26 de setembro de 2007

A Europa, a cultura e o mundo

       Uma parte da geração portuguesa contemporânea teve o trágico privilégio histórico de viver um tempo de transição; experimentou, já adulta, um ambiente de ditadura, cuja principal perfídia foi conseguir adiar decisivamente o futuro do país, e vive hoje numa democracia para cuja consolidação a Europa teve e continua a ter um papel decisivo.
       Para essa geração, antes de 1974, atravessar os Pirinéus significava “ir à Europa”. A Europa era então uma entidade algo mítica, situada para lá de uma Espanha que se era educado a desconhecer. Era um continente-ideia de que muitos se sentiam sentimentalmente próximos, onde parte de Portugal tinha já então ido à procura do seu futuro económico, mas que se pressentia fisicamente distante, pela imperatividade do condicionamento que era imposto ao dia-a-dia do país.
       Enquanto nação, Portugal era natural tributário das seculares culturas europeias, mas o persistente isolamento sofrido, ligado à prevalência no quotidiano de um mito ideológico que assentava num patético imperialismo tardio, projectava-se em toda a educação e tinha como objectivo deliberado manter o país afastado do continente a que pertencia pela geografia.
       A chamada “nação pluricontinental e pluriracial”, com que a ditadura portuguesa disfarçava o seu anacronismo histórico, tinha o projecto europeu como aberto inimigo. Um jornal do regime tinha mesmo como lema: “Portugal não é um país europeu e tende cada vez mais a sê-lo cada vez menos”. Há meses, a capa de um livro recém-publicado recuperava, com graça, um mapa dos anos 40 do século passado que projectava Angola, Moçambique e todas as restantes colónias portuguesas sobre uma carta da Europa, como que a sublinhar que, perante a importante dimensão conjugada desses territórios, na matriz do chamado “Portugal do Minho a Timor”, essa Europa, enquanto entidade referencial, deveria ter um peso muito relativo e, subliminarmente, ser vista como dispensável na construção do nosso futuro nacional, que era “ultramarino” por vocação.
       Nesse mundo irreal em que o país vivia “orgulhosamente só”, como dizia Salazar, a Europa era, assim, o perigo maior, porque trazia em si a sinistra matriz dos direitos fundamentais, da detestada democracia, a confusão dos partidos políticos e da panóplia de ideias subversivas que tudo isso parecia comportar. Para superar esse mundo de cinzenta fantasia, os sinais culturais da contemporaneidade eram a ponte de ligação ao continente, eram a via de saída da “Jangada de Pedra”, que Saramago viria a fantasiar muitos anos mais tarde.
       Serve isto para sublinhar que uma parte significativa do Portugal contemporâneo não foi naturalmente europeia. Sendo europeus na sua raiz histórica, muitos portugueses acabaram por ser europeus contemporâneos pela vontade e, muito em especial, através da cultura. É que, ao contrário de um cidadão alemão, luxemburguês ou italiano, ou de um jovem português de hoje, uma parte significativa dessa geração ainda foi obrigada a olhar a Europa de fora para dentro. E é irónico notar que nem mesmo a democracia deixou de ser tocada por este dualismo: o slogan de promoção do apoio que Portugal recebia para entrar nas Comunidades Europeias era “a Europa está connosco”. Portugal continuava a ver-se fora da Europa, mas agora já com vontade afirmada de lhe pertencer.
       Para essa geração de transição, foi a cultura que trouxe a Europa ou melhor, que a ajudou a não a perder de vista: foram as livrarias da rive gauche, os romances torturados da Alemanha do pós-guerra, as músicas dos Beatles e dos Stones nas ondas piratas da “Radio Caroline”, as vozes românticas, de Brel e Bécaud até à Eurovisão ou ao festivais de San Remo, a imagem desencantada das paisagens áridas do realismo italiano e a produção mágica da geração dos “Cahiers du Cinema”. Além disso, o Maio de 68 trouxe consigo um inesperado remake de uma certa Europa mítica das revoluções na rua, vivia-se a miragem das bolsas de estudo, em Lovaina ou na Suécia, para evitar as guerras coloniais, quase sentindo como domésticos os debates acesos no “Nouvel Observateur” e no “Temps Modernes”. Mas arrastava-se já, saído das ruas de Praga, um pressentimento, ainda difuso, das tragédias que estavam por detrás do chamado socialismo real, de Djilas a Arthur London, de Soljenitzin a Sakharov.
       Muitos outros portugueses, da mesma geração, seguiram caminhos diversos, uns mais radicais, outros mais serenos – e, nestes últimos, alguns tocados já pelas angustias do cristianismo crítico. Mas, lá no fundo, uma grande e significativa parte deles estava junta na vontade de colocar o país de acordo com a sua geografia. E muitos se acabaram por se encontrar, numa bela manhã de Abril de 1974, com alguns a ajudar a derrubar com alegria o muro construído à sua volta, bem antes da queda do de Berlim.
       Por tudo isso, essa geração de transição talvez tenha ficado mais equipada do que algumas mais recentes para entender, não melhor mas de forma diferente, o que a nova Europa política representava para quem estava fora dela, para quem ansiava juntar-se-lhe e para quem, no mundo, a via como parceiro. E porque a cultura havia sido um importante veículo do seu acesso ao projecto europeu, essa geração confronta-se hoje com duas importantes questões.

