Falar de segurança e defesa na Europa é, provavelmente, entrar pelo terreno mais delicado e sensível do seu projecto de aproximação política. Ninguém pode, nesta matéria, falar definitivamente em nome da União Europeia, porque cada um de nós tem a sua perspectiva própria sobre a evolução do processo de integração do continente e dos reflexos disso no próprio posicionamento da União no cenário internacional.
A União Europeia é hoje muito mais diversa, pelo que as perspectivas sobre o seu futuro são também bem mais variadas no seu seio. E são-no, em particular, em áreas como a segurança e a defesa, que estão muito próximas do cerne das soberanias nacionais.
Das Comunidades à União Europeia
Começando por um breve bosquejo do passado, eu diria que o processo de integração, que se gerou na parte ocidental da Europa a partir da década de 50 do século passado, correspondeu à tentativa de evitar a repetição das contradições nacionalistas que haviam gerado as duas anteriores guerras mundiais. Foi o receio de um novo conflito que esteve na origem da criação das instituições comunitárias europeias. Tratava-se então de procurar aculturar a França e a Alemanha a uma convivência pacífica. A genialidade de quem iniciou as Comunidades Europeias esteve, precisamente, no facto de tentarem descortinar alguns interesses económicos comuns que pudessem federar esse novo tipo de convivência.
A prova de que a Europa de então não estava preparada para ir muito mais longe terá sido o fracasso da tentativa de uma Comunidade Europeia de Defesa, que foi tentada ainda antes do Tratado de Roma.
Por essa altura, a NATO – isto é, a consagração institucional da continuação da presença dos Estados Unidos da América como um “poder europeu” no pós-guerra – era o denominador comum aceite por um conjunto de países que, muito rapidamente, haviam percebido que, do lado Oriental do continente, se estava a criar um bloco hostil e estrategicamente ameaçador. Desta forma, a Guerra Fria acabou também por ser um dos factores agregadores e um dos cimentos do esforço de integração europeia, que começava a ser feito em torno de nações com perfil democrático e com economias de mercado.
Porém, essa Europa que se ia integrando estava ainda longe de ser homogénea. Para além de uma preocupação estratégica comum face ao Leste, os vários países europeus mantinham leituras algo diferenciadas sobre a génese do projecto integrador em que se iniciavam. Nada disto é de surpreender: tratava-se, em geral, de nações antigas, marcadas por uma tradição de afirmação autónoma das respectivas soberanias e, à época, havia muito escassa experiência de modelos de cooperação internacional multinacional.
Dos “seis” iniciais, a França era, manifestamente, o Estado que afirmava uma idiossincrasia mais pronunciada, por ter uma leitura muito própria do seu papel no mundo e, em especial, do seu papel na Europa. À época, essa leitura era talvez ainda mais saliente, porque estávamos num tempo em que a Alemanha vivia uma espécie de capitis diminutio, pelo trauma da guerra recente e da culpabilidade histórica que lhe estava associada.
O que se torna muito interessante no processo integrador europeu, que nasce formalmente com o Tratado de Roma, em 1957, é o facto de, em cada sucessivo alargamento das instituições comunitárias a outros Estados, esse modelo ter sempre mudado de qualidade, com reflexos claros na evolução e na matriz do seu próprio projecto. Cada nova entrada correspondeu a um input novo, que foi transformando qualitativamente o projecto. Creio, aliás, que essa é como que uma prova indirecta da própria génese democrática do mesmo.
A entrada do Reino Unido, por exemplo, foi um momento decisivo para a mudança do paradigma da Europa comunitária, porque, pela primeira vez, trouxe para dentro dela um país de cuja matriz estratégica era indissociável um forte laço transatlântico, sem paralelo em qualquer outro parceiro europeu de então.
Estas diferenças de perspectiva quanto à finalidade última do projecto europeu, se bem que fossem sempre notórias, tornaram-se menos relevantes enquanto a Europa não se assumia como uma estrutura com ambições de unidade política, enquanto vivia um processo essencialmente centrado na integração económica. O debate, que sempre existiu, entre os mais soberanistas e aqueles que sonhavam com um modelo federal foi-se mantendo sem grandes sobressaltos – embora todos nos lembremos do episódio da “cadeira vazia” com que o Presidente De Gaulle quis mostrar que o conceito de “interesse vital” do seu país estaria sempre acima da rotina de qualquer processo decisório.
