, em especial o Partido Popular Democrático (o PPD, criado por Francisco Sá Carneiro, partido que viria a chamar-se PSD) e o CDS (o partido conservador criado por Freitas do Amaral e Amaro da Costa), com o objectivo de garantirem o seu espaço de existência e de afirmação no novo Portugal.
Como um relato radiofónico ao vivo, o texto conduz-nos pelos períodos tensos dos golpes e contragolpes de 28 de Setembro e 11 de Março, a luta entre a moderação e o radicalismo no seio do Movimento das Forças Armadas, que teve o seu ápice no golpe esquerdista falhado de 25 de Novembro de 1975 – data que talvez tenha sido, por muito que isso tenha doído então a muitos de nós, a da fundação do regime democrático que hoje se vive em Portugal.
Este livro tem o muito apreciável mérito de nos ajudar a perceber melhor o que, de facto, nos aconteceu, a entender a razão pela qual Portugal se transformou, por algum tempo, no destino de uma romaria ideológica onde a Europa progressista veio passar as “férias da Revolução”.
E talvez nos faça ter mais orgulho num povo que soube viver tudo isso e que conseguiu, na imensa confusão do fim de um tempo histórico vivido na ressaca do regresso definitivo das caravelas do império, gerar uma sociedade de saudável tolerância e de indiscutível sentido democrático.
Muito obrigado pela vossa atenção.
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