A assinatura do Tratado de Lisboa, em 13 de Dezembro de 2007, foi vista em toda a União Europeia como o prelúdio de um período de pacificação institucional, após o fracasso do Tratado Constitucional, que havia feito pairar um ambiente de crise sobre o processo integrador do continente. A expectativa de que virá a ser possível fazer aprovar o novo tratado em todos os 27 actuais Estados membros trouxe consigo a ideia de que a Europa comunitária poderá, finalmente, ultrapassar, pelo menos por algum tempo, a querela institucional e dedicar-se ao desenvolvimento das suas políticas e à afirmação plena do seu projecto.
Eça de Queiroz dizia que “a crise é a condição quase regular da Europa”. De facto, se atentarmos nos últimos anos, verificamos ter havido uma forte instabilidade no desenho do projecto europeu, com a multiplicação de interrogações sobre os caminhos a seguir. A Europa comunitária pareceu mesmo incapaz de consensualizar um modelo firme de percurso, vogando ao sabor das conjunturas. Mais do que a demonstração de flexibilidade estratégica, a Europa pareceu dar sinais de estar ainda à procura de si própria.
Será esta imagem a verdadeira face da Europa? Ou existe uma promissora floresta por detrás desta confusa árvore? A resposta é complexa e, como é da natureza das coisas, não é unívoca. A Europa é tudo isso, vai para além de tudo isso e é em tudo isso que assentam, paradoxalmente, a sua fraqueza e a sua força.
A pressão da História
Talvez não haja uma consciência plena de que o continente europeu terá sido a área geográfica onde, nos últimos 20 anos, se produziram mudanças históricas com maior impacto nos equilíbrios mundiais. O fim da União Soviética e o termo da bipolaridade que se projectava sobre a Europa resultaram num novo equilíbrio que obrigou o projecto integrador que era alimentado na sua área ocidental a um esforço de rápida redefinição.
Por detrás dessa redefinição estiveram uma ambição e um imperativo.
De um lado, a União Europeia pressentiu que poderiam estar criadas as condições para se afirmar como um poder autónomo, com um papel político à escala global, que correspondesse ao seu peso económico. Embora a diferença interna de perspectivas sobre o modo como compatibilizar essa ambição com o laço transatlântico nunca tivesse abandonado o bloco, houve um claro esforço no sentido de tentar projectar um rumo próprio, tendo em atenção, em particular, a necessidade de dar atenção e resposta às situações de instabilidade que afectavam a sua vizinhança próxima.
O Tratado de Maastricht, em 1991, foi a resultante mais clara desse esforço. A definição de um quadro para a fixação progressiva de uma política exterior comum, com a sugestão de um caminho para uma política europeia de segurança, foram então de paralelo com um esforço de muito maior integração económica – com a moeda única a vir a dar suporte a um mercado interno que se revelou pujante, embora com alguns claros limites ditados pela ausência de uma vontade política comum.
Por outro lado, a Europa comunitária viu-se obrigada a assumir a responsabilidade de dar resposta às expectativas das novas democracias emergentes do Centro e Leste do continente. O projecto de liberdade e desenvolvimento alimentado durante décadas a Oeste, que se mostrara como destino possível a quantos haviam sofrido décadas de opressão e dependência, teria então o seu teste definitivo.
A Europa comunitária passou bem nesse teste de coerência. Verdade seja que a “pressa” em fazer os alargamentos da União Europeia teve então muito a ver com a oportunidade criada pela fragilidade conjuntural da Rússia. A Europa compreendeu isso, tal como a NATO. A posterior evolução na Rússia provou, aliás, o bom fundamento dessa decisão.