O fim da Guerra Fria e a segurança europeia
Acabou por ser o Tratado de Maastricht, em 1991, que abriu a porta a um debate bem mais profundo sobre uma Europa mais política, com dimensões de segurança tendencialmente comuns e, embora de forma ainda muito retórica e cuidadosa, com a afirmação de uma potencial vontade de caminhar para linhas, também comuns, em matéria de defesa.
A razão por que isto aconteceu nessa altura é óbvia: a Guerra Fria tinha acabado, a União Soviética tinha implodido e os Estados europeus já integrados deram-se conta que, por cima das suas próprias diferenças, havia um interesse maior em poderem dar corpo, em termos de poder político, àquilo que era já o seu formidável potencial económico. A forma de que se revestiria esse poder político era ainda muito polémica no seio europeu e os mecanismos então criados, para o desenho de uma Política Externa e de Segurança Comum (PESC), tinham como óbvio objectivo ir estruturando como que uma “jurisprudência diplomática” de cariz tendencialmente uniformizador. Recorde-se que, por essa altura, também a NATO iniciava um tempo de interrogações sobre o seu próprio futuro, fruto da desaparição formal de certas ameaças tradicionais e de um juízo, que para muitos veio a revelar-se um tanto precipitado, de que o quadro de segurança europeia tinha sofrido uma mutação radical. Foi esse novo circunstancialismo que abriu caminho a uma nova reflexão intra-europeia sobre a temática da segurança e da defesa.
Nessa reflexão, começaram a desenhar-se, notoriamente, duas escolas.
Uma que considerava que, com o termo da Guerra Fria e das ameaças que ela criara, estavam finalmente criadas as condições para gerar uma autonomia formal, em matéria de segurança europeia, face aos Estados Unidos. Essa autonomia, que não poria em causa a manutenção de uma aliança assente numa cumplicidade estratégica assente em valores comuns, pretendia abrir espaço de afirmação a uma Europa cada vez mais integrada e que se pretendia afirmar como um poder político, embora de natureza singular, à escala global.
Outra leitura, porém, ia no sentido de defender que, até pela ainda incipiente dimensão política das instituições da União Europeia de então, cujo processo de decisão interno era de uma complexidade que se afastava, em muito, do de um Estado tradicional, um movimento autonomizante podia vir a colocar em causa a solidez do laço transatlântico, que sempre se revelara essencial nos conflitos históricos anteriores.
Sem qualquer surpresa, a primeira escola tinha a França como expoente e a segunda, obviamente, era titulada pelo Reino Unido, defensor à outrance da preeminência da sua special relationship com Washington.
Este debate polarizado atravessou – e pode dizer-se que ainda atravessa, embora hoje em outros moldes – toda a União Europeia. Noutro quadro, e já com o papel dos Estados Unidos e do Canadá no processo, essa mesma dualidade de perspectivas acabou por ter reflexos na formatação das opções de mudança que vieram a ser tomadas dentro da própria Aliança Atlântica.
Visto à distância, este debate assentava numa realidade que ninguém queria verdadeiramente enfrentar: o facto das instituições de segurança e defesa europeias estarem desfasadas da nova realidade que o fim da União Soviética e da Guerra Fria criara e que havia estado na génese da sua criação.
Para alguns – e deve recordar-se a Alemanha e os seus esforços na ostpolitik – o novo cenário pós-URSS justificava que se definisse um modelo novo de poder europeu, que, sem pôr em causa a aliança com os Estados Unidos, conseguisse estruturar um modus vivendi com a nova Rússia, atenuando, em definitivo, as tensões a Leste e abrindo caminho para um novo tempo, no projecto europeu, para os antigos membros do Pacto de Varsóvia.
Em alguns Estados europeus, que viam a emergência dos Estados Unidos como uma potência desproporcionadamente forte na nova relação global de forças, a resposta à nova conjuntura deveria justificar uma afirmação estratégica europeia própria, progressivamente mais sólida e, se possível, com meios autónomos que conseguissem transformar a Europa integrada, do soft power que já era, para um futuro hard power benigno, em condições de dialogar, em cooperação franca, com a nova ordem que parecia emergir em Moscovo. Porém, este sentimento não era dominante e alguns consideravam que era muito cedo para que tal tivesse lugar. Essa escola de pensamento ia ao ponto de pensar que uma deriva muito pronunciada para uma autonomização da segurança europeia e, a prazo, para a tentação de criar uma defesa europeia, podia vir a conduzir, no outro lado do Atlântico, a uma nova onda isolacionista, com consequências deletérias na solidez da aliança que se mostrara indispensável no passado.
