É vulgar dizer-se que o
Tratado de Maastricht representou o primeiro momento de “revolta” das opiniões
públicas, face a um processo de construção europeia que, até então, estaria a
ter lugar nas suas costas, por acordos intergovernamentais, com escassez de
escrutínio legitimador. Esta perceção parece ter sentido e talvez alguma
natural justificação pelo facto de ter sido precisamente a partir desse tratado
que as instituições comunitárias se aproximaram de áreas temáticas que, no
passado, estavam em absoluto, reservadas aos processos nacionais de gestão de
soberania.
As dificuldades
verificadas em alguns referendos a que a ratificação desse tratado obrigou, bem
como o surgimento de uma nova e mais sofisticada cultura de anti-europeísmo nas
opiniões públicas de certos Estados, revelaram que as agendas nacionais de
interesses e preocupações entravam num processo de alguma divergência.
O Tratado de Amesterdão,
na modéstia substantiva dos seus propósitos, procurou colmatar algumas
disfunções que vinham de Maastricht, mas não foi tão longe quanto se
pretenderia.
O Tratado de Nice tinha,
para alguns, um objetivo bem mais prosaico, disfarçado por detrás de um desejo
de aumento de eficácia: operar uma urgente reordenação do poder no seio do
processo decisório. De forma não declarada, ele consubstanciava a tentativa de
quantos se haviam habituado à preeminência relativamente fácil da sua vontade,
na Europa que crescera até quinze membros, de poder garantir que tal capacidade
se não perderia num modelo europeu que já se sabia então que viria a ser muito
mais alargado. Mas Nice não foi suficiente, como se viu.
A declaração acordada em
Laeken suscitou, então, novas questões, unindo, numa estranha ambiguidade de
propósitos, quantos, genuinamente, queriam assegurar um impulso mais
federalizante ao projeto integrador com aqueles que, numa ambição de diferente
matiz, olhavam a Europa na lógica do seu controlo futuro, através de um modelo
híbrido de intergovernamentalidade e comunitarização.
Do “Tratado Constitucional”...
A Convenção para o Futuro
da Europa, dotada de um processo de produção de consensos mais do que
discutível, foi a “mãe” de todos os equívocos que marcaram, a partir de então,
o projeto europeu. Com ela se pretendeu criar um ambiente propício à aceitação
futura, em todos os Estados, do novo “Tratado Constitucional” que resultaria
desse exercício, através do envolvimento, a montante das ratificações, de
representantes dos parlamentos nacionais e europeu, bem como de outros atores
suscetíveis de facilitarem esse acolhimento. O projeto consagrava, contudo,
pela primeira vez, uma subliminar expropriação dos poderes tradicionais da
Comissão Europeia, única entidade à volta de cujo reforço de poder poderia, um
dia, surgir uma Europa de matriz federal.
Ao conferir ao peso
demográfico um papel muito relevante no processo decisório, o “Tratado
Constitucional” operava, contudo, um corte epistemológico com a filosofia que
tinha conduzido até então a Europa. A “décrochage” entre os maiores Estados e o
brutal agravamento das diferenças de relevância de todos os outros induzia um
inédito potencial de tensões e suscitava, de um momento para o outro, novas
dúvidas e incertezas, a que as opiniões públicas não podiam doravante ser
alheias.
A conjugação de vários e
díspares fatores, em que o que ficou dito não deixou igualmente de ponderar,
levou à rejeição do projeto de “Tratado Constitucional” pela França e pelos
Países Baixos, quando o processo de ratificações ainda estava em curso, levando
ao seu abandono formal.
... ao Tratado de Lisboa
Mas os seus promotores
não desistiram e logo enveredaram por uma apressada retificação semântica,
aliada a alguma cosmética substantiva destinada a contentar setores
potencialmente relutantes, dando origem àquilo que veio a chamar-se o Tratado
de Lisboa. A capital portuguesa, com laivos de duvidosa glória, ficou assim
ligada a uma espécie de genérico do falecido “Tratado Constitucional”, o qual
contém no seu seio todos os desequilíbrios interinstitucionais que este último
já pretendia consagrar.
Com o Tratado de Lisboa,
cuja ratificação a 27 se revelou um pouco mais fácil e foi feita com um sentido
de urgência que nada objetivamente justificava, a União Europeia passou a
dotar-se de uma complexa titularidade na sua direção quotidiana, cumulando
fórmulas tributárias de óbvia intergovernamentalidade (o presidente do Conselho
europeu) com a preservação de elementos do modelo comunitário (o presidente da
Comissão europeia), numa simbiose que tem o seu expoente de conjugação
operativa na criação de uma figura, sujeita a uma dupla tutela, que
teoricamente chefia a representação externa comum da União. Face a esta tríade
surge ainda, em evidente perda de velocidade institucional, a presidência
rotativa.