Vale a pena também recordar que, nesse contexto histórico, a Europa comunitária debateu internamente a questão de saber se o binómio alargamento/aprofundamento tinha condições de funcionar, isto é, se seria possível manter e desenvolver o tecido de políticas, ao mesmo tempo que se integravam novos membros. Por óbvias razões, este era um debate incómodo, porque pressupunha, como alternativa teórica, uma visão “egoísta” das vantagens para quem já estava dentro do clube. O saldo desta reflexão sobre o desafio dos alargamentos acabou, como se sabe, por ser favorável à adesão maciça de 10 países, seguidos de mais dois, poucos anos mais tarde. Mas essa reflexão não iludiu, antes reavivou, uma questão nascente em torno do modelo das instituições europeias e da necessidade do seu redesenho perante a nova conjuntura.
O debate institucional
O Tratado de Maastricht foi talvez o primeiro momento em que o debate em torno das instituições comunitárias se afirmou como central nas preocupações europeias. De facto, Maastricht marcou o tempo em que a Europa comunitária abriu decisivamente o caminho para a partilha em comum de poderes que, no passado, sempre haviam repousado nas soberanias nacionais.
Por essa razão, Maastricht foi também o início de um maior escrutínio público às reformas políticas europeias, até aí confinadas à negociação diplomática, com discreta intervenção parlamentar posterior. O alargamento da área de intervenção do Parlamento Europeu – uma instituição mal-amada por muitos governos – trouxe, de igual modo, uma atenção acrescida por parte dos Parlamentos nacionais, preocupados com o deslizar de poderes das suas mãos para o espaço europeu.
A iminência dos futuros alargamentos e a ambição de garantir um leque mais alargado de tratamento comunitário a certas políticas, acabou por conduzir a uma pressão para uma reanálise do Tratado de Maastricht. Um “grupo de reflexão” reuniu em 1995 e produziu uma série de conclusões que uma Conferência Intergovernamental abordou, em 1996/97, e da qual resultou o Tratado de Amesterdão.
Amesterdão não introduziu mudanças radicais, mas avançou no tratamento comunitário de várias temáticas, melhorando os instrumentos desenhados em Maastricht e redefinindo melhor alguns poderes e mecanismos entre as diversas instituições. O consenso de Amesterdão ficou, porém, muito aquém daquilo que certos Estados consideravam indispensável como a base mínima para a União Europeia poder enfrentar os desafios provocados pelos alargamentos que se anunciavam. E, ainda mal o tratado tinha entrado em vigor, logo se avançou para o debate em torno de um novo tratado.
Em Amesterdão havia ficado muito claro que a força relativa dos Estados no processo decisório interno era já objecto de contestação por parte de alguns. A nova Conferência Intergovernamental, iniciada em Janeiro de 2000 e finalizada em Dezembro desse mesmo ano com o Tratado de Nice, tornou essa percepção muito patente e gerou uma séria e inédita conflitualidade entre países de diferente dimensão.
Os Estados mais populosos procuraram então um reforço considerável do seu poder, desfazendo de vez os equilíbrios que sobreviviam desde o Tratado de Roma, e que os anteriores alargamentos haviam confirmado, que ia no sentido de conferir aos países menos populosos uma sobrerepresentação nas votações, em nome do equilíbrio entre o princípio da igualdade entre os Estados e o princípio da representação democrática.
A resultante deste inédito confronto institucional foi o Tratado de Nice, inicialmente apresentado como o texto que, finalmente, permitiria à União Europeia comportar os efeitos dos futuros alargamentos. Nice consagrou a obtenção de um maior poder por parte dos “grandes” Estados, embora a sua complexa maquinaria institucional ainda conferisse importantes salvaguardas aos “pequenos”, ao garantir determinados limiares percentuais de população nas votações e um número mínimo de países para legitimar as decisões. Apesar deste desequilíbrio, pode dizer-se que o Tratado de Nice veio a revelar-se a última trincheira de resistência dos Estados de menor dimensão para evitarem a consagração da sua irrelevância no processo decisório. Assim, Nice acabou por não ser uma vitória dos maiores Estados. Talvez tenha sido essa a razão pela qual foi rapidamente posto em causa.