Cultura e imagem da Europa

        A primeira é quase existencial: será que os habitantes do continente europeu, que hoje tem a União Europeia como incontornável centro, têm, de facto, algo culturalmente em comum, identitário, que os una e que sintam que os marca como europeus?
       A segunda pergunta é apenas um corolário da primeira, mas prende-se mais directamente com uma perspectiva exterior: como é que a Europa é vista do exterior? Projecta uma imagem cultural própria e unívoca? Que expectativas e anseios cria nos outros?
       Como resposta à primeira pergunta – se os europeus se sentem culturalmente europeus – costuma dar-se o estafado exemplo de que os habitantes do continente se sentem sempre mais europeus quando estão na América, sem revelarem que a América dos últimos anos tem dado uma forte e involuntária ajuda a esse mesmo sentimento. Porém, muitos sentem-se bastante mais em casa num café de Buenos Aires ou numa livraria do West Side de Nova Iorque do que em algumas paragens da Europa geográfica, cujo nome, como dizia Cervantes para um certo lugar da Mancha, no parágrafo de abertura do Dom Quixote, é preferível não lembrar.
       O sentido de uma cultura comum é algo que se projecta na forma como partilhamos tradições, crenças, mitos, projecções e modos de vida, valores próprios, alguns até algo contraditórios entre si, mas com uma matriz que identificamos como muito próxima. É algo que decorre de uma sólida e contínua pertença a uma longa história colectiva, mais própria das nações, muitas vezes dos países ou das regiões, do que dos grandes espaços multinacionais.
       Ora o que na Europa se detecta, mas não fica delimitado nas suas fronteiras, e que faz com que os europeus se liguem a Nova Iorque ou a Buenos Aires, são as chamadas “esferas culturais”, são identidades culturais difundidas por camadas ou sectores, que têm menos a ver com a geografia e muito mais com níveis de percepção conjunta de certos sinais, onde quer que se encontre quem os partilha. Embora anterior à globalização, essa é uma realidade que ela potenciou e que, de certo modo, a internet tornou ainda mais evidente.
       E daqui decorre a resposta à segunda pergunta, à questão do tipo de olhar que quem não é europeu tem sobre a Europa. Correndo o grande risco de se estar a simplificar aquilo que é muito complexo, tudo indica que o mundo está hoje muito longe de percepcionar sinais de uma cultura europeia comum, mas começa seguramente a construir a imagem da progressiva existência de um modelo civilizacional europeu – onde as várias e diversas dimensões culturais do continente se projectam, influenciando-o e sobredeterminando-o.
       Tudo aponta para se poder concluir que o mundo começa hoje a ter uma certa ideia da Europa que é superior, em nitidez de desenho, àquela que a Europa já tem de si própria. Para utilizarmos uma categoria de um filósofo alemão que não está na moda citar, arriscaríamos dizer que poderá haver já hoje uma Europa civilizacional “em si”, mas ainda talvez não haja uma civilização europeia “para si”. Por isso, esse tal olhar exterior, embora detecte uma projecção civilizacional comum, distingue nela, de forma mais ou menos clara, as várias Europas culturais. E nota, em particular, as expressões dos países que mais se afirmam no mercado internacional da cultura, dos poderes de atracção dos seus produtos e conteúdos, bem como a força dos seus meios de suporte comunicacional.
       Mas esse estrangeiro não parece ligar a sua ideia de Europa – seja a Europa em geral, seja a União Europeia em particular – a uma projecção cultural determinada, definida e bem recortada nos seus contornos. E faz bem: se fosse por esse caminho, estaria a sustentar uma falsa caricatura da cultura europeia. Aliás, esse observador exterior tem cada vez mais razão para sustentar esse olhar multifacetado, por exemplo, quando lhe falam da União Europeia: à medida que a União Europeia se alargou, se legitimou como projecto, se reconciliou historicamente consigo mesma, a Europa tornou-se muito mais diversa culturalmente, muito mais pluralista e rica na variedade das respectivas expressões. A pressão da subsidiariedade, que hoje está politicamente protegida, tende mesmo a forçar a atenção para as comunidades locais, para as regiões, para as tradições minoritárias, para aquilo que se distingue e orgulhosamente resiste à força de um template comum. Basta um exemplo evidente: a Europa é hoje uma Babel saudavelmente incontrolável, por mais que alguns queiram espartilhá-la num quadro linguístico reduzido, feito das ambições de quem tem a ridícula tentação de impor, sob o alibi da eficácia, que a palavra demografia venha a ser sinónimo de democracia.
       Mas, como antes se referiu, há uma coisa que o estrangeiro começa a reconhecer, em especial depois que a Europa política passou a querer ser vista como um benigno soft power: esse estrangeiro vê a emergência no espaço europeu, centrada na União Europeia, de uma vontade comum em tentar afirmar, porventura sem ser capaz ainda de a construir por completo, uma matriz civilizacional específica, que vai já para além do padrão clássico da civilização europeia que as bibliotecas guardam, porque o prolonga em novas e actualizadas dimensões.

