20 de dezembro de 2019

Nuno Brederode Santos

Intervenção no lançamento do livro “Crónicas”, de Nuno Brederode Santos

A última coisa que me podia passar pela cabeça, num momento como este, era vir aqui ler um texto. Mas como me foi dito que só tenho dez minutos, e na certeza de que, se falasse de improviso, nunca mais me calava, escrevi esta manhã o que vou dizer.

Um dia, eu tinha combinado com o Nuno passarmos pelo Procópio, antes da hora de jantar, porque lhe queria falar de um determinado assunto. Eu tinha, logo a seguir, um compromisso e ele iria comer qualquer coisa ao restaurante ao lado, à Mãe de Água, como muitas vezes fazia. Arrumámos o nosso assunto rapidamente, e ainda bem. É que, nesse entretanto, surgiu um tipo qualquer, que o Nuno conhecia e que abancou na Mesa Dois, tomando conta da conversa.

Viviam-se, por essa altura, no Procópio, os primeiros tempos do novo empregado, o Luís - e já perceberão por que é que refiro isto. Para quem não conhece bem as cronologia daquele templo de tertúlia, explico que o Procópio da Sedonalice Pinto Coelho tem três épocas distintas, em matéria de serviço às mesas.

Primeiro, a do Juvenal, claro. Depois houve um tempo intermédio de serviço mais errático, a que o Nuno chamava o “período Manpower” - que era então uma empresa de recrutamento temporário. Foram expoentes desse período o Bósnio e o Croata. Que eram portugueses, diga-se. Nunca soubémos os nomes verdadeiros desses empregados passantes, que o Nuno assim crismou, à luz de uma geografia política que estava muito em voga. Até que um dia chegou o Luis. Diga-se, aliás, em boa hora.

Na conversa que estávamos a ter na Mesa Dois, o Nuno disse, já não sei a que propósito, que o Luís tinha trabalhado antes no “Értilas”, um café de Campo de Ourique onde, nos tempos da sua juventude, parava muito. O tal tipo que era conhecido do Nuno referiu então que também fora muito ao Értilas, que se lembrava bem do Nuno por lá, de conversas que tinham tido nesses tempos passados.

Notei que o Nuno não deu muito troco. A certa altura, o tipo perguntou: “Ó Nuno! Értilas é um nome grego, não é?”. O Nuno recostou-se no banco e, em pose didática, confirmou que sim, que Értilas era, de facto, um deus da mitologia grega. Deu, aliás, alguns pormenores sobre as relações familiares de Értilas com outras figuras do baralho da mitologia. Eu, como não percebia patavina do assunto, a mitologia foi coisa que nunca me entusiasmou, fui ouvindo.

A certa altura, fez-se tarde. O homem zarpou, tinha uma urgência qualquer, e eu e o Nuno saímos com um pouco mais de vagar, ele para a Mãe de Água, eu para o carro que tinha ali perto. Pela escada abaixo, depois do chafariz, comentei: “Nunca tinha pensado no nome desse café de Campo de Ourique. Por que diabo é que alguém se lembrou de lhe dar o nome de um deus grego?”.

O Nuno parou, olhou para mim com um olhar trocista e disse: ”Pois não! Claro que nunca ouviste falar! É que a palavra Értilas é Salitre, lida ao contrário, não tem nada a ver com a mitologia grega”. E acrescentou: “... como aliás aquele tipo, que conheço vagamente, nunca teve nada a ver com o Értilas, não me recordo o ter visto por lá, é um mitómano. E para um mitómano, achei que nada melhor que uma lição de mitologia...”

Era assim o Nuno, para quem teve o privilégio de o conhecer. Pessoalmente, eu conheci-o tarde. Antes, era para mim um dos nomes da crise de 62. Depois, lembro-me de o ler na “Seara Nova”, onde me ficara na memória a sua “Carta a um tuaregue”, magnificamente escrita, mas tão críptica que eu, à época, nem sequer identifiquei a quem se dirigia. Aliás, a censura deve ter pensado o mesmo, razão por que a deixou publicar...

Depois do 25 de abril, e da histórica cisão dentro do MES, terreno político onde nunca falei com o Nuno, assisti, à distância, à sua migração, com uma pessoa que está aqui nesta mesa, bem como com outras que estão na assistência, para aquele andar no Flórida que ainda hoje é um mistério no mundo da papelaria: ali foi criado o único GIS que não se apaga nunca... Devo confessar que, para mim, à época, aquele grupo não era mais do que um “desvio de direita”, embora tendo gente que me era muito simpática e amiga, mas que eu acompanhava com a curiosidade crítica, e um pouco condescendente, que dedicava então aos reformistas incuráveis. Mal eu sabia que, anos mais tarde, todos acabaríamos no mesmo endereço do Rato.

Julgo que fui apresentado, pela primeira vez, ao Nuno, pela Margarida Figueiredo, já nos anos 80. Nos primeiros tempos, curiosamente, mantínhamos uma certa cerimónia entre nós. Um dia, cheguei à Mesa Dois, onde ele estava sentado sozinho (coisa rara!), disse qualquer coisa e o Nuno comentou: “Mas por que raio é que nós nos tratamos por você?” Tenho uma dificuldade imensa, quando começo a tratar alguém de uma certa forma, de mudar de registo, mas lá fiz um esforço e, no futuro, passámos a tratar-nos para sempre por tu.