Neste ponto, talvez valha a pena interrogarmo-nos sobre se, por detrás de algumas dessas preocupações, não estariam ainda vestígios dos próprios fantasmas das contradições intra europeias, que tinham originado duas Guerras. Esta escola, que podemos qualificar de “euro-prudente”, acabou por ter uma ajuda imprevista. É que o facto de alguns países de tradição neutralista terem, entretanto, entrado para a União Europeia – a Áustria, a Finlândia e a Suécia – acabou por limitar as próprias ambições que o Tratado de Maastricht tinha indiciado. Esses países, que não haviam estado presentes no desenho desse Tratado, somavam-se à posição, até então isolada, de uma Irlanda que também alimentava preocupações de natureza similar.
Nenhum desses novos países membros, tal como a Irlanda, era membro da NATO, pelo que não se sentiam tentados a alianças alternativas de defesa, particularmente num tempo em que as grandes linhas tradicionais de ameaça se afirmavam como mais ténues. Porém, tais Estados não deixavam de partilhar algumas preocupações de segurança que, entretanto, se vinham a gizar dentro da União Europeia. Por essa razão, quando Tratado de Maastricht foi revisto e se negociou o Tratado de Amesterdão, o salto qualitativo que foi possível fazer nos domínios de segurança e defesa foi ínfimo e, praticamente, acabou por se traduzir, em termos operacionais potenciais, no reconhecimento de uma vocação europeia para a execução das chamadas “tarefas de Petersberg”, isto é, operações de peace-keeping e de intervenções em matéria de criação de confidence and security building measures.
O impacto da crise jugoslava
O cenário geopolítico europeu, contudo, não apresentava apenas sinais de acalmia e apaziguamento. Desde muito cedo, a desagregação da antiga Jugoslávia revelou que as ameaças à estabilidade do continente se situavam, não num qualquer not so near abroad, mas bem dentro da própria Europa geográfica.
É no contexto desse trauma provocado pela convulsão jugoslava que a União Europeia terá percebido duas realidades nada confortáveis.
A primeira é que, enquanto estrutura de representação de interesse colectivo, tinha à sua disposição mecanismos muito incipientes, mais económicos e diplomáticos do que outros, para poder ser relevante na diluição de uma crise que já atravessava as suas próprias fronteiras.
E a segunda, politicamente bem desagradável, é que a sua unidade perante a crise não passava de uma ficção, quase se podendo dizer, com alguma ironia, que a União Europeia de então se revelou “balcanizada” face aos Balcãs.
Hoje, vistas as coisas em perspectiva, pode afirmar-se que, a ter havido um acontecimento histórico que potenciou uma reflexão profunda dentro da União Europeia sobre a fragilidade dos seus meios para afrontar crises de segurança em cenários estratégicos de grande proximidade, esse foi, claramente, o caso da ex-Jugoslávia.
Aliás, foi significativo observar como a crise do Kosovo, em 1999, marcada pelo seu carácter humanitário chocante e mediaticamente potenciado, acabou por forçar uma vontade muito forte para o tratamento da questão em moldes de peace-enforcing, em necessária articulação com a NATO. E não deve esquecer-se que isso conduziu, pela primeira vez na história da organização, à opção por uma solução de força, entendida como a única saída para enfrentar uma situação limite, a qual terá, de certo modo, ferido o respeito estrito pela preeminência do quadro multilateral, do qual a União sempre se mostrara respeitosamente tributária.
A OSCE e os seus limites
Esta abordagem do percurso de debate europeu em matéria de segurança e defesa não pode desligar-se de uma realidade paralela, num quadro mais alargado, que também não deixou de o influenciar. Referimo-nos à anterior constituição, na área transatlântica, e com origem no Acto Final de Helsínquia de 1975, de uma estrutura destinada a potenciar a détente e que acabou por ter um papel interessante no final da Guerra Fria – a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).
A OSCE constituiu-se como um singular palco de debate Leste-Oeste onde, laboriosamente, foi possível desenvolver certas práticas de diálogo, entre dois mundos muito polarizados, as quais que vieram a revelar-se bastante úteis, embora o tempo tenha provado não virem a ser muito duradouras.