A matriz europeia

       Onde é que está essa nova matriz? Está, por exemplo, no modelo social europeu e na obstinação de alguns em tentar que ele se reconverta para conseguir sobreviver como um modelo de justiça social. Está na saudável teimosia de quantos defendem que o secularismo continua a ser a imagem de marca da modernidade europeia. Está nos esforços para afirmar o multilateralismo como único eixo legítimo de uma ordem internacional baseada na busca incessante da paz e da justiça, sob a tutela do Direito Internacional, tendo o recurso ao diálogo, à diplomacia e à solidariedade como instrumentos de trabalho. E o mundo vê também os europeus preocupados com as causas colectivas de progresso, como a defesa ambiental, a protecção da biodiversidade e a luta contra as alterações climáticas, pelo fim da pena de morte e pelo combate contra a exploração infantil e das mulheres, contra o tráfico de seres humanos, entre tantas e tantas outras causas que a consciência universal contemporânea elege como prioridades de uma nova ordem ética internacional. Vê também o esforço de muitos, na Europa, em procurar garantir que a necessária luta contra as ameaças radicais, como o terrorismo e outras formas de extremismo, se faça sempre sob a égide da preservação dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais, no respeito pelas minorias e pelas crenças, na preocupação de entender as causas desse radicalismo e algumas determinantes regionais que o potenciam.
       A agenda europeia de preocupações, como a que se expressa num fórum como são as Nações Unidas, comporta hoje um impressionante inventário de ideias que procuram responder aos anseios mais nobres da Humanidade, cada vez mais empenhada em alargar as “boas práticas” ao colectivo. Alguns dirão que ainda estamos no terreno declaratório do “politicamente correcto”, da mera rightousness ideológica e desculpabilizante, e que, no final de contas, tudo isso tem um sentido muito mais formal do que prático. Talvez possa ser assim em alguns casos, mas, pelo menos, a nova civilização europeia terá já escapado muito à hipocrisia dos cultores e admiradores da lógica de poder, que é hoje um desvio perverso da leitura de um filósofo como Hobbes. A maioria da Europa – infelizmente não toda, como se sabe – tem tido a decência de não se deixar alinhar pelo pragmatismo neoconservador, que esteve presente numa deriva oportunista própria de quem vive ao sabor dos ventos prevalecentes, e que tem como objectivo ajudar a conferir uma patine de respeitabilidade ideológica a uma mera e cínica realpolitik unilateralista. 
       Porque este somatório de preocupações humanistas da Europa contemporânea é fruto de um árduo e negociado processo de entendimento e não de qualquer iluminação nacionalista, a principal imagem que a nova civilização europeia hoje projecta, para além de um sentido de tolerância e de diálogo, é a de um apurado culto da liberdade. Talvez porque a perdeu durante muito tempo, de diversas formas e sob diversos terrores, a Europa apresenta-se hoje perante o mundo como o grande cultor e promotor dessa mesma liberdade.
       Os europeus têm a obrigação de sentir orgulho em pertencer a um continente que, por cima de todas as suas imensas contradições, tem hoje o culto da liberdade no centro da sua matriz identitária, que se preocupa com a sua preservação à outrance, que discute os seus necessários limites sempre sob um feroz juízo de ética, com opiniões públicas que controlam a deriva acrítica para as soluções assumidas pelos poderes políticos. Basta recordar o caso dos cartoons de Maomé para sublinhar como as sociedades europeias mostraram estar alerta, recusando, simultaneamente, o facilitismo da realpolitik e o temor reverencial face às tentativas de policiamento ideológico.