A lógica dos conflitos
Vale a pena atentar, com alguma frontalidade, nos que está verdadeiramente em causa nas posições relativas dentro do processo europeu – uma análise que, sabemos bem, desagrada a quantos pretendem continuar a viver com a langue de bois do politicamente correcto.
Todos os Estados partilham, naturalmente, a preocupação de garantir eficácia nos procedimentos funcionais da União Europeia. Essa busca de eficácia tem, porém, como óbvio limite alguns critérios de legitimidade, que são interpretados diferentemente pelos vários membros, de acordo com as respectivas tradições constitucionais e com as suas idiossincrasias nacionais. O tecido político interno de todos os Estados não está preparado, a partir de determinado limiar, para aceitar que o primado da funcionalidade europeia se sobreponha ao interesse nacional que a sua soberania lhe impõe salvaguardar. É claro que a definição desse limiar varia muito de Estado para Estado e, do mesmo modo, depende da questão concreta que pode forçar ou violentar essa mesma soberania.
Como antes se referiu, o processo decisório instaurado desde o Tratado de Roma foi marcado por uma sobrerepresentação dos Estados de menor dimensão, que lhes dava garantias de não serem esmagados pelos Estados mais populosos e, de certo modo, lhes permitia, como último recurso, recorrer à formação de minorias de bloqueio que pudessem preservar os seus interesses. O modelo como que procurava respeitar a igualdade do Estados, ponderada esta por factores de mero realismo, mais ou menos aceites por todos.
Vale a pena sublinhar que as grandes linhas divisórias no funcionamento dentro da União Europeia nunca passaram por um confronto entre “grandes” e “pequenos” Estados. O que principalmente divide os países dentro da União Europeia é a sua riqueza e o seu grau de desenvolvimento, que define o seu padrão de interesses. Mas esta realidade, curiosamente, só se tornou mais evidente nos últimos anos. Durante décadas, a União Europeia foi um “clube de ricos”, composto por Estados com um grau de desenvolvimento relativamente similar. Esses países, “grandes” ou “pequenos”, tinham interesses basicamente próximos, em especial na formatação da legislação que elaboravam em conjunto. Há que ter em conta que as áreas de integração eram então muito menos numerosas e, no essencial, estavam centradas na facilitação do funcionamento de um mercado comum que a todos beneficiava.
O acesso dos primeiro “pobres” ao “clube” (Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha), não foi de molde a colocar em causa a predominância dos “ricos” ou a afectar a própria riqueza do conjunto. Um importante esforço, aliás, acabou por ser pedido aos países menos desenvolvidos, obrigados a terem de confrontar-se com crescentes exigências em matéria legislativa, desenhadas para países com um grau médio de desenvolvimento muito superior. A entrada de novos aderentes, também eles “ricos” (Áustria, Finlândia e Suécia), veio agravar, aliás, o grau de exigência legislativa, como bem se notou em áreas como o ambiente e de protecção de consumidores.
Diga-se, desde já, que este rigor não foi, de forma nenhuma, negativo: ele redundou num interessante choque de modernidade para os Estados mais “pobres”, tanto mais que a União Europeia disponibilizou importantes meios financeiros para os ajudar a fazer face às exigências legislativas e, simultaneamente, para potenciar o seu desenvolvimento e fazer florescer os seus mercados, no interesse de todos.
No mundo acima descrito, o controlo do processo decisório pelo países mais desenvolvidos – com reflexo, em especial, na legislação e no orçamento – estava assegurado, sem necessidade de introdução de especiais mudanças no modelo de votação, isto é, de gestão do poder.
A perspectiva dos novos alargamentos ao Centro e Leste europeus veio alterar radicalmente esta percepção. A iminência da súbita entrada de um conjunto de países com um grau de desenvolvimento inferior, marcados por uma potencial atitude afastada da cultura europeia tradicional, que se temia viesse a desencadear alianças bloqueadoras do processo decisório (minorias de bloqueio), levou a uma acção por parte de alguns dos Estados da União a “quinze” no sentido de procurar tornar neutral ou irrelevante o efeito dos futuros alargamentos no processo decisório dentro da União Europeia.