Com o fim da Guerra Fria, no início dos anos 90, a OSCE pareceu poder assumir o papel de um grande fórum de progressiva harmonização de culturas de segurança que, anteriormente, eram flagrantemente opostas. Em especial, as “medidas geradoras de confiança” acabaram por ter, no seio da OSCE, um terreno muito interessante de desenvolvimento, tanto mais que a organização – que veio a alargar-se a todas as antigas repúblicas da antiga União Soviética, mesmo no Cáucaso e na Ásia Central, com um impressionante membership de 55 países – parecia poder caminhar para a criação de um corpus doutrinário relativamente comum.
A OSCE apontava então para duas vocações fundamentais.
A primeira era a de um pólo de estruturação de mecanismos de monitorização do desarmamento mútuo, em matéria de forças convencionais. Neste domínio, a OSCE teve um papel reconhecidamente de relevo, tendo conseguido instituir estruturas de cooperação e monitorização que vieram a ter consequências práticas significativas. Recordo o Tratado CFE – sobre as Forças Convencionais na Europa – que permitiu enquadrar o desmantelamento ou o afastamento geográfico de armamento convencional.
A segunda vocação da OSCE era a sua potencial capacidade para poder intervir a montante de conflitos, em zonas de tensão, ou de proporcionar instrumentos de atenuação de conflitos já emergentes, em alguns casos os frozen conflicts, embora sempre sem nunca concretizar uma aberta vocação para operações de peace-keeping e, muito menos, de peace-enforcing.
Neste contexto, a OSCE criou um Centro de Prevenção de Conflitos – modelo que, com as devidas adaptações, pode ter condições para vir a ser reproduzido noutras áreas geopolíticas.
A eficácia da OSCE, enquanto instituição, partia, contudo, de um pressuposto que o tempo viria a fragilizar. Esse pressuposto era o de que os Estados Unidos e Rússia, os major players da organização, conseguiriam manter uma linha comum de interesses, susceptível de prolongar no tempo vantagens que para ambos resultaram do início da OSCE. Isso não veio a verificar, como igualmente se detectaria que a União Europeia, enquanto tal, nunca se afirmou, dentro da OSCE, como uma unidade com capacidade decisiva de influência, em particular face aos dois principais parceiros.
Esta referência feita ao quadro OSCE teve o objectivo de chamar a atenção para uma realidade que abordarei de seguida: a alteração, com o tempo e as novas circunstâncias, do quadro de relacionamento dentro do território europeu, em especial entre a União Europeia e a Rússia.
Os equilíbrios políticos na União alargada
Voltemos, por isso, de novo, à União Europeia.
Com o fim do muro de Berlim e com a emergência de regimes democráticos em várias repúblicas do centro e leste europeu, a União Europeia sentiu-se obrigada, por razões simultaneamente éticas e estratégicas, a facilitar a entrada desses países para o seu seio.
As razões éticas eram óbvias: a Europa ocidental, por décadas sucessivas, apontara aos países do Pacto de Varsóvia as virtualidades do seu modelo de liberdade e progresso e, chegado que foi o momento em que estes Estados tiveram o ensejo de aderir a esse modelo, seria politicamente impossível negar-lhes o acesso.
As razões estratégicas, embora também óbvias, foram sempre menos explícitas: tratava-se de aproveitar a fragilidade conjuntural da Rússia para poder trazer esses Estados para o campo democrático e da economia de mercado, como que formatando-os no template da União Europeia.
Com este gesto – que, aliás, tinha tido precedentes, com a entrada de países como a Grécia, Portugal e a Espanha, também recém-saídos de ditaduras – a Europa comunitária cumpria a sua vocação natural de se tornar num grande espaço europeu de democracia e desenvolvimento. E, ao mesmo tempo, o que não era despiciendo, reforçava o seu próprio mercado interno, com efeitos positivos para todos.
Esse grande alargamento, que comportou 12 países, trouxe algumas naturais consequências para a densidade do projecto europeu e, de certo modo, travou algum do seu aprofundamento económico. Mas esse seria sempre o preço a pagar pela vantagem que resultaria desse esforço.
No plano político, curiosamente, houve em alguns sectores a ingenuidade de pensar que a entrada dos novos Estados seria como que “neutral” para os equilíbrios que subsistiam no formato anterior à sua adesão. Para alguns, o alargamento era visto como uma forma de “colonização democrática”, uma simples moldagem desses países ao modelo que tinha sido desenvolvido pelos anteriores membros da União.