       Alguns, mais cépticos e talvez bastante realistas, devem perguntar-se se esta não será uma visão ingénua: onde está esse culto às liberdades nas ruas de uma cidade como Minsk? E nos embaraçantes silêncios face à Chechénia? Porque deixaram os europeus morrer esse culto às portas de Srebrenika? Onde é que ele fica, perante os atentados através dos quais alguns poderes políticos, no espaço geográfico europeu, continuam a condicionar os media e as expressões das sociedade civil, restringem a liberdade das Organizações Não-Governamentais, fecham os olhos à propagação dos ódios étnicos seculares, aceitam, com uma triste complacência, os ataques a minorias que não dispõem de back-up nacionalista, como é o caso dos ciganos? Afinal, quais são as fronteiras dessa Europa ética e a que geografia europeia correspondem? E que se pode dizer a quem vê por aí crescer partidos políticos xenófobos, os quais, discretamente, afloram ao poder em democracias que nos habituámos a ter como sólidas e respeitáveis, sob o álibi da pluralidade democrática e a ausência de memória histórica? É que essa é também a Europa para a qual o mundo exterior olha e cuja existência não pode deixar de abalar a sua crença na solidez e na coerência da primeira, daquela outra Europa dos princípios que se referiu.
       Mas há que perceber que a Europa é isso mesmo. Ela projectará sempre, de si própria, uma imagem confusa, frequentemente contraditória, uma ideia de permanente e endémica crise. Como disse Eça de Queirós, “a crise é a condição quase regular da Europa”. Talvez que essa dialéctica interna, saldo de sofrimentos e de êxitos, esse ar de “casa em obras” contínuas, seja porventura o segredo da vitalidade europeia que o mundo não deixa de apreciar na Europa e, em especial, de contrastar muito positivamente com outras expressões de poder que hoje se afirmam à escala mundial. A Europa contemporânea tem os seus “buracos negros” civilizacionais, mas o debate sobre essas expressões negativas faz-se hoje de forma aberta e sempre tutelada por um referencial ético que já marca as suas instituições.
       E, neste campo, vale a pena fazer um parêntesis para notar quanto teria sido desejável que a Europa comunitária pudesse ter, inserida no seu Tratado, uma Carta dos Direitos Fundamentais vinculativa para todos, sem que ninguém pudesse dar-se ao luxo de saltar para fora dela, por um critério negativo de subsidiariedade, furtando-se a ter o Tribunal Europeu como último juiz. Embora respeitando as idiossincrasias nacionais, que são, em si mesmas, uma prova da diversidade europeia, não pode deixar de considerar-se como lamentável que a Carta dos Direitos Fundamentais acabe por vir a ter, para uns, o mesmo carácter facultativo que o Tribunal Penal Internacional tem hoje para outros.
       Vale também a pena sublinhar que, para o seu exterior, a Europa não é apenas um objecto contemplativo: a Europa é um actor e um produtor de uma multiplicidade de sinais de cultura, que acabam por interagir com a própria realidade de quem está de fora dela. E a Europa sabe bem que, desde sempre, influencia, condiciona e até limita as expressões culturais dos outros. Daí a questão de saber o que devem os europeus fazer com a força da sua projecção e até onde, e em que medida, têm, ou não, legitimidade para actuar de forma pró-activa perante terceiros. Em especial, evitando que isso signifique ou seja lido, muito simplesmente, como um mero voluntarismo proselitista, uma espécie de recolonização pelos valores, à luz de um juízo, também assumido ou não, sobre a superioridade desses mesmos valores. É que o orgulho nos princípios pode ser, se levado ao extremo, uma deletéria forma de insuportável arrogância.
       Esta questão pode parecer deslocada e sem sentido, num mundo de intensas interacções culturais como aquele em que hoje vivemos. Mas não o é, especialmente tratando-se das culturas dos países da Europa. Embora para muitos não seja cómodo estar a recordar isto, e prestando-se esta temática a óbvias polémicas, não podemos deixar de notar que muitos países e regiões do mundo vivem ainda, no seu paradigma histórico-cultural, com uma memória algo traumática relativamente àquilo que foi a presença agressiva das culturas europeias, quer na sua imposição forçada, que muitas vezes passou pela anulação ou desprezo pelas expressões culturais locais, quer nas acções de pilhagem da sua memória patrimonial, que as vitrinas dos museus europeus evidenciam à saciedade. Sabemos que este é um debate que tem fóruns próprios para ser feito, mas vale a pena aflorá-lo porque, por razões várias, ele acaba por renascer sempre que os contrastes entre civilizações emergem no horizonte da polémica, como actualmente está a ocorrer.
       É nunca perdendo de vista este incontornável pano de fundo histórico que os europeus, sem complexos mas com respeito, devem situar a sua reflexão colectiva interna sobre o que fazer e como actuar culturalmente perante terceiros, seja no plano bilateral, seja através das instâncias europeias comuns.

