22 de fevereiro de 2024

Segurança

Apresentação do livro de Nelson Lourenço, "Sociedade Global e Segurança - Modernidade, Complexidade e Incerteza", no dia 21 de fevereiro de 2024

Quero começar por agradecer ao Nelson Lourenço a amabilidade que teve em convidar-me para colaborar na apresentação do seu novo livro.

Eu e o Nelson somos amigos, como também o sou da Ema, desde há mais de 55 anos, das salas e dos belos jardins do ISCSPU - então com um "U" no fim. O país, em 1974, também acabaria por perder o seu "U"... E nós perdemos, para sempre, aquelas bibliotecas, as aulas de Ronga, de Quimbundo, de Tetum, mas também a serenidade da Sala Verde para a conversa, o sossego das mesas de leitura do Centro de Estudos Missionários, os "xes" beirões do padre Silva Rego, a dona Irene da secretaria, o Zé Augusto da portaria e, last but not least, o professor Adriano Moreira. 

E, já que falamos de segurança, também perdemos - eu guardo sempre isso no avesso da minha memória afetiva - também perdemos o capitão Maltez, a entrar um dia por ali dentro, à frente da polícia de choque e saquear a Associação de Estudantes. Perdemos já tanta coisa, boa e má.

Com o tempo e as andanças de ambos, eu e o Nelson também nos fomos perdendo de vista um do outro. Sabíamos onde cada um andava - ele numa brilhante carreira académica, eu pela itinerância diplomática - mas víamo-nos pouco. 

Um dia, o Nelson desafiou-me para integrar uma aventura chamada GRES - Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança. Ele era, e continua até hoje a ser, a alma do GRES, onde temos como figura tutelar o Dr. António Figueiredo Lopes e onde o José Conde Rodrigues participa ativamente com o seu conhecimento académico e político. 

O GRES fez entretanto coisas muito estimáveis, para quem não saiba. E vai fazer mais, em breve, para quem estiver interessado. A minha colaboração no Grupo, devo confessar, foi sempre modesta, como modestas são as minhas competências em alguns dos domínios em que o GRES declina a sua ação, em particular em muito do que excede as dimensões de segurança internacional, domínio onde a vida profissional me rotinou a refletir.

Serve isto para alertar que foi de uma imensa irresponsabilidade ter acedido a participar na apresentação desde livro, correspondendo à também imensa generosidade que foi convite do Nelson. Mas, porque a audácia ainda não paga imposto, vamos então a isso. Serei breve e, para sê-lo, decidi escrever o que estou a dizer.

Cheguei ao fim deste livro com um sentimento duplo. 

Desde logo com a ideia de que há realidades que atravessam o nosso quotidiano sem que nós, no afã desse mesmo dia a dia, cuidemos em sistematizá-las. E que é necessário surgir alguém, munido de ferramentas académicas, para pôr todas essas perceções em ordem. Através do trabalho que resultou neste livro passamos a entender melhor certas coisas que, por fazerem parte do nosso cenário comum de vida, não tínhamos isolado e organizado. 

Lembro-me bem de que, quando comecei a estudar sociologia, nos alertavam para a dificuldade que essa ciência começou por ter, para se afirmar, pelo facto de tratar de coisas comuns, que faziam parte quase inconsciente da nossa rotina, mas que, até ali, não tinham encontrado a dignidade de um tratamento científico. Ao ler este estudo lembrei-me bastante disso. As questões de segurança, para o cidadão comum, estão muito nesse plano.

O segundo sentimento é de alguma preocupação. Embora o Nelson, no seu esforço para não perder o otimismo, caia sempre, no texto, no "dever ser", na possibilidade de se organizarem soluções para os problemas encontrados, como contraponto às disfunções que vai alinhando, na radiografia crítica que faz da evolução das várias dimensões da segurança, devo confessar que, em regra, cheguei ao fim dos vários capítulos, das "lições" em que o livro se divide, com o sentimento de uma acrescida inquietação. É que algumas das derivas detetadas no estudo, para quem for minimamente realista, não auguram nada de bom.