A Europa institucional e a crise
A crise
económico-financeira veio rapidamente colocar este novo modelo sob teste. Com o
Reino Unido e a Polónia fora do euro e com a Espanha e a Itália em evidentes
apuros, o chamado “eixo” franco-alemão tomou, com alguma naturalidade, as
rédeas da gestão da reação europeia à crise, o que também foi claramente
facilitado pelo perfil complacente dos titulares institucionais da União, os
quais, desde o primeiro minuto, se revelaram disponíveis para se colocarem ao
serviço dos poderes fáticos que se impunham. Não tinha sido outro, aliás, o
objetivo da sua institucionalização.
Não obstante a coreografia
do poder europeu ter surgido ancorada na relação entre Berlim e Paris, a
realidade das coisas passou a mostrar que o verdadeiro “novo eixo” europeu se
estabelecia entre Berlim e Frankfurt, sede de um Banco Central Europeu cuja
nova liderança se revelou surpreendentemente eficaz e criativa, com a
serenidade suficiente para se firmar como um positivo elemento estabilizador,
embora só limitadamente pudesse forçar a dinâmica da vontade política de
Berlim. Como contrapartida à efetivação dos novos mecanismos de apoio
financeiro para ajudar à saída da crise, surgiu, entretanto, o Tratado
Orçamental, que impõe modelos de condicionalidade, em termos de objetivos e de
coordenação de políticas financeiras nacionais, que acrescem aos que o Pacto de
Estabilidade e Crescimento tinha previsto como necessários para a regulação do
comportamento macroeconómico que servia de cenário de fundo à zona euro.
O fim do sonho federal?
Olhando em perspetiva
estas duas décadas, bem como o modo como nelas evoluiu o projeto europeu, é-se
forçado a constatar que o aprofundamento desse projeto, a inclusão nele de
novas valências que o tornaram bastante mais coerente, com um acervo muito
apreciável, não foi de par com a gestação de uma vontade comum no sentido de se
caminhar para um modelo verdadeiramente federal. As razões porque isso não
aconteceu podem ter sido várias, mas basta lembrar algumas.
A heterogeneidade de
culturas políticas introduzida pelos alargamentos pode ter sido uma dessas
razões. Outra poderá ser o impacto diferenciado das políticas da União no
tecido social dos diversos países, com uma visão de “ganhos-e-perdas” cada vez
mais diversa, com os cidadãos a demonstrarem que só estão disponíveis para
aceitar “mais Europa” quando se sentem confortados com a Europa que já têm, o
que muito frequentemente não acontece. Essas disfunções ao nível dos Estados
conduziram, além disso, à frequente perda dos consensos nacionais que se haviam
criado em torno do investimento político no projeto integrador, com o
surgimento, nos executivos nacionais, ou condicionando-os de fora, de formações
partidárias que colocam abertas reticências ao compromisso europeu e não têm
pejo em assumir agendas nacionais “egoístas”, antes dificultadas pelo
“politicamente correto” que protegia a bondade da opção comunitária.
Nestas condições, parece
estar a gizar-se um novo consenso, mesmo entre os mais euro-entusiastas, no
sentido de que é hoje inviável, à escala da União como um todo, vir a
concretizar um modelo federal dotado dos clássicos equilíbrios, com a
ponderação das desigualdades demográficas a ser compensada pelo princípio da
igualdade dos Estados, expressa num “senado” com representação equitativa. De
facto, não me parece que já seja minimamente plausível que venha a haver
condições para se criar, um destes dias, uma “câmara” onde Malta e a Alemanha
tenham o mesmo peso...
A moeda como cimento?
Neste cenário de uma
Europa com poderes nacionais muito desiguais e sem vontade de dispensar a
consagração institucional dessa realidade, mesmo os mais euro-entusiastas
parece terem já abandonado os sonhos de uma “grande União Europeia” e, numa
opção de recuo tático, começam a colocar as suas cartas numa União política a
construir em torno da moeda única, aceitando assim, explicitamente, um modelo
de Europa diferenciada.
Esta espécie de
federalismo funcional, que o Tratado Orçamental e o Mecanismo Europeu de
Estabilidade pré-anunciam, parece ser, na realidade, o elemento mais
consistente e unificador no mercado das possibilidades.
