(Texto lido na apresentação do anuário de relações internacionais "Janus", relativo a 2024/2025, em 18 de dezembro de 2025)
Vai para 13 anos, na FNAC do Chiado, coube-me fazer apresentação de uma edição da Janus. Tinha acabado de chegar da embaixada em Paris, dirigia então o Centro Norte-Sul, do Conselho da Europa, e disse naturalmente que sim à pessoa que me fez o convite. Essa pessoa era o Luís Moita.
Há gente de quem, com o tempo, sentimos cada vez mais saudades. O Luís é uma delas. Há dias, quando troquei mensagens com alguém que acabou de assumir uma determinada função, essa pessoa respondeu-me: "Tenho-me lembrado muito do nosso Luís Moita. Faz-me falta o seu conselho, que seria sábio".
A Janus, para mim, continua a ser o Luís. Recordo aqueles telefonemas, amigos mas pressionantes, ao fim da tarde: "Conto com o teu artigo! Quero-te na Janus deste ano". Foi graças ao Luís que tenho um bom lote de textos publicados nas Janus. De alguns orgulho-me, de outros fico com a esperança de que os não leiam.
Disse também que sim ao convite que o Luís Tomé e o Fernando Jorge Cardoso me fizeram para estar hoje aqui. Fiz isso por duas fortes razões. Desde logo, como tributo à memória do Luís Moita, mas também pelo facto de ser para mim um orgulho - e digo isto com a maior sinceridade - estar na função de presidente do Conselho Diretivo do "Clube de Lisboa / Global Challenges", neste ano em que, pela primeira vez, o Clube e o Observare se juntam para editar a Janus.
Quero assim saudar e congratular-me por esta "joint venture" e quero também dizer que não podiam ter encontrado melhor editora do que a Patrícia Magalhães Ferreira. Sei do que falo. Parabéns a todos.
Pediram-me para abordar o tema que é um chapéu temático da Janus deste ano: as guerras mediáticas e as guerras esquecidas.
A questão, vale a pena dizê-lo, é uma triste banalidade: há guerras a que somos muito sensíveis, outras há de que ninguém fala. Daqui se pode concluir que há países tão infelizes que até as suas tragédias, por maiores que elas sejam, convocam menos comoção do que a que é dada a outros países, mais "felizes" pela atenção conferida ao seu sofrimento.
Este tema - esta assimetria na atenção - está mais do que estudado. Tem sido abordado na sua perspetiva mediática - onde é que estão as televisões, os repórteres de guerra, o que abre os jornais televisivos e o que entusiasma os colunistas? E, naturalmente, o agravamento dessa desigualdade, na atenção e no "escândalo", tem vindo a ser cobrado, cada vez mais, aos agentes políticos.
Resta saber se esta exposição da hipocrisia tem alguma consequência ou se, muito simplesmente, já há um efeito de cansaço e de normalização das atitudes, por muito chocantes que elas tenham começado por ser. Diga-se o que se disser, uma coisa é clara: no plano mediático e no plano político, com um a influenciar o outro, há uma hierarquização das guerras, dos conflitos, até dos mortos. Uma das razões é, claramente, de natureza geográfica, da nossa proximidade face ao fenómeno.
É a síndrome Luisinha Carneiro, que o Eça de Queiroz já identificou.
Para quem não conhecer ou não se lembrar, vou ler - peço apenas cinco minutos do vosso tempo - um texto notável dos Bilhetes de Paris, em que Eça descrevia o ambiente num salão de província em que alguém lia, num jornal, as grandes tragédias que então assolavam o mundo:
Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração!
Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde.
Em torno da mesa, outras senhoras costuravam.
Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades.
Era uma dessas semanas também em que pela violência da natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a terra.
Ela lia as catástrofes, lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino.
«Na ilha de Java, um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas …». As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa; e ninguém comentou, sequer se interessou, pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa!
Depois, mais perto, na Hungria, «um rio transbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!». A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada pelo oiro da luz.
Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas… Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males.
E ela mesma então teve um oh de dolorida surpresa. No sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilado causara três mortes, onze ferimentos…». Uma curta emoção, já sentida, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
A leitora, tão cheia da graça, virou a página do jornal doloroso e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno… E, de repente, solta um grito e leva as mãos à cabeça:
– Santo Deus!...
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:
– Foi a Luísa Carneiro, da Bela-Vista… Esta manhã! Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvoroçou num tumulto de surpresa e desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltronas; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela-Vista, buscar notícias por que ansiávamos.
Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota.
Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume.
A síndrome Luisinha Carneiro é o que aqui nos une, nesta ocasião, que justifica a minha intervenção. Quando, daqui a horas, o nosso governo nos vier reportar as incógnitas que vão decorrer, para o dia seguinte da comunidade portuguesa, da ação militar americana que se prepara contra a Venezuela, vamos assistir à síndrome Luisinha Carneiro em ação.
