11 de junho de 2013

Europa - o dilema institucional

É vulgar dizer-se que o Tratado de Maastricht representou o primeiro momento de “revolta” das opiniões públicas, face a um processo de construção europeia que, até então, estaria a ter lugar nas suas costas, por acordos intergovernamentais, com escassez de escrutínio legitimador. Esta perceção parece ter sentido e talvez alguma natural justificação pelo facto de ter sido precisamente a partir desse tratado que as instituições comunitárias se aproximaram de áreas temáticas que, no passado, estavam em absoluto, reservadas aos processos nacionais de gestão de soberania.

As dificuldades verificadas em alguns referendos a que a ratificação desse tratado obrigou, bem como o surgimento de uma nova e mais sofisticada cultura de anti-europeísmo nas opiniões públicas de certos Estados, revelaram que as agendas nacionais de interesses e preocupações entravam num processo de alguma divergência. 

O Tratado de Amesterdão, na modéstia substantiva dos seus propósitos, procurou colmatar algumas disfunções que vinham de Maastricht, mas não foi tão longe quanto se pretenderia.

O Tratado de Nice tinha, para alguns, um objetivo bem mais prosaico, disfarçado por detrás de um desejo de aumento de eficácia: operar uma urgente reordenação do poder no seio do processo decisório. De forma não declarada, ele consubstanciava a tentativa de quantos se haviam habituado à preeminência relativamente fácil da sua vontade, na Europa que crescera até quinze membros, de poder garantir que tal capacidade se não perderia num modelo europeu que já se sabia então que viria a ser muito mais alargado. Mas Nice não foi suficiente, como se viu.

A declaração acordada em Laeken suscitou, então, novas questões, unindo, numa estranha ambiguidade de propósitos, quantos, genuinamente, queriam assegurar um impulso mais federalizante ao projeto integrador com aqueles que, numa ambição de diferente matiz, olhavam a Europa na lógica do seu controlo futuro, através de um modelo híbrido de intergovernamentalidade e comunitarização.

Do “Tratado Constitucional”...

A Convenção para o Futuro da Europa, dotada de um processo de produção de consensos mais do que discutível, foi a “mãe” de todos os equívocos que marcaram, a partir de então, o projeto europeu. Com ela se pretendeu criar um ambiente propício à aceitação futura, em todos os Estados, do novo “Tratado Constitucional” que resultaria desse exercício, através do envolvimento, a montante das ratificações, de representantes dos parlamentos nacionais e europeu, bem como de outros atores suscetíveis de facilitarem esse acolhimento. O projeto consagrava, contudo, pela primeira vez, uma subliminar expropriação dos poderes tradicionais da Comissão Europeia, única entidade à volta de cujo reforço de poder poderia, um dia, surgir uma Europa de matriz federal.

Ao conferir ao peso demográfico um papel muito relevante no processo decisório, o “Tratado Constitucional” operava, contudo, um corte epistemológico com a filosofia que tinha conduzido até então a Europa. A “décrochage” entre os maiores Estados e o brutal agravamento das diferenças de relevância de todos os outros induzia um inédito potencial de tensões e suscitava, de um momento para o outro, novas dúvidas e incertezas, a que as opiniões públicas não podiam doravante ser alheias.
 
A conjugação de vários e díspares fatores, em que o que ficou dito não deixou igualmente de ponderar, levou à rejeição do projeto de “Tratado Constitucional” pela França e pelos Países Baixos, quando o processo de ratificações ainda estava em curso, levando ao seu abandono formal.

... ao Tratado de Lisboa

Mas os seus promotores não desistiram e logo enveredaram por uma apressada retificação semântica, aliada a alguma cosmética substantiva destinada a contentar setores potencialmente relutantes, dando origem àquilo que veio a chamar-se o Tratado de Lisboa. A capital portuguesa, com laivos de duvidosa glória, ficou assim ligada a uma espécie de genérico do falecido “Tratado Constitucional”, o qual contém no seu seio todos os desequilíbrios interinstitucionais que este último já pretendia consagrar.

Com o Tratado de Lisboa, cuja ratificação a 27 se revelou um pouco mais fácil e foi feita com um sentido de urgência que nada objetivamente justificava, a União Europeia passou a dotar-se de uma complexa titularidade na sua direção quotidiana, cumulando fórmulas tributárias de óbvia intergovernamentalidade (o presidente do Conselho europeu) com a preservação de elementos do modelo comunitário (o presidente da Comissão europeia), numa simbiose que tem o seu expoente de conjugação operativa na criação de uma figura, sujeita a uma dupla tutela, que teoricamente chefia a representação externa comum da União. Face a esta tríade surge ainda, em evidente perda de velocidade institucional, a presidência rotativa.

