Texto incluído em "Estudo da Estrutura Diplomática Portuguesa", edição Observare, Lisboa, 2019
O conceito de “embaixadores políticos” não tem consagração legal, sendo, no entanto, vulgarmente utilizado, na comunicação social e na linguagem comum, para designar pessoas alheias às carreiras profissionais que são indicadas para a chefia de missões diplomáticas, bilaterais ou multilaterais.
Em rigor, deve dizer-se que, na história da diplomacia, todos os representantes diplomáticos começaram por ser “políticos”, porquanto, na ausência de carreiras estruturadas de diplomatas profissionais, eram sempre figuras de confiança pessoal do soberano as que eram destacadas para o representar junto de um seu homólogo - dispondo aliás, tradicionalmente, de poderes de representação muito alargados e bem superiores aos dos atuais profissionais. Daí resulta a designação, um tanto gongórica, de “embaixador extraordinário e plenipotenciário”, que ainda hoje sobrevive na liturgia diplomática.
O crescimento do número de Estados na cena internacional, que se acentuou fortemente após as descolonizações subsequente à Segunda Guerra mundial, provocou um aumento exponencial das missões diplomáticas (e consulares) bilaterais. Também o surgimento de organizações internacionais de natureza permanente, que veio a ter lugar ao longo do século XX, obrigou os Estados a estruturar e a reforçar as respetivas carreiras diplomáticas, que acabaram por se tornar, no essencial, em normais carreiras de serviço público, com prestação alternada de funções nos quadros interno e externo, ao serviço dos ministérios encarregados da representação internacional dos Estados.
Por muito tempo, os diplomatas profissionais de carreira, quando colocados em postos externos, permaneceriam sob a chefia de personalidades estranhas à sua carreira, as quais dispunham da confiança política do poder de turno. Com o aumento do número desses postos, aos diplomatas profissionais passou a ser acessível a chefia de missões diplomáticas – tal como, desde há muito, já ocorria com os postos consulares.
Na generalidade dos países democráticos - os Estados Unidos da América foram sempre uma notável exceção, onde a chefia das principais embaixadas é sempre atribuída a personalidades políticas e a financiadores ou coletores de financiamento das campanhas presidenciais –, a prática caminhou no sentido de atribuir progressivamente aos diplomatas de carreira a direção das embaixadas e das representações permanentes junto dos organismos multilaterais.
Porém, convém notar que, em muitos países, as exceções a esta regra foram e continuam a ser imensas. Pode dizer-se, em tese, que um grande número de Estados, praticando-o ou não, continua a não fechar a porta à possibilidade de designar para a chefia das suas missões diplomáticas figuras não oriundas do seu serviço público especializado para tal fim.
Portugal não foi estranho à evolução que se processou pelo mundo. Depois de um período - todo o tempo da Monarquia e da Primeira República - em que as chefias das escassas missões diplomáticas eram reservadas a figuras de indicação política, geralmente com um perfil relativamente elevado e uma reconhecida qualificação e imagem públicas, os últimos anos do Estado Novo, precisamente pela multiplicação do número de embaixadas, vieram a consagrar uma crescente presença de profissionais diplomáticos na direção dessas estruturas externas. Verdade seja que a maioria dos diplomatas que vieram a ser escolhidos para a chefia de missões diplomáticas de maior importância o terão sido pelo facto de partilharem ideologicamente as finalidades do regime, naquilo que constituiu então uma forte politização da carreira, motivada pela concentração obsessiva e monotemática da diplomacia portuguesa em torno da questão colonial. Algumas escassas exceções, de diplomatas mais “independent-minded” que ascenderam à chefia de postos relevantes, não chegam para infirmar esta evidente regra.
Ao tempo da Revolução de 1974, apenas no Brasil (José Hermano Saraiva) e na Argentina (Luís Pinto Coelho) o regime de então mantinha “embaixadores políticos”. Era manifestamente uma presença já residual, o que se justificava pelo facto do regime poder contar, entre os diplomatas profissionais, com quadros que garantiam, por adesão política e/ou por boa qualidade técnica, uma eficaz execução da sua política.