O tempo provou que as coisas não iriam ser assim. Contrariamente a algumas das adesões anteriores, em que o reforço da democracia interna e o impulso ao desenvolvimento fora o leitmotiv do pedido de adesão – como foi o caso da Irlanda, da Grécia, de Portugal e da Espanha –, na grande maioria dos Estados que agora viriam a aderir, recém-saídos da tutela, da ameaça ou da influência soviética, a dimensão “segurança” estava também muito presente à sua vontade de aderir à União Europeia. E, para surpresa de alguns, isso não deixou de influenciar, de forma muito patente, a expressão de alguns dos seus interesses políticos e estratégicos, logo que obtiveram a garantia de ingresso na União. Esses novos membros tinham clara consciência que a protecção que a União Europeia lhes podia dar era apenas a de um soft power, com poder económico diplomático, mas sem a menor dimensão constrangente no plano militar.
Por essa razão. esses Estados iam desenvolvendo, em paralelo, uma forte pressão no sentido de se tornarem rapidamente membros da NATO. A Aliança Atlântica era, para a sua estratégia nacional, um objectivo central, por forma a garantirem uma espécie de firewall face àquilo que temiam pudesse vir a ser uma evolução futura da Rússia, eventualmente já não numa lógica necessariamente de agressão, mas quiçá num modelo de pressão constrangente que voltasse a limitar o exercício pleno da sua soberania, que tão recente e dolorosamente haviam recuperado. No fundo, esses países, sem o afirmarem explicitamente, temiam que uma possível evolução negativa do poder em Moscovo, conjugada com uma fraqueza da unidade europeia que viesse a ser ditada por razões de realpolitik, pudesse vir conduzi-los a uma espécie de nova “finlandização”.
Com este desejo de dupla adesão – à União Europeia e à NATO – esses Estados davam sinais de, simultaneamente, confiarem no modelo político-económico da União Europeia, como factor de reforço do seu desenvolvimento e do seu modelo democrático, mas depositando o seu principal crédito de confiança, em termos da sua segurança e defesa, nas estruturas da NATO. E, ao pensarem em NATO, esses países estavam a pensar nos Estados Unidos da América, país que, não por acaso, havia sido, desde o primeiro momento, o grande promotor da sua adesão, quer à instituição transatlântica, quer mesmo à própria União Europeia.
Convém ter claro que, sem excepção, embora com importantes nuances entre si, as novas classes dirigentes desses dez países (excluem-se Chipre e Malta deste raciocínio, por razões óbvias) tinham uma relação histórica traumática com Moscovo ou, como ainda é o caso dos países bálticos (Estónia, Letónia e Lituânia), tensões mais ou menos complexas ainda a resolver com a Rússia.
É assim importante que fique claro que, ao levar a cabo este seu último grande alargamento, a União Europeia trouxe para o seu seio um conjunto de Estados cujo padrão médio de relações com a Rússia estava muito distante do nível de cooperação estratégica que a anterior União Europeia havia conseguido com Moscovo. E esse facto não deixou de ter algumas implicações na qualidade do diálogo que, a partir daí, a União Europeia passou a ter com a Rússia. Por outro lado – e este também é um ponto fundamental no impacto político deste grande alargamento no seio da União Europeia –, o sentimento prevalecente nas opiniões públicas de muitos desses países é a de uma grande gratidão histórica face aos Estados Unidos, tidos como responsáveis maiores pela criação das condições exteriores que terão contribuído para o fim da União Soviética, isto é, para a obtenção das condições que favoreceram a sua liberdade.
Se acaso fosse necessária uma prova mais concludente de que a entrada desses países esteve longe de ser neutral no relacionamento entre a União Europeia e os Estados Unidos, o que mais tarde viria a passar-se quando foi desencadeada a Guerra do Iraque foi bem expressivo: a grande maioria desses países tomou posição favorável à iniciativa americana, o que levou mesmo o secretário de Defesa americano a louvar a atitude dessa “nova Europa”.
Convém, contudo, não simplificar excessivamente as questões de segurança e defesa europeias, ligando em excesso a sua evolução recente aos últimos alargamentos.
