31 de maio de 2025

Europa: gerir a diversidade

Para poupar tempo, e para ser mais rigoroso, vou começar por ler um texto não muito longo que preparei para esta ocasião. 

Pediram-nos para falar das crises da Europa. Escolhi, nesse contexto, falar da diversidade europeia e do modo como ela impacta nas crises que o continente atravessa. 

Sou muito pouco dado a citações, mas permitam-me que comece com uma: 

"A situação na Europa, na realidade, nunca deixou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Tem-no sido em todos os séculos. A crise é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os seus olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é imperecível- a virtude e o espírito." 

Quem escreveu isto foi o meu colega de profissão, José Maria Eça de Queiroz, em 1888. 

Por isso, e acreditar no que ouviram, há muito que não estamos sozinhos, nesta sombria constatação de descalabro europeu. 

Mas, para sermos verdadeiros, talvez não valha a pena, mesmo com apoio de clássicos, deixar-nos vencer pelo desânimo. E constatar o óbvio. 

E o óbvio é que Europa, neste caso a Europa unida num projeto multi-nacional vai para 70 anos, foi e é um magnífico modelo, que deu décadas de paz, de progresso e de desenvolvimento a centenas de milhões de pessoas, em várias gerações. 

Esquecer isto, marcados pelas dificuldades conjunturais, é uma patetice. A Europa é um caso de sucesso e, muito provavelmente, está apenas a ser vítima dele. A atual diversidade europeia é a sua riqueza, mas é também a sua fraqueza. 

A Europa de 1957 era composta por seis países derrotados na guerra que tinha terminado pouco mais de uma década antes, com um, no seu seio, que fingia ter saído vencedor: a França. Essa Europa dos seis era unida por um cimento longínquo, mas poderoso: o receio do regresso à guerra e àquilo que estava para além da chamada "cortina de ferro". Costuma-se dizer que Stalin, além de Monnet e Schuman, é também um dos responsáveis pela unidade europeia. 

O primeiro alargamento, feito da ambição para ganhar escala, alterou qualitativamente a Europa: o Reino Unido foi sempre um parceiro relutante à partilha de soberania que o projeto requeria, a Irlanda passou a ser aí o primeiro país neutral e não-Nato, a Dinamarca teve, desde o início, idiossincrasias marcadas por "opt-outs": moeda, política de defesa, justiça, etc. 

A entrada da Grécia, e depois de Portugal e Espanha, o alargamento mediterrânico e pós-ditaduras, não trouxe grandes impactos, nem sequer financeiros. A Europa era então (com exceção da Irlanda) um "clube de ricos". E os "ricos" pagaram, não a crise, mas os diferenciais de riqueza com os novos membros, ajudando a mais estabilidade do espaço geográfico e alargando o mercado de consumo. E todos esses novos Estados eram já membros da NATO. 

Sublinho isto para dizer, que o alargamento seguinte - Áustria, Suécia e Finlândia - que foi financeiramente neutral, por se tratar de contribuintes líquidos, era também securitariamente neutral: nenhum desses países era membro da NATO. 

Negociei o Tratado de Amesterdão com eles já sentados à mesa e constatei que, juntamente com a Irlanda, eles foram um bloqueio a todos os avanços na cooperação em dimensões que tocassem questões de segurança. 

A diversidade começava a acentuar-se dentro do projeto europeu, num momento em que a Europa, depois da queda do Muro de Berlim e das ambições como potência que o Tratado de Maastricht consagrara, passou a ter uma dimensão política muito maior. Do tempo da Europa puramente económica, tínhamos passado para a Europa com o objetivo de gerar uma política externa comum, embora não única, para um mercado interno uniformizador, para um projeto de livre circulação de pessoas, para ambição de uma moeda comum. 

O alargamento aos três estados neutrais que referi foi importante, mas nada que se comparasse com o que estava para vir. 

O "grande alargamento" - 10 países mais dois, três anos mais tarde - trouxe para a União, para além de duas ilhas mediterrânicas que fazem parte de uma outra história, uma dezena de Estados que tinham vivido sob a tutela da União Soviética, entretanto desmantelada. Três deles eram mesmo antigas repúblicas soviéticos. E vamos dizer as coisas com toda a clareza: o alargamento iniciado em 2004 mudou radicalmente a União. 