Este preemptive strike teve a sua primeira expressão concreta na discussão daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, em que, como se disse, os Estados mais populosos procuraram obter uma maior ligação entre o seu peso demográfico e o seu peso relativo no processo decisório. É que o único critério apresentável, com alguma legitimidade, para “separar as águas” na nova União Europeia que se avizinhava era, de facto, a diferenciação demográfica – afastado que estava, por razões políticas, o critério mais “duro” de um voto ligado ao volume nacional das contribuições para o orçamento.
O interessante nessa negociação foi ver Estados menos populosos, mas “ricos”, a reagirem à consagração da sua própria irrelevância, muito embora o padrão médio de interesses que se reflectiria no processo decisório em Bruxelas, mesmo que viesse a ser comandado pelos “grandes” e “ricos”, os protegesse em pleno. É que a fixação institucional desse seu estatuto menorizado iria ser sempre difícil de explicar aos seus parlamentos e opiniões públicas, por maiores que fossem os argumentos de racionalidade prática – o tal princípio da eficácia.
No caminho para Nice, os dois modelos possíveis para satisfazer as ambições de poder de alguns estiveram sobre a mesa: o modelo da dupla maioria (população e países, com limiares diversos) ou a simples reponderação do poder de voto (com ou sem introdução do critério de um mínimo de Estados em qualquer decisão). Como se sabe, o novo tratado acabou por dar mais votos aos países mais populosos, os quais, nessa negociação, perderam, em troca, o segundo comissário que desde sempre haviam tido a possibilidade de indicar para a Comissão Europeia.
Por que razão o sistema da dupla maioria, que o Tratado de Lisboa hoje consagra, não foi acordado já em Nice? Pela simples razão de que a França não queria, à época, perder a paridade de poder de voto que tinha com a Alemanha desde o início do Tratado de Roma. A reacção a esta potencial “décrochage” levou Paris – que tinha então a Presidência da União Europeia – a insistir até ao fim no modelo do voto ponderado. E para o obter, teve de fazer cedências que acabaram por colocar o resultado final do exercício bem longe das suas ambições iniciais.
Os ganhos obtidos com o Tratado de Nice não foram, porém, suficientes para aquietarem quem se habituara a dominar o processo decisório da União Europeia e temia que o futuro grande alargamento viesse a colocar em causa esse seu estatuto. O recurso a um método em que o peso demográfico – que tem uma simbologia democrática muito forte – fosse a principal expressão continuava, assim, a ser o caminho natural.
Muitos duvidavam então que a abertura de uma nova Conferência Intergovernamental fosse o método ideal para se poder ir mais longe do que se fora Nice. Tornava-se necessário encontrar uma nova fonte de legitimidade para as mudanças institucionais a introduzir, que fosse desenhada a montante da decisão que os governos iriam tomar.
A Convenção e a “Constituição”
A ideia de um modelo de debate alargado que antecedesse uma futura Conferência Intergovernamental circulava já em alguns meios europeus. Juntar governos, parlamentos nacionais, representantes do Parlamento Europeu e outras instituições ou órgãos comunitários, num processo com acompanhamento e escrutínio de meios organizados da sociedade civil, era uma proposta sedutora, porque introduzia uma dinâmica colectiva diferente[16]. O exercício da “Convenção para o Futuro da Europa” veio a revelar-se um interessante campo de debate sobre a coisa europeia mas, ao mesmo tempo, mostrou ser um instrumento excessivamente vanguardista, impulsionado por um voluntarismo que, dia após dia, se pressentiu ir ficando distante do sentimento das opiniões públicas.