Respostas aos novos desafios
Com efeito, emergiram entretanto dois novos factores, de natureza muito diferente, que tiveram sérias implicações na própria reflexão interna europeia neste domínio. O primeiro, como é óbvio, foi o 11 de Setembro de 2001. O segundo, de cariz diverso mas que não pode deixar de ser contabilizado, foi a evolução interna do regime russo, com consequências claras no seu comportamento em certos cenários geopolíticos pontuais. Embora de forma subtil, estes dois factores têm pontos comuns, como adiante se verá.
Como ficou patente, o 11 de Setembro conduziu, num primeiro momento, a uma forte onda de solidariedade europeia para com os Estados Unidos, em face da bárbara acção de que haviam sido vítimas. Isso abriu caminho para o apoio à posterior acção interventiva no Afeganistão e, no plano imediato, favoreceu a formatação do conjunto de mecanismos criados no âmbito do Comité de Combate ao Terrorismo, no seio da ONU.
Mas essa solidariedade, como sabemos, não sobreviveu ao facto dos Estados Unidos terem decidido, mais tarde, proceder à invasão do Iraque. Parte importante da União Europeia considerou então que o papel central das Nações Unidas não havia sido respeitado e acusou Washington de adoptar uma espécie de multilateralismo à la carte: respeitar as decisões da ONU apenas quando elas coincidissem com a perspectiva que tinham dos seus próprios interesses nacionais, que identificavam como os interesses do mundo que pretendiam representar.
Outra parte dos países europeus, subscreveu as razões americanas e, com maior ou menor empenhamento operacional, seguiu Washington na sua acção no Iraque. Grande parte da chamada “nova Europa” alinhou também por esta última linha, como aliás seria de esperar, pelas razões antes apontadas.
Mas se a Europa, como um todo, não subscreveu a atitude americana, a verdade é que o 11 de Setembro não deixou de ter impactos sérios na formulação de um novo pensamento estratégico dentro da União Europeia. O carácter difuso das novas ameaças, a gravidade dos impactos internos em matéria de segurança pública em alguns Estados europeus, com a ocorrência de actos terroristas ou o desmantelamento de redes que os pretendiam levar a cabo, o aprofundar de clivagens culturais e étnicas que ameaçam a coesão social em certos países – tudo isso contribuiu para uma reflexão muito profunda que não deixou de ter consequências claras na evolução desse debate intra-europeu sobre segurança e defesa.
Neste ponto, será importante deixar uma precisão: todo o conjunto de medidas implantado e pensado em função desta nova e desafiante realidade, foi e está a ser feito na União Europeia sob a égide de um rigoroso respeito pelos Direito Humanos, pela preservação das liberdades fundamentais e pela manutenção de todo um corpo de garantias a que a comum noção de Estado de Direito obriga.
Impactos da evolução da Rússia
Ao abordar o traumatismo provocado pelo 11 de Setembro, foi referido que a evolução da Rússia não deixou de ter um impacto na reflexão interna da União sobre segurança e defesa.
O desenvolvimento do processo interno russo, que havia sido visto com grande simpatia e com a expectativa de fixação de um modelo democrático sólido no período iniciado por Gorbachov, iniciou, a partir de certa altura, um percurso que começou a criar interrogações no âmbito da União Europeia – não obstante o nível de diálogo institucional com Moscovo não ter sofrido qualquer interrupção. Ao modo como Moscovo se comportava face à Chechénia, à evolução do tratamento interno em termos de Direitos Humanos e de preservação de certas liberdades, vieram a somar-se atitudes no plano internacional que foram tidas como muito pouco construtivas em alguns cenários de tensão, para cuja resolução a atitude de Moscovo era essencial, mas que não se materializava na prática.
Estavam neste caso, em especial, a questão da retirada das bases que a Rússia mantinha na Geórgia, o apoio dado ao secessionismo na Ossétia do Sul e na Abcásia, bem como a sua posição na questão da Transnístria, sector da Moldova que vive sob protecção prática de Moscovo, em detrimento da unidade do país. Acresce que o modo com a Rússia se comportou perante o regime da Bielorrússia e o posicionamento perante os assuntos internos da Ucrânia criaram, dentro da União Europeia, um sentimento de menor confiança quanto à possibilidade de poder vir a contar com Moscovo para um esforço conjugado de diluição de tensões. A sensação que certos sectores europeus alimentam é a de que a Rússia, sem o afirmar, joga com factores de instabilidade onde detém influência como forma de se compensar com o que considera estar a ser uma aproximação excessiva às suas fronteiras dos mecanismos institucionais de defesa ocidental.