Duas grandes questões se
colocam, porém. A primeira, a de saber em que medida será viável
compatibilizar, de forma institucional simultaneamente aceitável e legítima,
esse “núcleo duro” com o restante tecido da União, em matéria de condução
política do projeto, tornando coerentes realidades que, com o andar dos tempos,
tenderão forçosamente a ganhar ainda maior distância entre si. A segunda, bem
mais importante, será saber se o próprio projeto de “cooperação reforçada”, que
o núcleo em torno da moeda única parece pretender construir, tem, ele próprio,
um cimento que vá para além do conjuntural estado de necessidade que a zona
euro atravessa nos dias de hoje.
Alguns, mais otimistas,
arguirão, porventura, que um eventual sucesso e uma saída da crise acabarão por
desencadear uma vontade europeia nova em alguns Estados que hoje são
atravessados por um evidente recuo cético. Isso, porém, só será possível de
testar se e quando a Europa “der a volta” à presente crise, o que parece dever
implicar a preservação, a todo o custo, da integralidade da atual zona euro. E
até lá, neste domínio, as dúvidas sobrelevam as certezas.
Uma ironia se impõe:
todos, no passado, consideravam que seria o sucesso do projeto europeu, o
prosseguimento, sem pausas pelo caminho, da viagem da “bicicleta de Delors”, que
iria fazer chegar o continente alargado aos “amanhãs” federais. Afinal, quem
sabe se não acabaremos por pôr a crédito de uma crise a realização de um
modelo, embora quiçá atípico, de desenho minimamente federal. Se assim
acontecer, pode ser que alguém se lembre de atribuir à crise a virtualidade que
alguém, um dia, conferiu à violência, tida como “parteira da História”...
***
Os riscos de
periferização
A irrelevância objetiva
de Portugal no processo decisório europeu, substancialmente agravada pelo
Tratado de Lisboa, cumulada com o irrecuperável esbatimento da função arbitral
da Comissão, configura um quadro de riscos crescentes para a capacidade do país
de assegurar os seus interesses no âmbito do Conselho. Se a tal se somar a
atual crise económico-financeira, com efeitos diretos sobre a margem de manobra
portuguesa, fácil é concluir que o cenário de um novo ciclo de periferização é
real e, como tal, tudo deve ser feito para que seja evitado.
Todos os esforços que
possam ser empreendidos para que o país se mantenha no euro, por maiores que
sejam, serão sempre inferiores ao custo que Portugal teria de suportar se acaso
viesse a sair da moeda única ou a ser colocado num limbo monetário secundário,
como, por vezes, algumas vozes alvitram. A opção por uma reestruturação da
dívida – isto é, o seu não pagamento parcial – teria, do igual modo, um efeito
devastador e duradouro sobre a imagem externa do país, descredibilizando todos
os esforços entretanto feitos.
Não obstante o voluntarismo
que, no passado, colocou Portugal em todas as formas de integração diferenciada
possa, futuramente, vir a não ser suficiente, face a modelos dependentes do
potencial económico-financeiro, é forçoso continuar a consensualizar
internamente uma atitude positiva e “centrípeta” face ao projeto comunitário,
nomeadamento no âmbito dos parlamentos nacional e europeu.
Porque o modelo de
“cooperação reforçada” em torno do euro se apresenta como aquele que, de forma
mais plausível, pode vir a evoluir para um “núcleo duro”, embrião de uma União
política, importa centrar nele a atenção prioritária da política que Portugal
vier a ter para a Europa. Mas, nesse contexto, o país não deve ficar por aí:
tal como sucedeu durante mais duas décadas, a atitude portuguesa deve ser
inventiva e pró-ativa em todas as áreas da União, não apenas reativa e tímida,
projetando uma imagem resignada de impotência e de dependência fatalista face
ao que outros entendam que o país deve fazer.
"Uma ironia se impõe: todos, no passado, consideravam que seria o sucesso do projeto europeu, o prosseguimento, sem pausas pelo caminho, da viagem da “bicicleta de Delors”, que iria fazer chegar o continente alargado aos “amanhãs” federais. Afinal, quem sabe se não acabaremos por pôr a crédito de uma crise a realização de um modelo, embora quiçá atípico, de desenho minimamente federal. Se assim acontecer, pode ser que alguém se lembre de atribuir à crise a virtualidade que alguém, um dia, conferiu à violência, tida como “parteira da História”..."
ResponderEliminarPertinente mensagem, hélas, subliminar para quem é dirigida.
Excelente analise, Senhor Embaixador!