Um leitor comum decantará deste livro uma banalidade que, nem por o ser, deixa de ser uma constatação, uma grande verdade: a segurança, nos dias de hoje, já não é o que era. 

Ao percorrer o texto, o leitor será levado a concluir o óbvio: que, nas sociedades contemporâneas, aquelas que eram algumas das baias que, no passado, sustentavam os mecanismos da segurança coletiva têm vindo a ser corroídas e é cada vez mais problemática, eu diria mesmo improvável, a possibilidade de se vir a restaurar o contrato social que garanta a sua eficácia, aceitação e, mais do que isso, a perceção da sua legitimidade.

Deste livro ressalta a ideia de que a diluição de algumas fronteiras, físicas e outras, que, no passado, isolavam e protegiam de contágio algumas realidades sociais, no seu nível nacional ou outro, ao desaparecerem ou atenuarem-se, geraram dinâmicas que obrigam ao desenho de novos modelos de governança nos domínios da segurança. E que, nesse domínio, estamos a viver um tempo de transição que parece muito longe de resolvido.

Gostava, naquilo que é a minha experiência, na área da segurança internacional, de partilhar agora algo de pessoal. E que vai no mesmo sentido daquilo para que este livro aponta.

Na última década, tenho sido chamado, no âmbito de várias empresas e instituições com ação internacional, a preparar pareceres sobre os riscos seus investimentos externos. Nessa atividade, confronto-me com uma crescente dificuldade, ao procurar identificar a importância relativa das várias variáveis de segurança, a que os responsáveis dessas mesmas empresas devem atentar nas suas opções. Não sou pago para espalhar alarmismos fáceis, mas também não me posso eximir a ser claro nas áreas onde me parece que existem riscos reais. 

As variáveis que costumo utilizar têm uma dupla natureza. 

Por um lado, as questões internacionais que provocam desequilíbrios na segurança política e institucional desses mercados e, por outro, as dinâmicas políticas internas dos vários países, onde às vezes tenho de travar derivas imaginativas que quase relevariam da futurologia. Se lhes disser que os mercados de África e da América Latina fazem parte essencial dessas minhas preocupações profissionais, perceberão melhor a minha inquietação. Noto, aliás, que o Nelson, no seu livro, refere precisamente essas duas geografias, como estando no centro de problemas muito específicos em matéria de segurança que ele desenvolve.

Mas se eu acrescentar que a outro tipo de investimentos pode também não ser indiferente o facto de Trump estar ou não na Casa Branca, acho que isso também ajuda a perceber aquilo que hoje interroga alguns operadores económicos.

Falei da América Latina, da África, dos Estados Unidos. E na Europa? 70 anos sem guerra tinham adormecido a nossa precaução coletiva. E, agora, com a Rússia no estado em que está, como é que vai ser? E o futuro será com a NATO ou vai ter de ser vivido sem as suas teóricas garantias de segurança? E os surtos de terrorismo? E as tensões migratórias, religiosas, identitárias? E os populismos? E a China? E as suas relações cada vez mais tensas com os EUA? E a Europa, vai de arrasto da sinofobia de Washington?

Está tudo mais indefinido. Pensar a prazo é um imenso salto no escuro. Julgo que todos temos um pouco a sensação de que, no passado, tudo era mais facilmente enquadrável, que havia mais constantes em que nos podíamos apoiar, que as linhas tendenciais de evolução de riscos eram mais rapidamente definíveis. Acho que todos temos a tentação de pensar assim apenas porque o passado já lá vai. Mas se metermos uma mão na nossa memória dificilmente encontraremos um tempo em que, nesse tal "bom" passado, alguma vez se viveu o sentimento de não estar em crise.