É o que nos toca, o que nos mobiliza, são os nossos. Alguns dirão que não há nada mais natural: preocuparmo-nos com o que nos está próximo. O problema não está aí: é perfeitamente óbvio que possamos dar prioridade às questões que afetam a nossa diáspora, seja na Venezuela ou na Guiné Bissau.
A questão é, contudo, outra: a nossa política externa não se esgota nestas minudências luso-portuguesas, que convocam um palácio sempre cheio de Necessidades. A nossa política externa passa hoje, nas grandes questões, para muitas das quais não somos chamados, ou somos chamados apenas para fazer número, essencialmente por Bruxelas. E é para aí, para o diferente grau de preocupação visível na cara dos líderes europeus, quando falam da Ucrânia ou quando falam das chacinas em Gaza ou do descaso pelos direitos dos palestinos na Cisjordânia, que eu quero chamar a atenção.
É a síndrome Luisinha Carneiro? Kharkiv é já ali, Khan Younis é mais longe e há por lá menos jornalistas? Ou os ucranianos são loiros e de olhos azuis "como nós", às tantas são mesmo cristãos "como nós", e os palestinos não escapam à islamofobia com que as extremas-direitas europeias, cada vez com mais êxito, incendeiam os discursos de certo populismo?
Há uma priorização dos riscos, de que decorrem opções geopolíticas. Mas há - vamos chamar os bois pelos nomes - "double standards". Um morto em Kiev comove mais do que meia dúzia de adolescentes fuzilados por snipers do Exército israelita. É muito evidente que o empenhamento em levar à barra do TPI, na Haia, Vladimir Putin é muito maior do que a determinação idêntica de ali conduzir Netanyahu.
E, no entanto, militares à parte, em pouco mais de dois anos, terão morrido 70 mil civis em Gaza, para uma população de menos de 3 milhões, e, em quase quatro anos, morreram 15 mil civis na Ucrânia, para uma população de 40 milhões.
Isolo estes dois casos porque é preciso dizer bem alto que eles contribuíram para o deperecimento moral de uma entidade como a União Europeia, que nos tínhamos habituado a olhar como um referente multilateral de justiça e de respeito pelos Direitos Humanos.
Longe vão os tempos em que a Europa unida se dava ao luxo, como "soft power" moral que se arrogava ser, de lançar juízos equinânimes sobre tudo o que se afastava dos padrões rígidos afinados em Bruxelas. Eu ainda sou do tempo da DG VIII e do condicionamento rigoroso da ajuda por motivos políticos! Onde isso vai!
Mas o mundo não se esgota entre a Ucrânia e a Palestina. Muitos outros conflitos, bem mais letais em termos absolutos, permanecem hoje à margem da nossa atenção e à margem da União Europeia, por onde se escoa boa parte da nossa vontade diplomática. E da nossa coerência, convém lembrar.
No Sudão, segundo a ONU, vive-se, em 2025, a pior crise humanitária do mundo: mais de 150 mil mortos, 14 milhões de deslocados internos e risco de fome generalizada, afetando 21 milhões de pessoas. A cobertura mediática ocidental é mínima, se comparada à Ucrânia. E que dizer da escassíssima vocalidade, para estes casos, do Serviço Europeu de Ação Externa?
No Iémen, há 18 milhões de pessoas a necessitar de assistência.
No Sahel (Mali, Burkina Faso, Niger), as insurgências jihadistas e os golpes de Estado causam milhares de mortes anuais, com violência a espalhar-se para as costas ocidentais da África.
Em Myanmar, a guerra civil depois do golpe de 2021, afeta 20 milhões.
Estes conflitos são “esquecidos” não por falta de gravidade, mas porque não mobilizam audiências ocidentais. Razões? Distância geográfica, complexidade étnica e ausência de alinhamento direto com grandes potências.
Aí está a síndrome Luisinha Carneiro, em todo o seu esplendor.
Que fazer?, como perguntava um cavalheiro cuja bibliografia é hoje escassamente popular? Simples: cada um deve fazer aquilo que lhe compete ou que julga dever competir-lhe.
A nós, Observare e Clube de Lisboa, de acordo com aquilo que temos à nossa mão, compete-nos estudar, divulgar, mobilizar e manter atentas as consciências. Sabemos que, também nós, nunca conseguiremos escapar, por completo, à síndrome Luisinha Carneiro. Mas temos a obrigação de teimar em mostrar que há mais mundo para além daquele que mais facilmente emociona o nosso egoísmo estratégico.
Era também isto que o Luís Moita nos ensinava: a não desviar o olhar.