Esse alargamento não deveria ter ocorrido? Deveria ter sido faseado e progressivo? O ótimo é inimigo do bom. A esses países, o ocidente tinha mostrado, ao longo de décadas, o projeto de liberdade e de desenvolvimento que, do lado de cá do continente, estava a ser desenvolvido. Com toda a naturalidade, logo que puderam, esses países vieram bater à porta, querendo partilhar esse modelo. 

Seria uma imensa hipocrisia se a Europa os não tivesse acolhido. Tive o gosto de ter feito parte de um governo, com responsabilidades específicas nessa área, que foi totalmente favorável a esse alargamento. 

Acresce ainda um fator, de que se fala pouco e que se prende com o calendário da entrada desses países. O percurso de afirmação autónoma desses Estados só foi possível por uma fragilidade conjuntural de Moscovo. Para os países candidatos, a entrada para a União Europeia interessava menos do que a entrada para a NATO. Mas foi aproveitada a debilitação do poder político em Moscovo e os candidatos acabaram por obter dois-em-um. 

A Rússia titubeou, mas acabou por aceitar. Hoje percebemos melhor que foi um silêncio sofrido. 

Como antes disse, este, mais do que qualquer outro alargamento, mudou profundamente a União Europeia. 

É interessante pensar que, por muito tempo, esse grande alargamento foi visto como politicamente inócuo para os equilíbrios que existiam na Europa. Alguns pensavam ingenuamente que iria ser uma espécie de "colonização" política do centro e leste europeus, um "template" trazido do ocidente que esses países se limitariam a aceitar. Houve mesmo quem pensasse que a Alemanha - onde já tinha ocorrido um discreto "alargamento" de que ninguém fala, o da Alemanha Oriental - acabaria por ser a potência de tutela dessa nova Europa. 

Todos se enganaram redondamente. 

Logo que entrados na União, esses países carrearam para o seio desta todas as suas ideossincrasias, os seus interesses próprios, a sua geopolítica, os seus receios e os seus ódios. E, claro, as suas afinidades afetivas. Para a generalidade desses Estados, o "amigo americano", e aqui não entra o conceito de Wim Wenders, era muito mais importante do que o clube de amigos europeus. Porquê? Porque Washington era, na prática, a NATO e eles confiavam pouco na ajuda que Bruxelas pudesse dar, se alguma coisa viesse a correr mal na sua relação futura com a Rússia. 

Nos últimos tempos, depois da crise da Ucrânia, não tendo com certeza mudado de opinião sobre quem é o verdadeiro "dono da bola", os países desse alargamento - e vale a pena lembrar que ele ocorreu já há mais de 20 anos - terão percebido que há mais amigos para além do "amigo de Peniche" em que a América se transformou. Com a invasão russa da Ucrânia, e com a tensão político-militar instalada na Europa, muita coisa mudou. 

Alguma diferenciada perspetiva, dentro da Europa, sobre a virtualidade residual da relação com Moscovo, em especial no aspeto económico, atenuou-se. 

Era com isso que Putin contava para poder dividir a Europa, mas enganou-se. 

A guerra na Ucrânia trouxe várias consequências. 

Trouxe uma atitude mais coesa dentro da União Europeia face à ameaça que a Rússia pode significar para os seus Estados membros, embora com graus de risco potencial diferenciados. 

Trouxe, nessa decorrência, um esforço de "decoupling" das dependências até então existentes face à Rússia, em especial em matéria energética. 

Trouxe uma histórica alteração da cultura de segurança e defesa alemã, acabando com uma postura de contenção e retraimento, que vinha de longe e parecia já quase identitária. 

Trouxe um rápido salto em frente, em direção à NATO e à partilha da segurança comum, de dois países nórdicos que antes tinham estatuto neutral que parecia marcar o seu DNA. 

Trouxe, ironicamente, um tempo de reaproximação com um Reino Unido ainda em maturação dos efeitos do Brexit. 

Trouxe uma atitude nova por parte da máquina da União Europeia, financiando ineditamente material para um conflito armado e provocando, surpreendentemente com escasso ruído, uma reversão institucional que deu à Comissão Europeia um protagonismo operativo que considero muito discutível face aos tratados. 

E, finalmente, levou a um discurso - por ora, apenas um discurso - de possível partilha da cobertura de segurança dada pela "force de frappe" francesa, na primeira grande evolução dentro do "gaullomitterrandisme" de Paris. 

Tudo isto a Europa fica credora de Putin, afinal um digno sucessor de Stalin no papel de "cimento" pelo medo. 

Mas voltemos à diversidade, que me propus abordar. 