Mas é verdade: sentimo-nos, nos dias de hoje, um tanto perdidos e menos capazes de entender as dinâmicas de um mundo onde à debilidade do poder enquadrador dos Estados se soma a perda de alguns padrões comuns, de aceitação mais ou menos implícita, que nos davam algum conforto. 

É uma evidência que a Guerra Fria constituía um terreno de serena previsibilidade. Os riscos eram imensos, existenciais, mas pareciam empatados. As tensões ideológicas desenhavam um mundo a preto e branco, onde era fácil saber onde cada um estava. As fronteiras protegiam as visões nacionais, as "nuances" eram muito relativas. O que saía fora dos carris parecia identificável e controlável. Com o ilusório fim dessa mesma Guerra Fria, até a paz eterna pareceu possível. Por um momento, os riscos pareceram atenuados, contidos, comportados num quadro em que o diálogo alargado aparecia como panaceia. O fim das fronteiras, físicas e virtuais, iriam, na visão mirífica desses novos "amanhãs que cantam", criar um éden de entendimento, nessa nova Sociedade Global que o livro do Nelson analisa.

Só que, depois, foi o que se viu. O livro do Nelson Lourenço tem a imensa virtude de nos explicar, às vezes não o dizendo explicitamente, que esse novo mundo maravilhoso foi, afinal, um "trompe l'oeil". E ao mostrar-nos, com a serenidade "rassurante" do "argot" académico, como as coisas, em lugar de se simplificarem, se tornaram afinal muito mais complexas. Ou "desafiantes", como está na moda dizer, quando se pretende disfarçar os riscos perante os acionistas e melhorar os bónus dos KPI. Mas, essencialmente, a meu ver, as sociedades podem estar a perder o fio à meada, o controlo de algumas dinâmicas, algumas já puxadas e conduzidas por pulsões extremistas.

Permitam-me agora que termine com a ligação de um dos capítulos interessantes do livro à nossa atualidade nacional próxima. É, aviso, uma questão polémica. Falo da polícia.

Nesse capítulo, o Nelson desenvolve o tema da relação dos cidadãos com a polícia. E fala da importância de afirmação da autoridade democrática, bem como da confiança que a instituição policial deve inspirar na sociedade. E explica também que, dentro dessa mesma sociedade, a leitura sobre a bondade da atitude e comportamento das polícias está hoje longe de ser uniforme. Por exemplo, numa sociedade multi-étnica, multicultural e com áreas de forte exclusão, há setores que perdem a confiança na polícia, porque entendem que esta os descrimina e os tem por alvos preferenciais na ação repressiva. É a sociedade que se divide perante a polícia.

Ao olhar o que passa entre nós com o comportamento recente dos elementos das forças policiais, pergunto-me qual irá ser o efeito na perceção de segurança dos nossos cidadãos que as atitudes de muitos elementos das forças policiais podem vir a provocar. Quando os polícias incumprem as leis das manifestações públicas, quando apresentam baixas médicas que parece serem falsas, quando ameaçam com o boicote das eleições, dando frequentemente de si próprios a imagem turbulenta, como a que agora estão a projetar, em que medida isto é ou não uma questão que afeta a segurança coletiva? Quando os sites e grupos de Whatsapp ligados a associações policiais refletem a sua adesão a ideologias extremistas, quando se acumulam sinais de praticas discriminatórias da polícia sobre setores étnicos, qual a confiança que essa mesma polícia pode despertar nos cidadãos? 

Faço parte de uma geração que, com orgulho, assistiu à transição e à mudança de qualidade das polícias, de órgãos repressivos ao serviço da ditadura até se tornarem forças prestigiadas de proteção da vida cívica democrática. Esperemos que não se esteja agora a estragar todo esse percurso positivo.

Por tudo isso, meu caro Nelson, embora sabendo que não vais seguir o meu conselho, eu deixar-te-ia, provocatoriamente, a sugestão de que, num próximo livro, possas vir a tratar o tema "Quando a polícia ameaça a nossa segurança".

Muito obrigado pela vossa atenção.

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