A Europa institucional e a crise

A crise económico-financeira veio rapidamente colocar este novo modelo sob teste. Com o Reino Unido e a Polónia fora do euro e com a Espanha e a Itália em evidentes apuros, o chamado “eixo” franco-alemão tomou, com alguma naturalidade, as rédeas da gestão da reação europeia à crise, o que também foi claramente facilitado pelo perfil complacente dos titulares institucionais da União, os quais, desde o primeiro minuto, se revelaram disponíveis para se colocarem ao serviço dos poderes fáticos que se impunham. Não tinha sido outro, aliás, o objetivo da sua institucionalização.

Não obstante a coreografia do poder europeu ter surgido ancorada na relação entre Berlim e Paris, a realidade das coisas passou a mostrar que o verdadeiro “novo eixo” europeu se estabelecia entre Berlim e Frankfurt, sede de um Banco Central Europeu cuja nova liderança se revelou surpreendentemente eficaz e criativa, com a serenidade suficiente para se firmar como um positivo elemento estabilizador, embora só limitadamente pudesse forçar a dinâmica da vontade política de Berlim. Como contrapartida à efetivação dos novos mecanismos de apoio financeiro para ajudar à saída da crise, surgiu, entretanto, o Tratado Orçamental, que impõe modelos de condicionalidade, em termos de objetivos e de coordenação de políticas financeiras nacionais, que acrescem aos que o Pacto de Estabilidade e Crescimento tinha previsto como necessários para a regulação do comportamento macroeconómico que servia de cenário de fundo à zona euro.

O fim do sonho federal?

Olhando em perspetiva estas duas décadas, bem como o modo como nelas evoluiu o projeto europeu, é-se forçado a constatar que o aprofundamento desse projeto, a inclusão nele de novas valências que o tornaram bastante mais coerente, com um acervo muito apreciável, não foi de par com a gestação de uma vontade comum no sentido de se caminhar para um modelo verdadeiramente federal. As razões porque isso não aconteceu podem ter sido várias, mas basta lembrar algumas.

A heterogeneidade de culturas políticas introduzida pelos alargamentos pode ter sido uma dessas razões. Outra poderá ser o impacto diferenciado das políticas da União no tecido social dos diversos países, com uma visão de “ganhos-e-perdas” cada vez mais diversa, com os cidadãos a demonstrarem que só estão disponíveis para aceitar “mais Europa” quando se sentem confortados com a Europa que já têm, o que muito frequentemente não acontece. Essas disfunções ao nível dos Estados conduziram, além disso, à frequente perda dos consensos nacionais que se haviam criado em torno do investimento político no projeto integrador, com o surgimento, nos executivos nacionais, ou condicionando-os de fora, de formações partidárias que colocam abertas reticências ao compromisso europeu e não têm pejo em assumir agendas nacionais “egoístas”, antes dificultadas pelo “politicamente correto” que protegia a bondade da opção comunitária.

Nestas condições, parece estar a gizar-se um novo consenso, mesmo entre os mais euro-entusiastas, no sentido de que é hoje inviável, à escala da União como um todo, vir a concretizar um modelo federal dotado dos clássicos equilíbrios, com a ponderação das desigualdades demográficas a ser compensada pelo princípio da igualdade dos Estados, expressa num “senado” com representação equitativa. De facto, não me parece que já seja minimamente plausível que venha a haver condições para se criar, um destes dias, uma “câmara” onde Malta e a Alemanha tenham o mesmo peso...

A moeda como cimento?

Neste cenário de uma Europa com poderes nacionais muito desiguais e sem vontade de dispensar a consagração institucional dessa realidade, mesmo os mais euro-entusiastas parece terem já abandonado os sonhos de uma “grande União Europeia” e, numa opção de recuo tático, começam a colocar as suas cartas numa União política a construir em torno da moeda única, aceitando assim, explicitamente, um modelo de Europa diferenciada.

Esta espécie de federalismo funcional, que o Tratado Orçamental e o Mecanismo Europeu de Estabilidade pré-anunciam, parece ser, na realidade, o elemento mais consistente e unificador no mercado das possibilidades.

