26 de outubro de 2010

A Língua e as comunidades portuguesas

Antes do mais, quero agradecer este convite da União Latina e felicitar a organização desta iniciativa. Ao saudar o presidente desta sessão, queria saudar também todos os presente e, se me permitem uma palavra especial, dirijo-a à senhora doutora Dra. Maria Barroso.

Esta temática do papel da língua portuguesa no quadro global interessa-me bastante, porque faz parte do quadro de afirmação diplomática do nosso país, em que me empenho.

Penso que há um grande e nunca acabado caminho a fazer em torno deste tema e considero que este colóquio é um momento importante para tal. Como sou a única pessoa sem uma atividade de natureza académica nesta mesa, posso dar-me ao luxo de algum impressionismo, ditado apenas por aquilo que fui colhendo, em função da minha experiência pessoal. Achei irónico que o professor Eduardo Lourenço tivesse dito que ele próprio não era um especialista nesta temática. Ora o professor Eduardo Lourenço é talvez o maior especialista vivo na abordagem da questão da nossa identidade como país e ajuda-nos, todos os dias, a olhar para nós próprios de uma forma mais profunda.

A experiência que tenho como funcionário diplomático, com mais de 35 anos ação profissional, foi particularmente reforçada pelos meus dois últimos postos: o Brasil, onde estive cerca de quatro anos e a França, onde agora estou colocado, há menos de dois anos. 

São dois dos países do mundo onde existem grandes comunidades portuguesas, embora com uma génese e uma tipologia muito diversas, nomeadamente em matéria de integração, o que me proporcionou objetos de trabalho e estudo também diferentes, se bem que muito complementares e ambos bastante enriquecedores.

No nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros, as questões ligadas às comunidades portuguesas fazem parte – e perdoem-me a brutalidade, mas já tenho a idade profissional para poder dizer isto – de uma espécie de subsistema diplomático muito específico, às vezes pouco valorizado.

Nesse subsistema há um elemento que não depende de uma visão criada autonomamente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas que sobredetermina todo o seu funcionamento. Trata-se de uma espécie de “chantagem política” que se gerou, nas últimas décadas, e que acaba por tornar esse setor refém de uma certa ideologia comportamental da natureza funcional e até política.

Na democracia portuguesa, com a chegada do 25 de Abril, estabeleceu-se um generalizado e legítimo sentimento de culpa relativamente ao modo como o Estado olhava as comunidades expatriadas, que o anterior regime obrigara a emigrar e face às quais só se preocupava com as respetivas transferências financeiras. Essa “tragédia” que foi a nossa emigração – como o professor Eduardo Lourenço bem a qualificou – foi um processo que foi imposto a uma geração, que não emigrou por vontade própria. É-se emigrante porque o país no qual fomos criados não nos deu as condições para aí vivermos a nossa vida. Um país que obriga a emigrar é um país que, perante os outros, não se prestigia, porque é visto como incapaz de tratar dos seus. É importante ter isto sempre presente quando se aborda a questão da imagem de Portugal no mundo.

Os emigrantes portugueses são a expressão humana de uma grande aventura, mas de uma aventura trágica. É fundamental que nos lembremos disso na análise que fazemos a este conjunto vasto que é Portugal e o Portugal que vive no exterior.

A “chantagem” a que eu me referia tem a ver com o facto de, perante este complexo de culpa legitimamente criado face aos nossos emigrantes, eles terem sido colocados no seio de uma espécie de “apropriação” político-partidária, ligada à nossa luta política interna. A partir do momento em que os emigrantes votam, põe-se a questão sobre quem os representa melhor, quais as formas de repercutir internamente os interesses que as comunidades migrantes residentes no exterior projetam como sendo os seus, no seu compreensível desejo de maximizar a sua influência. Os partidos competem entre si, às vezes de forma demagógica, pelo potenciar desses direitos dos emigrantes. Tudo começou com a discussão constitucional sobre a representação dos emigrantes na Assembleia da República, depois foi a vez do voto para as eleições presidenciais, para além de outros processos subsequentes de representação institucional – alguns dos quais ainda em curso de discussão. E isso, com naturalidade, projetou-se também em certas políticas públicas que dizem respeito às comunidades. 

Para o que nos importa neste colóquio, eu gostaria de lembrar o problema, que diariamente se coloca, sobre o tipo de ensino da língua portuguesa a ministrar às crianças das comunidades no estrangeiro. Não vale a pena esconder que existe aqui uma verdadeira questão a resolver, que não deixa de estar ligada ao modo como lemos as virtualidades da integração dessas comunidades nos países onde estão instaladas.