Para muitos observadores, Moscovo sempre aceitou muito mal a entrada dos países bálticos para a NATO e, como se verificou mais tarde, tem grande relutância em aceitar a possibilidade da Ucrânia e da Geórgia virem, a prazo, a ser admitidas como membros da organização. Da mesma forma, a Rússia também contestou, com veemência, a colocação de escudos de protecção anti-mísseis em países da Europa central, que interpretou como mecanismos de desconfiança contra a sua possível acção militar.
Este sentimento de reacção às iniciativas ocidentais, muito potenciado por um surto de renascimento nacionalista, auxiliado por alguma disponibilidade financeira conjuntural, tem atrás de si outros factores exógenos que não deixam de ser agravantes deste estado de tensão. Estão neste caso a continuação das actividades americanas no Afeganistão e no Iraque, a sua influência no Paquistão e as ameaças ao Irão, as bases e facilidades obtidas por Washington no Uzbequistão e no Quirguistão, bem como a intensa proximidade dos Estados Unidos com o regime da Geórgia. Tudo isto, sem dúvida, contribui para reforçar um sentimento de “cerco” estratégico sentido por Moscovo.
Se, durante algum tempo, a necessidade de se mostrar responsável na luta contra o terrorismo internacional atenuou quaisquer reacções às intervenções americanas nessas suas “águas territoriais” estratégicas, ao mesmo tempo que lhe deixava alguma liberdade para, com pretexto idêntico, exercer a sua acção repressiva na Chechénia, a tolerância russa ter-se-á esgotado. E, não tendo hoje condições políticas e até militares para se dar ao luxo de subir para um patamar de ameaça retaliatória, resta-lhe jogar com os factores de obstrução ao seu dispor. O anunciado abandono pela Rússia do Tratado sobre Forças Convencionais na Europa (Tratado CFE adaptado) é, neste domínio, mais uma das peças desse movimento. E teremos ainda de observar se, a prazo, o instrumento energético não poderá ter também algum papel neste jogo de tensões, como certos sinais deixam indiciar.
Se se ligar toda este mal-estar demonstrado por Moscovo com a já referida desconfiança que certos novos Estados da União Europeia mantêm face à Rússia, facilmente se compreenderá que está criado um ambiente de tensão que hoje marca o panorama de diálogo estratégico no quadro europeu.
O Tratado de Lisboa e a segurança e defesa europeias
Diversas outras temáticas poderiam somar-se àquelas que já foram referidas. Estão neste caso, como mais prioritárias, o desafio da adesão turca à União Europeia e a evolução recente do processo político nos Balcãs, com as tensões provocadas pela declaração de independência do Kosovo. Mas também poderíamos falar da complexa questão dos equilíbrios geopolíticos na margem sul do Mediterrâneo, com impactos nos fluxos migratórios e no próprio posicionamento europeu perante o mundo islâmico, num tempo de tensões civilizacionais e religiosas que atravessam as próprias sociedades europeias.
Perante este panorama, o debate que antecedeu o Tratado de Lisboa procurou conduzir o novo formato institucional que daí viria a resultar por caminhos passíveis de darem à União novos e mais eficazes instrumentos nos domínios da segurança e defesa. O Tratado de Lisboa introduziu algumas inovações importantes em matéria de Política Externa, de Segurança e Defesa, sendo de distinguir duas vertentes.
Uma primeira, centrada nas alterações gerais relativas à acção externa da União Europeia, do ponto de vista institucional e do processo decisório e uma segunda, voltada para as alterações específicas no quadro da política de segurança e defesa. Porque não é este o objecto desta nossa abordagem, deixemos de parte agora as questões puramente de política externa, muito embora a política europeia de segurança e defesa se desenvolva no quadro mais geral da política externa e de segurança comum.
No que diz respeito às alterações específicas no quadro da política de segurança e defesa, é de notar que são duas as formas como o Tratado de Lisboa influencia a Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). Por um lado, as alterações no quadro institucional, em particular a criação do cargo de Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, tem como objectivo facilitar as relações entre o Conselho de Ministros e a Comissão Europeia, no que diz respeito às questões relativas à gestão de crises, com a finalidade de tentar tornar a União um actor mais coerente no campo comum da Política Externa e de Segurança Comum (PESC) e da Política Europeia de Defesa e Segurança (PESD). Por outro, tendo em vista consolidar o papel da Europa no quadro global, vários são os artigos do Tratado de Lisboa que visam, conjunta e directamente, um aprofundamento tanto da PESC como da PESD.