Com a ocorrência do 25 de abril, terá havido, no seio do novo poder político, um debate sobre a oportunidade de “refrescar” o quadro diplomático profissional, e não apenas a chefia dos postos externos, com figuras que dessem garantias de lealdade ao novo curso político do país. Fora isso, aliás, o que acontecera após a implantação da República, em 5 de outubro de 1910, ou na decorrência da instauração da Ditadura militar, em 28 de maio de 1926.
Ao tempo de 1974, chegou mesmo a ser ventilada a ideia do preenchimento do quadro diplomático, a nível intermédio, por figuras tidas como possuindo credenciais democráticas, com o argumento de que a algumas gerações havia estado vedado, por determinantes políticas, o acesso à carreira diplomática. Essa ideia, por razões que se desconhecem, mas que poderão ter estado ligadas à dificuldade um obter um consenso interpartidário e com outros centro de poder, acabou por não vingar, tal como não viria a ter vencimento a proposta, ainda mais radical, de um “saneamento” profundo nos funcionários diplomáticos que haviam servido o regime ditatorial. Na prática, foram apenas afastados alguns diplomatas acusados de um excessivo zelo persecutório dos opositores ao anterior regime, foram feitas algumas naturais mudanças de chefias diplomáticas externas, mas foi, no essencial, mantido em funções o corpo de funcionários diplomáticos no ativo.
Permaneceu, no entanto, sempre aberta a porta ao recrutamento de “embaixadores políticos”. Nenhum partido político da nova ordem democrática deu até hoje sinais de recusar a possibilidade de vir a usar no futuro a rede diplomática para acolher personalidades estranhas à carreira profissional. Bem pelo contrário, por mais de uma vez foram notórias posições públicas que indiciam a vontade potencial de, no futuro, vir a retomar esse caminho. O Partido Socialista parece ser aquele onde esse tropismo parece sobreviver com maior intensidade. Não há assim vontade de impor um normativo legal para acabar com essa possibilidade, nem se tem notado, por parte dos chefes do Estado a quem compete nomear formalmente os embaixadores, no quadro da competência em matéria de política externa que a Constituição lhes faculta, uma determinação no sentido de não favorecer essa prática.
Desde o 25 de abril até ao termo de 2018, os 27 governos da Democracia indicaram um total de 31 “embaixadores políticos”. Como se constatará, mais de um terço desses embaixadores foi nomeado no período que antecedeu a promulgação da Constituição de 1976.
Assinale-se que, por legislação ulteriormente publicada, a algumas dessas personalidades, com um mínimo de anos de serviço na função, viria a ser facilitado o ingresso no próprio quadro diplomático corrente, podendo dessa forma rodar entre postos, no abandono daquela que era a justificação mais vulgar para a sua designação – a sua especial adequação ao exercício de funções num determinado posto. Nenhuma das personalidades que ascendeu à carreira diplomática por essa via está hoje em funções. Aliás, à data da produção deste texto, apenas existe uma única figura de “embaixador político” – o representante permanente junto da Unesco.
Como é natural, a presença de figuras de nomeação política para a chefia de missões diplomáticas, curto-circuitando profissionais que progridem regularmente na sua carreira, com expetativa de acesso a esses lugares cimeiros num prazo mínimo de cerca de duas décadas, não é muito bem aceite entre os diplomatas profissionais. Porém, pode dizer-se que a carreira diplomática portuguesa, em tempos democráticos, soube conviver bem com esta imperativa realidade e só em tempos mais recentes, através das suas estruturas sindicais, tem vindo a dar nota pública do seu desagrado, quando esse tipo de nomeações eventualmente ocorre.
Vale a pena constatar que a circunstância de algumas das personalidades, vindas do exterior da carreira, se terem constituído num valor acrescentado interessante para o serviço diplomático contribuiu para minorar essa reação negativa. Porém, no seio da carreira diplomática, prevalece a perceção - justa ou meramente corporativa, cada um a lerá à sua maneira - de que a maioria dessas personalidades externas, que foram designadas em vários ciclos políticos, não deixaram uma imagem impressiva que justificasse a excecionalidade da sua escolha e que, as mais das vezes, a sua designação correspondeu a meros jogos de oportunidade e de favorecimento político, pela sua proximidade com os governos da ocasião.