Reflexões finais

       Finalmente, algumas curtas reflexões que, não sendo novidades, são constatações que se afiguram de mero bom-senso.
       A primeira prende-se com a necessidade de garantir que a dimensão cultural venha a estar presente em todos os quadros europeus de relações externas e de cooperação para o desenvolvimento, sejam eles multilaterais, sejam de natureza bilateral. É essencial que, a exemplo do que hoje se passa com as questões ambientais, que acabam por marcar quaisquer intervenções de natureza económica, a dimensão cultural atravesse todas as políticas europeias com repercussão externa. A cultura tem de ser a alma por detrás das políticas da Europa. Uma intervenção friamente tecnocrática, por mais bem intencionada que se apresente, tem uma capacidade de sobrevivência e uma eficácia no tempo e na memória colectiva muito limitada. Tal como acontece com as relações humanas, as relações externas são mecanismos criados com o objectivo de ajudar a tecer redes de solidariedades e de cumplicidades, uma forma de se identificarem pontos comuns, de se gizarem formas conjuntas de colaboração, com vista a potenciar a vontade de trabalhar futuramente também em conjunto. Ter a cultura no posto de comando das relações externas é apenas uma ideia da mais óbvia racionalidade. Se necessitássemos de um exemplo, pela negativa, bastaria olharmos para as lições a tirar do que se passa no Iraque.
       A segunda reflexão liga-se à necessidade de intensificação do intercâmbio cultural, ao potenciar do conhecimento mútuo, ao esforço – que deve ser quase obsessivo – pela promoção no próprio seio da Europa, da diversidade alheia, pelo trabalho incessante de compreensão do outro. Quanto mais a Europa se abrir a expressões culturais que, à partida, lhe sejam estranhas, mais enriquecidas passam a ficar as próprias culturas europeias, mais abertos ficam os espíritos dos seus cidadãos, menos eurocêntrico fica o seu olhar sobre o mundo. E talvez isso contribua para que a Europa fique também mais tolerante dentro de si própria, aceitando melhor as suas diferenças, as suas múltiplas religiões, os seus mitos e as suas diversas idiossincrasias.
       E, finalmente, uma última linha, que pode parecer algo radical, e talvez tenha de o ser: a Europa só pode prestigiar-se perante terceiros quando se revelar, aberta e radicalmente, intolerante contra a intolerância. Este conceito tem sido alvos de aproximações não tão lineares, e Norberto Bobbio tratou-o já com alguma atenção. Mas a experiência recente parece recomendar que a Europa – e a Europa política tem aqui um papel fundamental – deva demonstrar uma disposição inquebrantável perante todas as manifestações que, no seu seio e fora dele, relevem do desprezo ou da menorização por quaisquer expressões culturais, por mais minoritárias que elas sejam.
       Em especial, os europeus devem estar vigilantes quanto à acção dos “polícias do espírito” que avaliam os desvios do modelo-padrão que, no passado e para muitos, caracterizava uma certa imagem da civilização dita ocidental, que nos habituámos a ver no centro do mundo europeu e a impor no mundo dos outros. A Europa tem de derrotar os seus próprios fantasmas e algumas vestais que ainda os representam, como aqueles que afirmam a superioridade da Europa cristã e se obstinam na criação de uma fortaleza política em seu torno. Este é um combate em que está em causa a própria credibilidade europeia e a sua legitimidade como fonte de afirmação cultural e civilizacional. O combate para que a palavra Europa passe, definitivamente, aos olhos do mundo, a ser vista como sinónimo natural da palavra liberdade. 


(Texto baseado na conferência proferida na abertura do Fórum Cultural Europeu, realizado em Lisboa, em 26 de Setembro de 2007.)

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