O modo muito discutível como o antigo Presidente francês, Valéry Giscard d’Estaing, dirigiu o processo da Convenção redundou num resultado cuja legitimidade foi posta em causa por muitos observadores. As vozes discordantes pareceram, no entanto, como que aturdidas pelo peso dos parceiros envolvidos no exercício e, com algumas excepções, quase se abstiveram a expressar publicamente fortes objecções. A certa altura, aparecer publicamente contra o resultado da Convenção – que decantara um audacioso projecto de “Constituição” – surgia como uma atitude de anti-europeísmo primário. Alguma mídia embedded ajudou a firmar este cenário.
Do notar que, no caminho da Convenção, a França acabou por prescindir da paridade face à Alemanha e deixou-se conquistar pela tese da dupla maioria, onde o factor populacional era predominante. Esta foi, talvez, a grande novidade consagrada pela Convenção[17]. De qualquer modo, a França, por virtude da “Constituição” (e também do Tratado de Lisboa) aumenta em mais de um terço os seu peso de voto no Conselho de Ministros, tendo como referência o sistema de Nice.
Vale a pena notar aqui, como parêntesis, o que nos parece ser a grande ilusão que foi induzida no mundo europeu, ao tempo da Convenção: a ideia de que a União não poderia funcionar com as instituições que tinha e que novas estruturas eram, em absoluto, essenciais para suportar a ambição de uma Europa do futuro. Nada nem ninguém provou ainda que essa ideia tivesse real fundamento, mas o que importa é que ela se tornou numa verdade sacralizada a partir de então. A nosso ver, o que a experiência demonstra à saciedade é que não eram as instituições existentes que verdadeiramente condicionavam e condicionam o funcionamento da União, mas sim a falta de vontade política para agir em conjunto que era demonstrada pelos Estados membros.
Como é sabido, o projecto “constitucional” saído da Convenção veio a ter um tratamento muito expedito a nível dos líderes europeus, que organizaram uma rápida Conferência Intergovernamental, vista por alguns como um forma de se limitar, ao máximo, a expressão de reticências nacionais que pudessem colocar em causa os equilíbrios obtidos. Os alertas de prudência então avançados por certos observadores, nomeadamente quanto ao carácter temerário da designação de “Constituição” ou “Tratado Constitucional”, não foram ouvidos. O resultado foi o que se viu: França e Holanda submeteram o projecto a referendo e o voto popular foi negativo. Isso praticamente travou as restantes ratificações por toda a Europa, muito embora mais de metade dos países já tivesse dado seu acordo ao texto do Tratado Constitucional.
Nas objecções ao Tratado juntaram-se, curiosamente, preocupações contraditórias, desde quantos consideravam que ele apontava o caminho para uma Europa federal, debilitadora das soberanias nacionais, até quantos entendiam que ele consagrava a Europa do “directório” dos grandes países. No plano substantivo, foi interessante ver o confronto entre os que liam o novo Tratado como criador de um “super-Estado” regulador até aos que intuíam, da sua leitura, uma deriva liberal, que colocava em causa o modelo social que a Europa havia laboriosamente criado. O que um saldo realista desta rejeição demonstra é, simplesmente, um mal-estar genérico das opiniões públicas face ao processo europeu, cumulado com motivações contra os respectivos governos nacionais.
Com a rejeição do Tratado Constitucional, um ambiente de crise perpassou pela União Europeia. Reiterou-se a impressão de que a Europa estava paralisada, incapaz de decidir por falta de novas estruturas.
A caminho de Lisboa
O ar de “crise” que soprava pela Europa facilitava a tarefa a quem queria salvar o que entendia ser o essencial do Tratado. Alguns líderes europeus – uns mais do que os outros, valha a verdade – reforçavam, com declarações sonoras e graves, o trágico momento que o projecto europeu atravessava e desdobravam-se em arranjos políticos. Como se referiu, esta “verdade” acabou por ser aceite por muitos observadores e por grande parte da mídia. E, como dizia alguém, “em política, o que parece é”.