Num primeiro tempo, as várias "Europas" que referi encontraram na ameaça russa um fator de diluição das várias idiossincrasias nacionais. A emergência da guerra pareceu ter atenuado as divergências e criado um modo comum de atuar. 

Isso foi verdade até um certo ponto. O caso húngaro e, depois, o eslovaco, vieram demonstrar que a ação coletiva mostrava fissuras e divergências, mesmo naquilo que parecia essencial: a atitude comum face à Rússia. Viu-se isso no estabelecimento dos pacotes de sanções, como também nos debates sobre as dependências residuais de Moscovo em matéria energética. E a história promete continuar. 

O resultado das eleições na Roménia sossegou quantos temiam um efeito dominó nesse caminho divergente. Mas nada está adquirido para sempre e essa é uma realidade com que a Europa tem de se habituar a viver. 

A Europa não é um país, é um conjunto heterogéneo de Estados com 27 constituições diferentes, com sistemas políticos de vária natureza, com composições de governo diversas, com calendários eleitorais que nunca poderão ser harmonizados. 

Além disso, por muito que temas como a guerra na Ucrânia possam funcionar como fatores de unidade pontual na ação, em tudo o resto os países europeus, que são unidades democráticas, vivem sob o controlo de opiniões públicas mobilizadas por agendas políticas próprias e até contraditórias, algumas delas marcadas pela sua inserção geopolítica, pelos seus graus de desenvolvimento, mesmo pela sua história. 

Acho algo ingénuo pensar-se que é possível blindar, em definitivo, a atitude europeia, por exemplo em relação à Rússia. Basta pensar o que pode acontecer se, um dia, a Europa acordar com a extrema-direita na liderança da França. 

Dir-se-á que é forçoso encarar modelos decisórios novos, que afastem o empecilho da unanimidade e aumentem as decisões por maioria qualificada. Não consigo deixar de ser muito prudente e sou levado a tentar travar as ambições neste domínio. Romper com a obrigatoriedade da unanimidade em matéria de política externa, para enfrentar a ameaça russa? 

Desafio-os então a tentar passar ao voto por maioria qualificada para a Europa se pronunciar sobre o escândalo em Gaza. Acham que isso seria possível, sem uma grave crise dentro da União? 

Sei, por experiência governativa própria, o que teria acontecido se Portugal não tivesse utilizado, até ao limite, a exigência da unanimidade para tratar da questão de Timor no seio da União Europeia. 

Lamento ter de informar que a União Europeia - que, repito uma vez mais, não é um país - tem e terá sempre limites de intervenção em áreas que tocam a soberania dos Estados que a compõem. Muito longe já fomos, mas haverá sempre limites a respeitar e a política externa é um deles. Pode haver alguns truques, jurídicos ou semânticos, que possam ser utilizados pela Comissão Europeia para fugir a determinados coletes de força impostos pelos tratados. 

Mas eu gostava de lembrar algo que aprendi, ao trabalhar na área europeia: a desejável eficácia das ações nunca pode afetar a legitimidade dos governos nacionais eleitos e tem de estar sempre subordinada à sua aceitabilidade pelas opiniões públicas. 

Temos de perceber uma coisa simples: os eleitorados escolhem deputados que elegem governos que são supostos levarem para Bruxelas as posições nacionais. Não é expectável que essas posições saiam sempre vencedoras, mas é defensável que sejam sempre ouvidas e respeitadas. 

É que se um eleitorado nacional gera um governo cuja ação na Europa se torna, por sistema, irrelevante, na tentativa de afirmação dos seus interesses nacionais ou numa leitura própria dos interesses europeus, ou esse governo se desprestigia internamente ou o país passa a ver a sua inserção na Europa como um ambiente hostil. 

Tudo o que acabo de dizer tem a ver, naturalmente, com os casos húngaro ou eslovaco, mas também com outros Estados onde, um dia, a fadiga dentro da opinião pública, nomeadamente no apoio à Ucrânia, possa vir a manifestar-se. Vêm aí decisões difíceis de natureza orçamental, que terão impactos inevitáveis em algumas políticas públicas, por muito que queiramos edulcorar o cenário. 

Temos de saber viver com a divergência, por muito que isso custe a quem está convencido que tem a razão e a moral do seu lado. 

Como comecei por dizer, a natureza democrática da União, que é a sua força, é também a sua fraqueza. Quisemos um alargamento a todos os azimutes. Temos agora de pagar o preço por essa opção. A União Europeia, pela sua natureza, é diversa. 