Duas grandes questões se colocam, porém. A primeira, a de saber em que medida será viável compatibilizar, de forma institucional simultaneamente aceitável e legítima, esse “núcleo duro” com o restante tecido da União, em matéria de condução política do projeto, tornando coerentes realidades que, com o andar dos tempos, tenderão forçosamente a ganhar ainda maior distância entre si. A segunda, bem mais importante, será saber se o próprio projeto de “cooperação reforçada”, que o núcleo em torno da moeda única parece pretender construir, tem, ele próprio, um cimento que vá para além do conjuntural estado de necessidade que a zona euro atravessa nos dias de hoje.

Alguns, mais otimistas, arguirão, porventura, que um eventual sucesso e uma saída da crise acabarão por desencadear uma vontade europeia nova em alguns Estados que hoje são atravessados por um evidente recuo cético. Isso, porém, só será possível de testar se e quando a Europa “der a volta” à presente crise, o que parece dever implicar a preservação, a todo o custo, da integralidade da atual zona euro. E até lá, neste domínio, as dúvidas sobrelevam as certezas.

Uma ironia se impõe: todos, no passado, consideravam que seria o sucesso do projeto europeu, o prosseguimento, sem pausas pelo caminho, da viagem da “bicicleta de Delors”, que iria fazer chegar o continente alargado aos “amanhãs” federais. Afinal, quem sabe se não acabaremos por pôr a crédito de uma crise a realização de um modelo, embora quiçá atípico, de desenho minimamente federal. Se assim acontecer, pode ser que alguém se lembre de atribuir à crise a virtualidade que alguém, um dia, conferiu à violência, tida como “parteira da História”...


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Os riscos de periferização

A irrelevância objetiva de Portugal no processo decisório europeu, substancialmente agravada pelo Tratado de Lisboa, cumulada com o irrecuperável esbatimento da função arbitral da Comissão, configura um quadro de riscos crescentes para a capacidade do país de assegurar os seus interesses no âmbito do Conselho. Se a tal se somar a atual crise económico-financeira, com efeitos diretos sobre a margem de manobra portuguesa, fácil é concluir que o cenário de um novo ciclo de periferização é real e, como tal, tudo deve ser feito para que seja evitado.

Todos os esforços que possam ser empreendidos para que o país se mantenha no euro, por maiores que sejam, serão sempre inferiores ao custo que Portugal teria de suportar se acaso viesse a sair da moeda única ou a ser colocado num limbo monetário secundário, como, por vezes, algumas vozes alvitram. A opção por uma reestruturação da dívida – isto é, o seu não pagamento parcial – teria, do igual modo, um efeito devastador e duradouro sobre a imagem externa do país, descredibilizando todos os esforços entretanto feitos.

Não obstante o voluntarismo que, no passado, colocou Portugal em todas as formas de integração diferenciada possa, futuramente, vir a não ser suficiente, face a modelos dependentes do potencial económico-financeiro, é forçoso continuar a consensualizar internamente uma atitude positiva e “centrípeta” face ao projeto comunitário, nomeadamento no âmbito dos parlamentos nacional e europeu.


Porque o modelo de “cooperação reforçada” em torno do euro se apresenta como aquele que, de forma mais plausível, pode vir a evoluir para um “núcleo duro”, embrião de uma União política, importa centrar nele a atenção prioritária da política que Portugal vier a ter para a Europa. Mas, nesse contexto, o país não deve ficar por aí: tal como sucedeu durante mais duas décadas, a atitude portuguesa deve ser inventiva e pró-ativa em todas as áreas da União, não apenas reativa e tímida, projetando uma imagem resignada de impotência e de dependência fatalista face ao que outros entendam que o país deve fazer. 

1 comentário:

  1. "Uma ironia se impõe: todos, no passado, consideravam que seria o sucesso do projeto europeu, o prosseguimento, sem pausas pelo caminho, da viagem da “bicicleta de Delors”, que iria fazer chegar o continente alargado aos “amanhãs” federais. Afinal, quem sabe se não acabaremos por pôr a crédito de uma crise a realização de um modelo, embora quiçá atípico, de desenho minimamente federal. Se assim acontecer, pode ser que alguém se lembre de atribuir à crise a virtualidade que alguém, um dia, conferiu à violência, tida como “parteira da História”..."

    Pertinente mensagem, hélas, subliminar para quem é dirigida.

    Excelente analise, Senhor Embaixador!

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