Depois de meses de angústia, um trabalho de redrafting político bem pilotado pela Alemanha consensualizou algumas alterações ao texto do Tratado Constitucional e expurgou-o de algumas marcas institucionais ou semânticas mais contestadas: morria o Tratado Constitucional e nascia o Tratado Reformador, conhecido por Tratado de Lisboa[18]. Pelo caminho ficaram certos ajustes de pormenor, destinados a satisfazer alguns interesses nacionais específicos, hábeis álibis para certos governos poderem argumentar em casa como vantagens ou vitórias negociais obtidas.
A Presidência portuguesa da União Europeia fez, com grande rigor, muito profissionalismo e sentido de compromisso, as últimas negociações, colocando o nome da capital portuguesa na História europeia.
Resta agora proceder às ratificações nacionais, as quais, na esmagadora maioria dos casos, se farão por via parlamentar, como óbvia tentativa de evitar que os referendos se tornem armas de arremesso político, em que o que está em causa, para grande parte dos votantes, é menos a substância do que se vota e muito mais a sua atitude perante que faz a proposta – isto é, os respectivos governos. Se tudo correr como está previsto, o Tratado de Lisboa poderá mesmo entrar em vigor em Janeiro de 2009[19].
Decifrar Lisboa
Mas, afinal, que nos traz o novo tratado?
Para além de algumas melhorias nos mecanismos legislativos internos (simplificação do processo legislativo, mais decisões por maioria, mais poderes para o Parlamento Europeu, maior intervenção dos parlamentos nacionais), numa linha de evolução que vinha a prolongar os anteriores tratados, as grandes mudanças que o Tratado Constitucional propunha e que foram recuperadas para o Tratado de Lisboa podem resumir-se a sete pontos:
- criação da figura do Presidente do Conselho Europeu, eleito pelos chefes de Estado ou governo, por um período de dois anos e meio, com possibilidade de uma renovação de mandato, tendo a seu cargo funções de representação externa da União Europeia.
- criação do cargo de Alto Representante da União para a Política Externa e de Segurança (o nome “simples” que evoluiu do de “Ministro dos Negócios Estrangeiros” da União Europeia, que o Tratado Constitucional previa), que passa a chefiar as reuniões dos chefes das diplomacias dos Estados membros e que, simultaneamente, será vice-presidente da Comissão Europeia, dispondo de um Serviço de Acção Externa Europeu.
- a Comissão Europeia passará, a partir de 2014, a contar com um número de comissários igual a dois terços do número de Estados membros, que passam a indicar um comissário na base de uma rotação igualitária, o que significa que cada Estado ficará sem a possibilidade de nomear um comissário uma vez em cada três mandatos de cinco anos.
- alteração do regime de presidências rotativas, a ser exercidas por grupo de três Estados por um período de 18 meses, com diversos equilíbrios observados na composição desses mesmos grupos.
- novo processo decisório, baseado num sistema de dupla maioria, para aprovação de qualquer decisão (55% dos Estados membros que representem 65% da população total da União). A entrada em vigor deste mecanismo só se fará, contudo, em 2014 ou mesmo até 2017, se um Estado membro tal solicitar, mantendo-se até lá o sistema ponderado de Nice.
- comunitarização de certos procedimentos relacionados com as áreas da justiça e assuntos internos, bem como na área das relações económicas externas, com o Parlamento Europeu a ter direito de co-decisão em todas as temáticas em que a maioria qualificada se aplique. O Reino Unido e a Irlanda obtêm um direito de opt-out em áreas de justiça e assuntos internos.
- o presidente da Comissão Europeia passa a ser eleito pelo Parlamento Europeu, sob proposta do Conselho Europeu (chefes de Estado e governo).
Por detrás do Tratado de Lisboa
Vale a pena atentar nalguns novos equilíbrios que o Tratado de Lisboa consagra.