Apesar das dificuldades, não estou pessimista com o futuro do processo decisório dentro da União. Preocupa-me muito mais a justeza das políticas, a coerência dos princípios, a coragem, o realismo e a equanimidade nas decisões: face à Ucrânia e face à Palestina, por exemplo. 


(Intervenção inicial na conferência "As múltiplas crises da União Europeia", promovida pelo Beira – Observatório de Ideias Contemporâneas Azeredo Perdigão, em Viseu, em 31 de maio de 2025








29 de maio de 2025

Teixeira Gomes

Quero começar por agradecer o amável convite do Dr. José Alberto Quaresma para hoje aqui estar. É um gosto partilhar esta ocasião com o meu colega e amigo embaixador Luís Castro Mendes. E é também para mim um grande prazer ter o ensejo de falar sobre o nosso comum praticante de profissão, Manuel Teixeira Gomes, uma figura que há muito me interessa e que me habituei a admirar. 

Começo por um "disclaimer". Estou aqui como um mero observador, impressionista e nada especialista, do percurso diplomático e político de Teixeira Gomes. Nem mais nem menos. 

Há uns anos, quando foi editada a biografia de Teixeira Gomes, escrita pelo Dr. José Alberto Quaresma, fui convidado para falar sobre ela, num mano-a-mano com Hélder Macedo, num evento no Centro Cultural de Belém. Foi um exercício que me levou então a refletir um pouco mais sobre a interessante figura de Teixeira Gomes. 

Até essa altura, eu tinha criado, intimamente, algumas referências quase caricaturais sobre Teixeira Gomes. Mas essas imagens não rimavam necessariamente bem entre si. De um lado, estava o autor de ficção de quem eu tinha lido algumas escassas obras e cuja escrita, devo dizer, sempre achei fascinante, original e provocatória, que sabia ter abalado os costumes da época. 

Ora esse autor - e eu não tenho a menor pretensão de ser especialista no domínio literário, diga-se desde já - sempre me havia parecido algo inconforme com a persona do diplomata e do político que conhecia melhor. 

Para confundir ainda mais as coisas vinha a surgir a figura, bastante misteriosa e atípica, do quase eremita que decidira acabar os seus dias na Argélia, numa derradeira aventura sobre a qual eu tinha lido, muitos anos antes, um livro apenas razoável de Norberto Lopes. 

A biografia do Dr. José Alberto Quaresma ajudou-me muito e acrescentou bastante ao pouco que eu sabia sobre Teixeira Gomes: trouxe-me a sua geografia sentimental algarvia, as peculiaridades e complexidades da sua vida familiar, as referências detalhadas às suas múltiplas viagens e afinidades eletivas, a revelação da profundidade da sua diversificada cultura. 

Eu tinha consolidado a ideia, reforçada pelos seus retratos - e nós acabamos por ser muito sensíveis a essas influências impressionistas - de estar perante um gentleman frio e distante, uma figura algo atípica no universo dos atores políticos do período convulso da Primeira República. Curiosamente, esse perfil físico parecia-me, como referi, menos conforme com aquilo que ressaltava da sua escrita de ficção. E essa dissonância tinha, para mim, algo de misterioso. 

Ao ter tido o ensejo de entrar, mais profundamente, no mundo que criou e marcou Teixeira Gomes, através daquela biografia, passei a perceber muito melhor a personalidade que se projetava suas diversas dimensões. 

Burguês rico de Portimão, provido de capitais familiares que lhe davam uma grande independência no seio da sociedade crescentemente tensa dos últimos anos da Monarquia, Teixeira Gomes, pelas raízes e pelos ambientes que foi levado a frequentar, era, com naturalidade, uma figura tributária das "luzes", do ativismo cívico liberal que, pouco a pouco, ia minando o rotativismo político e gerando uma surda alternativa ao status quo. 

Em Portugal, o republicanismo foi profundamente ideológico: consubstanciava uma doutrina combativa e salvífica, radicalmente humanista, que desesperava com a influência religiosa obscurantista e afirmava o seu positivismo extremo contra o antigo regime. Foi uma aliança de oportunidade de burgueses esclarecidos com uma classe trabalhadora cada vez mais marcada pelos ventos do radicalismo, nos princípios e na ação política. 

O tempo da Primeira República iria, aliás, trazer ao de cima todas as contradições dessa aliança, imanentes ao equívoco de propósitos que faz parte de todas as revoluções. Esse equívoco é quase sempre essencial ao sucesso dos momentos de mudança - como mais tarde o 25 de Abril veio a provar. 