E é neste quadro de aprofundamento das políticas referidas, enquanto actor na segurança internacional, que se desenvolvem algumas alterações específicas em matéria de segurança e defesa. Elas podem sintetizar-se em quatro aspectos principais:
- A alteração da designação de Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD) para Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD). É uma mudança que se pretende com significado político, pois traduz uma manifestação formal, clara, de que os Estados membros têm objectivos e interesses comuns em matéria de segurança e defesa e que estão dispostos a incrementá-los em conjunto.
- A introdução da cláusula de auxílio e assistência[1] em caso de agressão armada e da cláusula de solidariedade[2];
- O alargamento do leque de missões, originariamente as conhecidas missões Petersberg, nas quais a União pode utilizar meios civis e militares, sendo pela primeira vez enumerado o tipo de missões que se inserem nesta categoria;
- Com repercussão no planeamento estratégico de Defesa, é de salientar a introdução de dois mecanismos: a “cooperação reforçada” e a “cooperação estruturada permanente”. O primeiro mecanismo, a “cooperação reforçada”, mais não é do que a extensão da aplicação do mecanismo estabelecido pelos Tratados de Amesterdão e de Nice à Política Externa e de Segurança Comum, e que prevê a criação de grupos de Estados que queiram aprofundar a sua cooperação numa dada matéria, neste caso, às questões de segurança e defesa. O segundo mecanismo, a “cooperação estruturada permanente”, específica da política comum de segurança e defesa, prevê a possibilidade de existência de uma cooperação mais estreita entre os Estados membros que o desejem e tenham capacidade para realizar maiores esforços em matéria de capacidades militares. Sobre este mecanismo refere especificamente o Tratado de Lisboa: “Os Estados Membros cujas capacidades militares preencham critérios mais elevados e que tenham assumido compromissos mais vinculativos na matéria tendo em vista a realização das missões mais exigentes, estabelecem uma cooperação estruturada permanente no âmbito da União”. A “cooperação estruturada permanente” é, assim, um dos aspectos inovadores mais importantes, mas também mais exigentes, e um dos maiores desafios criados pelo Tratado de Lisboa.
Procurou-se dar conta, em termos genéricos e com algum enquadramento factual e institucional, não apenas de alguns dos elementos que têm funcionado como factores envolventes ao intenso debate sobre segurança e defesa na Europa, mas igualmente dos mecanismos que, como resultante prática desse debate, acabaram por resultar consensualizados no compromisso institucional, em matéria de segurança e defesa, que foi possível obter, no quadro do Tratado de Lisboa.
O Tratado de Lisboa, sendo o ponto de chegada de um intenso debate e esforço de compromisso é também, em si mesmo, apenas o ponto de partida para o desafio de um trabalho conjunto numa Europa desejavelmente mais integrada. É um mecanismo que se pretende venha a servir de matriz a um ambiente de segurança e defesa à altura dos novos desafios e ameaças que os últimos anos a todos nos desenharam no horizonte. Um ambiente onde se espera, em especial em situações de crise, que a adesão de um grande número de novos Estados, que gerou uma União Europeia com uma inédita diversidade, em torno de valores assumidos como comuns, corresponda, de facto, à vontade de uma efectiva partilha, também comum, de responsabilidades, se tal vier a revelar-se necessário.
Embora não se deseja que ele venha a ter lugar, esse poderá vir a ser o teste definitivo à solidez política e de segurança do projecto de União Europeia que o Tratado de Lisboa redesenhou.
[1] Se um Estado-Membro vier a ser alvo de agressão armada no seu território, os outros Estados-Membros devem prestar-lhe auxílio e assistência por todos os meios ao seu alcance, em conformidade com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas
[2] A União e os seus Estados-Membros actuarão em conjunto, num espírito de solidariedade, se um Estado-Membro for alvo de um ataque terrorista ou vítima de uma catástrofe natural ou de origem humana
(Texto baseado na intervenção proferida no Seminário “Concepção Estratégica e Política de Defesa”, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, no Rio de Janeiro, em 4 de Junho de 2008.)
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