O texto fixa, em vários pontos, o sedimentar de políticas que os anteriores tratados haviam desenvolvido, reforça outras de forma muito interessante e sinaliza áreas periféricas cujo desenvolvimento, em termos comunitários, dependerá da vontade colectiva que, em cada momento, for possível conjugar. Esse foi um trabalho meritório que importa ser sublinhado, até porque sabemos a dificuldade imensa que significou evoluir em certos domínios.
No tocante às instituições, parece desenhar um papel preponderante das instâncias comuns, o que criou, no imaginário de alguns, a falsa percepção de estarmos perante uma deriva federal, ideia que foi sublinhada pela maior extensão das áreas de votação por maioria qualificada e no aumento automático dos poderes do Parlamento Europeu – o que não deixou de facilitar a obtenção da boa vontade desta caprichosa instituição face ao novo tratado.
Mas serão as coisas, de facto, assim? Porque razão países e governos tão avessos à ideia federal europeia se mostraram abertos, e até entusiastas, deste tratado? Por inevitabilidade? Para não ficarem mal na foto? Pode haver algo de verdade em tudo isso, mas inclinamo-nos a pensar que houve, declaradamente, a percepção dos maiores Estados de que, através deste tratado, estavam a ganhar, uma vez mais, uma substancial fatia de poder. É que os mecanismos de gestão da União, previstos no novo tratado, colocam na mão de um núcleo muito restrito de países, por via da determinante demográfica, o poder de facto dentro da União Europeia.
Poderá ser argumentado que, ao optar-se pelo sublinhar do peso populacional, está-se apenas a cumprir a evolução natural para qualquer entidade federal – no sentido da legitimidade democrática. Só que, nessa mesma lógica federal, a prevalência dessa legitimidade populacional teria sempre de se cruzar com uma outra, essa derivada da legitimidade nacional, através de uma câmara de representação equitativa, de um “senado” de Estados. Ora ele não está presente no Tratado e ninguém acredita que os países que agora asseguraram o seu desmesurado poder, sem terem de se sujeitar a uma instância onde estariam equiparados a todos os outros de menor dimensão, venham a aceitar, no futuro, um qualquer recuo institucional em detrimento da sua força actual. Ao não existir este factor de equilíbrio, o futuro da União, no plano institucional, fica claramente nas mãos de um “condomínio” constituído pelos Estados mais populosos, os quais, na esmagadora maioria dos casos, são também dos mais ricos e desenvolvidos da União.
A objectivação, no dia-a-dia, do poder conjugado dos maiores países dependerá, contudo, da nem sempre fácil harmonização das respectivas agendas. O actor dessa conjugação eventual de vontades acabará por ser a figura inovadora de toda esta nova construção institucional – o novo presidente do Conselho Europeu. O aparecimento desta nova figura constitui a prova mais flagrante de que estamos perante um formato que mais não é senão um modelo tendencialmente intergovernamental, com o centro do poder bem identificado. De facto, o complexo institucional criado funciona, na prática, em objectivo detrimento da instituição cujo reforço significaria a evolução para um modelo federal – a Comissão Europeia. A potencial perversidade do novo sistema institucional centra-se na possibilidade de vir a criar-se uma conflitualidade entre os papéis do presidente do Conselho Europeu e do presidente da Comissão, nomeadamente retirando a este muita da representatividade externa que tinha vindo a obter e que funcionava em favor de um reforço objectivo do seu papel. Estas duas instâncias permanentes têm ainda de encontrar “espaço” para a actuação do chefe de Estado ou governo das presidências rotativas semestrais, o que sempre será mais complexo quando essa figura provier de um grande Estado europeu.