No olhar político sobre este tema, prevalece uma forte timidez em querer abrir o debate. Não vale a pena esconder que prevalece hoje, nas comunidades portuguesas, uma perspetiva dominantemente conservadora e estática quanto ao modo como o ensino do português deve ser ministrado. Eu não sei – porque não sou um especialista – se essa perspetiva tem razão de ser. O que sinto é que o mundo oficial português – na administração como na política – parece temeroso de abrir uma discussão, por exemplo, sobre se se deve privilegiar o português como língua materna ou se se deve avançar para a consideração preferencial do português como língua estrangeira. Esta é a razão pela qual entendo que uma questão, que é essencial para a definição definitiva de uma linha estratégica para a afirmação da língua portuguesa no mundo, está atualmente refém do receio de estimular um debate, que se sabe que pode ser politicamente polarizado no seio das comunidades. Com toda a franqueza, quero dizer que acho que não tem havido coragem, em qualquer dos lados do espectro político, para forçar este debate, com frontalidade, com argumentação técnica, séria e elaborada.

Só através desse confronto aberto de perspetivas serás possível ter uma ideia mais clara sobre se o esforço que estamos a fazer para o ensino do português em países estrangeiros, particularmente no ensino primário, tem algum sentido de utilidade e de sustentação, se os meios que estamos a utilizar e a forma como os utilizamos são aqueles que melhor ajudam ao futuro e à progressão da língua portuguesa nesses países.

Desde que cheguei a França pressenti, de imediato, que esta é uma discussão muito complexa, porque atravessa perspetivas e interesses dentro do movimento associativo e da comunicação social das comunidades. É uma questão que senti que não é cómoda para ser abordada pelos diplomatas portugueses, como aliás o não foi quando a senhora presidente do Instituto Camões suscitou o tema, no início do seu mandato: caiu logo “o Carmo e a Trindade”! Ora esta é uma das questões que, a meu ver, tem uma caráter essencial para a nossa estratégia da língua. 

Temos de perceber, de uma vez por todas, o que queremos fazer com o ensino da língua portuguesa, com a importante contribuição dada pelo Estado português para o ensino da língua portuguesa no estrangeiro, em especial ao nível do ensino primário. Porque isto, convém que se saiba, tem depois consequências nos níveis superiores de ensino. Em França, há hoje cerca de 130 professores de português, através de todo o país, coordenados por um serviço em Paris, dependente da Embaixada. Confesso que sinto essa rede de ensino um pouco “solta”, com modelos de avaliação de desempenho que me suscitam algumas dúvidas, as mesmas dúvidas que alimento quanto à capacidade de controlo pedagógico, nomeadamente em matéria de formação e atualização, de muitos desses professores, que atuam em lugares distantes, com escasso contacto personalizado com o serviço coordenador. 

Esse trabalho de coordenação, que era feito pelo Ministério da Educação e que agora compete ao Instituto Camões, merece, a meu ver, ser profundamente revisitado e avaliado – e eu presumo no que me estou a meter, ao falar de avaliação de professores...

Exemplos muito interessantes a nível do ensino do português em França são as “secções internacionais” existentes em alguns liceus franceses. Infelizmente são poucas e o universo de alunos é limitado, o que condiciona, por extensão, a progressão suficiente de alunos de português para o nível seguinte, o nível universitário.

No âmbito das universidades francesas, eu diria que o panorama não é muito brilhante, para além de alguns casos pontuais de sucesso. Temos hoje situações muito variadas, às vezes dependentes da capacidade e prestígio das pessoas que estão a titular os estudos, outras vezes relevando da abertura concedida pelas próprias universidades. Seria muito importante se fosse possível mobilizar os eleitos locais de origem portuguesa, em ligação aos pais, ao movimento associativo e aos “lóbis” que eles conseguissem gerar localmente, forçando o apoio dos “maires”, dos deputados e dos senadores. Mas, para isso, era importante que a comunidade portuguesa funcionasse de forma conjugada, que os portugueses e luso-descendentes se inscrevessem nos cadernos eleitorais, por forma a poderem ter um peso político que conseguisse forçar a abertura de maior espaço para a língua portuguesa, junto de instituições que hoje têm muita autonomia local e regional, pelo que não são suscetíveis de pressão política governo-a-governo. Até no plano “semântico” seria necessário fazer mudanças, por forma a autonomizar os estudos portugueses e do português das dimensões organizacionais marcadas, por exemplo, pela matriz hispânica. Reconheço que é um processo muito complicado, pelo que não consigo estar muito otimista relativamente ao futuro daquilo que é o ensino do português nas universidades de França.

No entanto, e a outro nível mais comercial, tenho visto uma interessante progressão do interesse pelo ensino do português para adultos franceses, nomeadamente no quadro do Instituto Camões, em Paris. Isso tem menos a ver com Portugal e mais com os interesses de formação linguística com vista aos laços com o Brasil e até com Angola. Este é igualmente um dos caminhos para a afirmação da língua portuguesa no exterior.