Sendo um burguês no sentido mais puro do termo, Teixeira Gomes decantou, curiosamente, na sua personalidade, uma espécie de snobe sofisticado, que teve o ensejo, o bom gosto e a sabedoria de se educar sob os quadros culturais mais avançados para a época. 

Imerso no turbilhão dos grupos de jovens muito propensos às novas ideias e doutrinas, trazidas de Paris e do resto da Europa pelo Sud Express, com a bem guarnecida retaguarda económica a permitir-lhe todos os devaneios filosóficos, as viagens confortáveis e as aventuras carnais, Manuel Teixeira Gomes corria o sério risco de se converter num inútil diletante, saltitante entre doutrinas e se cultivava pela espuma dos dias. 

Curiosamente, embora falhando a universidade, Teixeira Gomes não falhou o seu encontro muito sério com a cultura. Soube ligar-se a quem o podia contribuir para a sua formação, frequentou os cenáculos das artes, das letras e da política, em Coimbra, Lisboa e no Porto. Criou também, com o tempo, uma apreciável rede de contactos no estrangeiro, onde ancorava as suas regulares andanças. 

É aliás curioso interrogarmo-nos como é que, no meio desse turbilhão de vida, ele conseguiu decantar o génio de uma escrita rica, gráfica nos detalhes, humana - muitas vezes cruel - no recorte das figuras, das circunstâncias e das paisagens. 

Dir-se-á que o cultivo dos clássicos ajudou muito a isso. Porém, conhecemos exemplos vários em que a imersão nesse mesmo caldeirão de livralhada redundou em escritas pesadas, prenhes de adjetivação redundante, penosamente solene e gongórica. Estava a escrever isto e a lembrar-me de um dos desprezos de estimação de Teixeira Gomes, que foi Júlio Dantas. 

Da imersão nesse mundo da cultura, onde começou a ter reconhecimento, se bem que, às vezes, um tanto reticente, Teixeira Gomes criou uma imagem pública que se foi destacando e se fez notar. 

Curiosamente, o seu surgimento no mundo republicano fez-se de forma pouco impositiva. Para mim, um dos maiores mistérios é perceber como a sua ascensão nos meios republicanos se fez sem aparentemente ter passado por aquele que parecia ser um patamar de iniciação quase obrigatório - a maçonaria. Quase todos os ambientes em que Teixeira Gomes se movimentava eram marcados por esse "template" filosófico e, ao que tudo indica, ele fez questão de saltar essa etapa de credibilização de grupo, então tão na moda. 

De burguês de província, como não me canso de sublinhar, dotado de uma cultura cosmopolita que espelhava nos livros e no convívio, Teixeira Gomes conseguiu desenhar no mundo político em ebulição a imagem de uma espécie de aristocrata da República. E isso dava-lhe uma valiosa independência. Não precisava da alavanca do mundo republicano para viver, não tomava opções políticas com vista a enriquecer. Nisso tinha um perfil idêntico a outros próceres da República, bem abonados de meios, dos quais se distinguia, contudo, pelo manifesto desapego aos lugares partidários e, mais tarde, q cargos de governo. 

Chegada a República ao poder, Teixeira Gomes surge cooptado para representante português em Londres, por razões quase caricaturais. 

Há um texto de João Chagas em que, ressoando a alguma acrimónia, ficaram detalhadas as motivações dessa escolha, embora não fique muito clara a responsabilidade última pela mesma: Teixeira Gomes era um homem inteligente e capaz, tinha um ar "fino", falava línguas e dispunha de uma cultura sempre útil nos salões. 

E aqui trago a esta conversa uma nota sobre a dimensão diplomática do novo regime. 

Portugal tinha então muito poucas representações pelo mundo, embora talvez mais do que seria expectável para um país da sua dimensão, o que a História justifica. Havia já, desde o século anterior, uma carreira criada para tal, dividida entre a parte diplomática e consular. Contudo, aos membros dessa carreira diplomática raramente competiam lugares de representação máxima do Estado nos países onde operavam. Esta estava, até então, em especial nas capitais mais importantes, como que reservada para os representantes pessoais do soberano - e vale a pena lembrar que a República portuguesa foi apenas a segunda, depois da França, numa Europa recheada de monarquias, tirando a bizarria do modelo suíço. 