Como disse, não sou um amigo antigo do Nuno, mas fiquei muito amigo dele. Numa noite do ano 2000 em que, por razões de doença de um familiar muito próximo, me fui abaixo, foi ao Nuno e a outro grande amigo que, a meu pedido, a Gina telefonou para virem a minha casa, apoiar-me. O Nuno era um amigo certo, daqueles cuja lealdade se tinha por adquirida.

Foi-o para mim, que era um conhecimento recente, como o foi para os seus amigos mais antigos, dos quais está aqui nesta mesa aquele por quem ele tinha uma dedicação para a qual só a palavra fraternal se adequa. Cansei-me, ao longo dos anos, de tentar explicar a muita gente que a relação entre o Nuno e o seu amigo Jorge Sampaio, comportando embora uma forte dimensão de solidariedade política, era de uma outra natureza, ia muito para além disso. Relevava de uma cumplicidade rara, assente numa forma comum de encarar o mundo e, essencialmente, de ser fiel a alguns princípios essenciais da vida. Só posso imaginar que deva ser muito reconfortante partilhar uma amizade tão intensa.

Mas, agora, como diria o Sérgio Godinho, “mudemos de assunto, sim?”. Porque hoje é um dia feliz. Estamos aqui por causa de um livro que a teimosia dedicada da Céu quis muito que fosse publicado, a que a Maria Emília emprestou o seu entusiasmo organizado, que outras pessoas ajudaram a concretizar. Estão aqui as crónicas do Nuno.

O Nuno já havia publicado, há muitos anos, o “Rumor Civil”, um livro com alguns dos seus textos. Às vezes, na feira do livro, compro três ou quatro exemplares do “Rumor Civil”, para oferecer a amigos. Alguns desses exemplares, cheios de sol, até já estão secos e “partem”, ao desfolhar-se. Mas não resisto, porque aquilo é uma preciosidade. E, quase sempre, acabo por não resistir a reler algumas dessas crónicas.

O volume que hoje é editado é muito mais completo. Abrange todas as crónicas publicadas no Expresso, entre 1974 a 2001, o último quarto do século passado, que nos mudou a todos. Ainda não o li, claro, mas posso imaginar o prazer que me vai dar reencontrar os textos do Nuno.

Digo reencontrar porque eu tenho quase a certeza de nunca ter perdido uma crónica de Nuno Brederode Santos, no Expresso. Mas não excluo que possa vir a ter surpresas. Faço parte de quantos, e estão por aqui alguns, se habituaram a esperar, com alguma ânsia, pela crónica do Nuno. Somos aqueles que, com algum orgulho geracional, nos podemos gabar de que fomos lendo esses textos à medida que iam sendo publicados. Os pobres mortais que não tiveram então esse privilégio - alguma vantagem há-de ter a idade! - vão ter agora a possibilidade de ler o Nuno, todo, de seguida. Far-lhes-á bom proveito, podem eles ter a certeza.

Ao longo desses anos, o Nuno foi realizando, com algumas pausas, em modelos de escrita por vezes diferentes, como que um filme bem animado da nossa vida política e social. Foi uma sequência de fotogramas geniais, num estilo que se tornou único, servido por um português invejável e invejado, onde ele usava como muito poucos vi fazerem, a ironia subtil com arma da crítica, para lembrar a expressão de um clássico.

Por ali se encontram “trouvailles” inesperadas, num léxico rico mas nunca pedante, na cultura que dali emanava - nos autores, nos livros, nos filmes, naquela memória que parecia não ter fim. Era sempre um olhar certeiro e muito fino, às vezes impiedoso, que deve ter causado imensos engulhos a alguns dos seus alvos. Principalmente a um, que me abstenho de referir.

As crónicas do Nuno foram uma espécie de novas “Farpas”, um verdadeiro novo “Álbum de Glórias” que caricaturou esses anos, um tratado de sociologia irónica de um certo Portugal. A escrita do Nuno ajudou muita gente a suportar tempos políticos adversos. Não raramente, eu e alguns amigos tinhamos o sentimento de que, com as suas crónicas, o Nuno nos vingava. Mas também por ali ficaram refletidas algumas das muitas alegrias políticas que, felizmente, pudemos viver - e o “culpado” por algumas delas está hoje aqui connosco.

Já esgotei os meus dez minutos. Mas ainda vou a tempo de dizer que espero que, depois deste que é o primeiro volume da obra completa do Nuno, não se esqueçam que ele escreveu um misterioso romance policial. Chama-se “Lama na boca” e estou certo que a sua edição poria o Simenon, a Christie ou esses modernaços nórdicos todos num canto!

Muito obrigado, Maria do Céu, por me teres dado o privilégio de poder participar nesta sessão. Gostava apenas de dizer-te uma coisa: o Nuno foi um homem com muita sorte, ao cruzar contigo a vida. É que poucos se podem gabar de terem tido Céu na terra!

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