Uma das ideias que criei quando estive no Brasil e que se reforçou em mim agora em França é de que temos, cada vez mais, de tratar a questão da língua portuguesa como a questão das expressões linguísticas em português. E, em particular, temos de saber tratar em conjunto a questão das literaturas que se expressam em português. É preciso colocar a trabalhar em conjunto das Embaixadas da CPLP, temos de assumir que essa é uma tarefa colectiva, que só a sinergia do trabalho articulado dos países que se expressam em português conseguirá dar expressão à língua à escala global. Só dessa forma conjugada será possível garantir que a língua portuguesa virá a ocupar um espaço de natureza cultural, que lhe garanta um suporte institucional sustentado, nomeadamente a nível das universidades e dos centros de estudos.

Sem esse trabalho oficial conjugado, tudo se perde. Vale a pena dizer que, em França, vemos um esforço  magnifico que é desenvolvido por algumas editoras, no apoio e na promoção das literaturas de expressão portuguesa, muitas vezes com o apoio do Instituto Camões ou da Fundação Calouste Gulbenkian. Esta Fundação, numa excelente cooperação e articulação conosco, que quero aqui sublinhar, tem feito um notável trabalho em prol da cultura portuguesa e de língua portuguesa, que a todos nos prestigia. Quero dizer isto de forma clara porque sendo nós um país que parece que faz gala em dividir-se e conflituar, ao menos que, quando, por uma vez, as coisas correm bem, deve congratular-se por isso. Para que sirva de exemplo.

Mas eu diria, e para terminar, que tenho a sensação de que falta a tudo isto um grande “empurrão”. E esse grande empurrão tem de se chamar Brasil. O embaixador Alberto Costa e Silva, que está ali na primeira fila, tal como o “embaixador” José Carlos de Vasconcelos – a quem eu teimo em chamar embaixador pelo extraordinário trabalho que tem feito pela lusofonia - sabem bem que, sem o Brasil, sem um forte empenhamento do Brasil no quadro internacional, a promoção da língua portuguesa não dará passos concretos e fortes. Durante anos, e pela minha experiência, o Brasil não teve em grande atenção a expressão internacional do português, como um elemento prioritário para a sua afirmação externa. O facto de o Brasil ter agora nascido para uma visibilidade exterior completamente diferente daquela que tinha no passado começa a dar-lhe uma nova consciência quanto ao modo como deve utilizar a língua.

E como, como eu costumo dizer, não há nenhuma afirmação externa no Brasil, nomeadamente no aspecto estratégico como potência, que seja contraditória com a afirmação externa de qualquer dos outros países de expressão portuguesa, nomeadamente Portugal, parecem reunidas as condições ideais para trabalharmos em conjunto. E não nos podemos atrasar mais: a luta de afirmação cultural e linguística a nível global está aí, por exemplo na ocupação do espaço da Internet. Isso implica que devamos juntar todos os esforços no sentido de garantir que as expressões culturais em língua portuguesa possam trabalhar de uma forma mais organizada. Às vezes, nem sequer é preciso gastar muito mais dinheiro, é preciso é ter vontade politica para actuar conjugadamente nos fóruns multilaterais, é preciso ter vontade para não sublinharmos excessivamente aquilo que nos pode dividir, em especial as “bizantinas” questões em torno do acordo ortográfico. Esta parafernália de discussão sobre as maneiras diferentes de escrever a língua portuguesa é um debate inútil.

E, repito, seria muito importante que as embaixadas dos países de língua portuguesa recebessem instruções concretas para trabalharem em conjunto, para estabelecerem programas de promoção cultural conjugados, que pudessem pôr em evidência os seus romancistas e os seus poetas, que se exprimem nas diversas formas que pelo mundo a nossa língua toma.

Era isto que pretendia dizer-lhes, em função da minha prática como embaixador. Em síntese, que devemos, cada vez mais, jogar com verdade nas questões da promoção e ensino da língua e não nos deixarmos aprisionar por lógicas de natureza política, por comodismo e por falta de frontalidade.

Muito obrigado pela vossa atenção.


* Intervenção de improviso no painel "Diáspora e Emigração", no Encontro Internacional "Língua portuguesa e culturas lusófonas num universo globalizado", organizado pela União Latina e pela Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, em 25 e 26 de outubro de 2010.

2 comentários:

  1. Gostei ... A sério.

    "jogar com verdade nas questões da promoção e ensino da língua e não nos deixarmos aprisionar por lógicas de natureza política, por comodismo e por falta de frontalidade."In FSC (2010)

    Até apetece tornar extensivo a uma diversidade de "outras" questões...Pertinente.
    Isabel Seixas

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