Para além disso, o Tratado designa como vice-presidente da Comissão (mas não dando ao respectivo presidente o direito a nomeá-lo) o Alto Representante, cuja acção no domínio externo é flagrantemente concorrencial com a do presidente do Conselho Europeu e, de certo modo, com a do seu “chefe”, o Presidente da Comissão. Além disso, ao colocar-se uma figura que depende do Conselho de Ministros no seio da Comissão está-se a acabar com a separação de poderes que sempre constituiu a originalidade da União Europeia e que consagrava a Comissão como uma representante do “interesse comum”, face a um Conselho onde as pressões dos interesses diversos dos Estados tinha evidente expressão[20].
Alguns meios europeus mais cínicos são de opinião de que este complexo e contraditório sistema foi criado precisamente para falhar, para provocar uma tensão interinstitucional, que os Estados acabarão por resolver da única forma possível: com a atribuição futura de mais poderes ao presidente do Conselho Europeu. O que, a verificar-se, significaria a perda progressiva da autonomia da Comissão, que o mesmo é dizer, do vector tendencialmente federalista central do sistema. E, por esta via, a vitória da intergovernamentalidade, o mesmo é dizer, a perda ou diluição progressiva do modelo integrador construído neste meio século e o regresso à Europa dos Estados que ele procurou superar.
Terá razão quem assim pensa? Só o tempo dirá. Como se afirmou no início deste texto, a maior virtualidade que o Tratado de Lisboa nos traz é a introdução de um ambiente de alguma pacificação institucional dentro da União Europeia. Com ou sem fundamento real, a Europa vivia um ambiente de crise e o projecto europeu é demasiado importante para os povos que o integram para nos podermos dar ao luxo de ir sobrevivendo sob um malaise que estava a tornar-se endémico. Se o Tratado de Lisboa tiver a faculdade de descrispar a vida europeia, de conferir algum élan à Europa e de fazê-la readquirir alguma confiança em si mesma, terá já cumprido um papel histórico muito importante.
[16] Em 1 de Julho de 2000, publiquei no jornal “Le Monde” um artigo intitulado “Refonder l’Europe” em que abordava a possibilidade de convocação de uma entidade similar àquilo que viria a ser a Convenção Europeia, criada no Conselho Europeu de Laeken, em Dezembro de 2001. Terminava esse artigo com a seguinte frase: “Dirão alguns que isto pode aparecer como uma espécie de ‘salto constitucional’, sem precedentes no historial da União. A título pessoal, a minha resposta é uma pergunta: e porque não?”
[17] Alguns tendem a ligar esta importante evolução da posição francesa ao facto de ter conseguido um acordo com a Alemanha que lhe permitiu, ainda antes da fixação das Perspectivas Financeiras (orçamento plurianual) 2007/2013, a garantia de um montante mínimo da chamada “linha directriz agrícola”, capaz de sustentar, até ao final daquele período, o share orçamental de que beneficia através da Política Agrícola Comum.
[18] É muito elucidativo o artigo do antigo presidente Valéry Giscard d’Estaing intitulado Análise comparada do Tratado de Lisboa (http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1313623), em especial quando refere que “as propostas institucionais do tratado constitucional (...) se encontram integralmente no tratado de Lisboa, mas numa ordem diferente e repartida nos tratados anteriores”.
[20] O actual presidente da Comissão Europeia reconheceu esse risco numa entrevista dada no início de Outubro de 2007 ao jornal belga De Standaard: “O novo tratado tem grandes riscos (...) Com o presidente do Conselho Europeu (...) poderá haver um novo circuito de decisão ao lado da Comissão e do Parlamento Europeu. Há um risco real de que os governos resolvam os seus problemas entre si de uma forma intergovernamental e sem ter em conta” as restantes instituições. Ver em Isabel Arriaga e Cunha, Tratado de Lisboa consagra uma União Europeia diferente (http://reapnimprensa.blogspot.com/2007/10/tratado-de-lisboa-consagra-uma-unio.html).
( Texto baseado num artigo homónimo publicado na revista “Política Externa”, vol. 16, nº 4, S. Paulo, 2008.)
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