Contribuição para o livro "75 Anos da Declaração Schuman - Que Futuro para a Europa", organizado por Ana Catarina Mendes
Nunca tirei a limpo se não era apenas um mito urbano, mas lembro-me de ouvir dizer, ainda no tempo da ditadura, que era uma temerária ousadia trazer afixado nas traseiras dos automóveis um autocolante azul, comprado para além dos Pirinéus, com estrelas amarelas e os dizeres "Europa Unida", creio que em francês.
Essa Europa, com liberdades e partidos que organizavam democraticamente as suas sociedades, para onde então muitos iam "a salto" para melhorar a vida ou fugir à guerra, contrastava com a matriz autoritária que prevalecia entre nós e no nosso único vizinho terrestre, que dela nos separava.
A Europa não éramos nós; era então, para nós, uma pátria política alheia e longínqua. Não partilhando eu, à época, o sonho europeu como ideal social e humanista, tenho apenas a ideia de que as tais estrelas no autocolante azul me eram vagamente simpáticas, quanto mais não fosse pela virtualidade de provocarem o desagrado da ordem entre nós estabelecida e que eu cedo aprendera a contestar.
Mais tarde, já por ocasião da minha maioridade cívica, eu alimentava uma leitura do processo político europeu que combinava um atávico soberanismo com uma forte desconfiança no processo integracionista do Mercado Comum. O marxismo rudimentar que, no final da adolescência, eu usava como receita interpretativa do mundo, lia o projeto europeu como uma espécie de perverso modelo capitalista transnacional, tutelado pelos americanos, que se opunha aos "amanhãs" que eu achava que deviam cantar de uma outra maneira. A verdade é que, por esse tempo, tal como no poema de Régio, eu não sabia bem por onde ia, apenas sabia que não queria ir por ali.
Talvez por isso, a "Europa connosco", surgida pouco depois de Abril, pela mão dos socialistas, começou por entusiasmar-me pouco. Demorou uns bons anos até ser conquistado pelos méritos do projeto integrador europeu e perceber, em especial depois de começar a trabalhar no seu seio, que era nele que residiam as políticas que melhor podiam ancorar, não apenas os nossos desenvolvimento e bem-estar, mas igualmente a nossa liberdade e os quadros institucionais para a proteger. Atenuar a fezada em algumas fantasias políticas e começar a valorizar as comezinhas liberdades burguesas fez o resto.
Quando terei lido a Declaração Schuman, publicada quando eu tinha apenas dois anos de idade? Não sei bem. Dela ficaram-me, para sempre, impressões fortes, que agora recordo numa releitura, nestes seus 75 anos. Desde logo, a memória trágica de uma guerra recente, verdadeiro "leit motiv" do exercício. Depois, a centralidade do papel da França e na Alemanha, com a questão, que para nós era estranha, do carvão e do aço. Pouco mais, confesso.
Como a muitos de nós, o nome de Robert Schuman surge sempre associado ao de Jean Monnet, como o tandem impulsionador do processo de unidade europeia. Há aqui uma "injustiça" histórica: falta Josef Stalin na fotografia. Foi também o medo ao vizinho do outro lado da "cortina de ferro" que funcionou como o primeiro cimento da unidade conseguida do lado de cá. Afinal, como se está a constatar nos dias de hoje, a História, às vezes, repete-se mesmo.
A Europa comunitária é um ser mutante e a Declaração Schuman já o anunciava, ligando sempre o entusiasmo mobilizador aos sucessos que fossem sendo conseguidos. As "trente glorieuses" que, mais tarde, consagraram esse êxito, geraram aquilo que podemos qualificar como o otimismo europeu - que, diga-se, foi o lado da Europa que mais atraiu a minha geração.
A Guerra Fria travou bastante o projeto saído de Roma, em 1957, mas a queda do Muro veio permitir o extraordinário passo de Maastricht, com o Mercado Interno a realizar-se em fundo. Com isso, veio um período de imensa ambição política, com Schengen e a Moeda Única. E seguiu-se o grande alargamento, com as ambições a Sul e o cavalgar da globalização como fonte de riqueza, para sustentar um modelo social ímpar.
Até um dia. Como que por um pouco suave milagre, o otimismo começou a esvair-se. A Europa-solução passou a Europa-problema. As aberturas comerciais passaram a ser culpadas das disfunções económicas nacionais, a abertura das fronteiras converteu-se no bode expiatório das tensões demográficas. Veio a crise financeira e as suas sequelas, como a austeridade e a quebra da solidariedade intra-europeia. Alguns países foram-se fechando, ocorreu o Brexit, o populismo tomou a agenda política, as relações exteriores da União abandonaram a agenda solidária e passaram a pautar-se por lógicas de interesses. A guerra na Ucrânia fez o resto.
Esta não é a Europa otimista que, no passado, me convenceu a abandonar o meu soberanismo primário. É uma Europa tensa, abalada por discursos de medo e de desconfiança. O conjuntural abandono pelo antigo "amigo americano" tornou-nos ainda mais inseguros, propensos a cair nos braços tutelares dos "grandes" países que, por este lado do Atlântico, fazem de grandes potências. Não sei se uma Europa da defesa nos tornará mais "europeus". Conseguiremos fazer das nossas fraquezas forças, sem perdermos a alma do nosso projeto? Logo veremos. Mas não tenho a certeza de que Schuman se reconheceria na Europa melancólica e angustiada que por aí anda.