Na lista que a seguir se apresenta, optou-se por colocar cada um dos 31 “embaixadores políticos”, nomeados em tempo democrático, sob os governos que os designaram, com nota da data e posto da primeira nomeação (com referência, em pé de página, aos postos subsequentes que nove dentre eles viriam posteriormente a ocupar)
Governos Provisórios (1974/1976)
Francisco Ramos da Costa, 1974, Belgrado (1)
Mário Neves, 1974, Moscovo
José Veiga Simão, 1974, ONU
Albertino Almeida, 1975, Maputo
José Fernandes Fafe, 1975, Havana (2)
Ernâni Lopes, 1975, Bona (3)
António Coimbra Martins, 1975, Paris
Maria de Lurdes Pintasilgo, 1975, Unesco
José Manuel Galvão Teles, 1975, ONU
Manuel Bello, 1975, OCDE
André Infante, 1976, Argel
António Flores de Andrade, 1976, Lusaka
1° (PS) e 2° (PS/CDS) Governos constitucionais, primeiro-ministro Mário Soares (1976/1978)
Manuel João da Palma Carlos, 1977, Havana
José Cutileiro, 1977, Conselho da Europa (4)
Álvaro Guerra, 1977, Belgrado (5)
Vitor Cunha Rego, 1977, Madrid
Walter Rosa, 1977, Paris (6)
Vitor Alves, 1977, embaixador itinerante
3°, 4° e 5° Governos constitucionais, de iniciativa presidencial (Ramalho Eanes) (1978/1979)
Henrique Granadeiro, 1979, OCDE
6° Governo Constitucional (PSD/CDS), primeiro-ministro Sá Carneiro (1980)
Pedro Pires de Miranda, 1980, embaixador itinerante
7° Governo Constitucional (PSD/CDS), primeiro-ministro Pinto Balsemão (1981/1982)
Pedro Roseta, 1981, OCDE
9° Governo Constitucional (PS/PSD), primeiro-ministro Mário Soares (1983/1985)
Vitor Crespo, 1984, Unesco
10º, 11° e 12° Governos Constitucionais (PSD), primeiro-ministro Cavaco Silva (1985/1995)
José Augusto Seabra, 1986, Unesco (7)
Eugénio Anacoreta Correia, 1988, São Tomé (8)
Fernando Santos Martins, 1988, OCDE
Raquel Ferreira, 1988, Estocolmo (9)
José Silveira Godinho, 1993, OCDE
15° Governo Constitucional (PSD/CDS), primeiro-ministro Durão Barroso (2002/2004)
Basilio Horta, 2002, OCDE
17° e 18° Governos Constitucionais (PS), primeiro-ministro José Sócrates (2005/2011)
Eduardo Ferro Rodrigues, 2005, OCDE
Manuel Maria Carrilho, 2009, Unesco
21° Governo Constitucional (PS), primeiro-ministro António Costa (2015-2023)
António Sampaio da Nóvoa, 2017, Unesco
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(1) Também Copenhague
(2) Também México, Praia, embaixador itinerante, Buenos Aires
(3) Também CEE
(4) Também Maputo, CSCE em Estocolmo, Pretória
(5) Também Nova Deli, Kinshasa, Conselho da Europa e Estocolmo
(6) Também Caracas
(7) Também Nova Deli, Bucareste, Buenos Aires
(8) Também Praia
(9) Também Tóquio
Notas finais
- Constata-se que as personalidades próximas do Partido Socialista surgem em maior número.
- Em tempos dos Governos Constitucionais (pós 1976), as nomeações do PS e do PSD equivalem-se, com o CDS a indicar também dois nomes.
- No período dos Governos Provisórios, houve sete personalidades nomeadas que não tinham um vínculo evidente aos grandes partidos.
- Alguns “embaixadores políticos” que haviam sido nomeados num determinado ciclo político viriam a ser confirmados ou recolocados em tempos governativos de orientação muito diferentes.
- A OCDE é posto onde o maior número de “embaixadores políticos” foi colocado (sete), seguindo-se a Unesco (cinco).
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