Se a monarquia portuguesa tinha quase sempre escolhido aristocratas de linhagens mais ou menos adequadas para representar o Estado, esperando aliás que, muitas vezes, usassem bens próprios para retribuir a honra da sua nomeação, a nova República decidiu também selecionar alguns dos seus melhores para, pelo mundo, serem a cara do novo Portugal. Mostrar uma imagem de excelência era essencial para credibilizar o regime. E, claro, era imperativo afastar os representantes da monarquia, aristocratas que, não sendo simples "civil servants", obviamente não davam garantias de lealdade às novas autoridades. 

A República foi rápida a enviar para os escassos postos diplomáticos que o país tinha figuras de topo da sua nomenklatura, gente de elevada qualificação, a que quase sempre aliavam "boas maneiras", que caem sempre bem junto das chancelarias e salões estrangeiros. 

José Cutileiro dizia que dar, no exterior, uma imagem melhor do que aquilo que o país realmente é constitui um dos truques na escolha do pessoal diplomático. 

Foi assim que, pelo mundo, estiveram António Luiz Gomes, Bernardino Machado, José Relvas, Sidónio Pais, Augusto de Vasconcelos, Eusébio Leão, Guerra Junqueiro, entre outros menos conhecidos nos dias de hoje. 

Manuel Teixeira Gomes foi para Londres, onde esteve por dois períodos, intervalados por uma demissão determinada pela ditadura de Sidónio Pais e por uma estada breve em Madrid. 

Londres era, por essa época, o posto chave da diplomacia portuguesa. O comportamento do governo inglês, tido como exercendo uma espécie de tutela sobre Portugal, o que era pura verdade, tornava-se fundamental para a credibilização do novo regime. O reconhecimento da República portuguesa por Londres, que tardava, poderia ter um importante efeito dominó pelo mundo. 

Teixeira Gomes tinha, perante si, a mais difícil tarefa da diplomacia do novo regime, só comparável, embora em escala inferior, à da nossa representação em Espanha, país onde conspiravam quantos, pela violência, queriam restaurar a monarquia. Londres acolhia o rei deposto e muitos aristocratas órfãos do regime derrubado. O embaixador da monarquia, Soveral, um "performer" de primeira água, movimentava-se junto da corte como uma espécie de "embaixador sombra". Lá, como no poema de Bandeira, ele era "amigo do rei"... 

Teixeira Gomes fez então o que deve ter parecido impossível: conseguiu com alguma rapidez o reconhecimento britânico e foi construindo as pontes necessárias para uma colaboração futura entre Londres e Paris. Pode hoje imaginar-se a magnitude dessa tarefa e a sua complexidade. 

Convém pensarmos que, sendo então um homem maduro, na casa dos 50 anos, Teixeira Gomes tinha uma experiência negocial internacional que se limitava à venda de figos secos e de produtos congéneres, sendo completamente inexperiente na prática diplomática. Podemos imaginar que nisso pôs todo o seu bom senso e inteligência a funcionar. Mas isso, às vezes, não substitui a experiência. 

Mas ser um homem do mundo e com mundo, um cosmopolita, um descomplexado frequentador de salões, deve ter contribuído muito para o inegável êxito da sua missão. É que Teixeira Gomes tinha uma "aisance" social facilitada pelos seus meios de fortuna, pelos seus gostos refinados, pelos seus móveis e objetos de arte, pela frequência de mesas e "parties" em que, ao que se pressente, se sentia totalmente à vontade. E, ao que se pode presumir, teria um perfil, em matéria de relações humanas, perfeitamente adequado à função. 

A Inglaterra, verdade seja, vivia num dilema face a Portugal. Por um lado, a natureza do seu regime apontava para a proteção do anterior rei, e para aí se inclinaria o serralho da corte. Isso rimava bem, aliás, com uma opinião pública marcada pelas notícias, que por essa altura corriam na Europa, sobre as prisões em massa que a República teria levado a cabo, bem como acusações sobre trabalho forçado nas colónias. 

Mas, por outro lado, o pragmatismo britânico apontava para a necessidade da normalização das relações. A Inglaterra, que parece que não tem amigos e só tem interesses, como alguém disse um dia, não podia ficar refém de uma restauração monárquica que, manifestamente, dificilmente iria ter lugar. E, para a continuação e proteção desses consideráveis interesses, os ingleses dependiam da boa vontade do novo poder de Lisboa. E o governo britânico, quiçá contrariando a propensão inicial da corte, teve um reflexo de "realpolitik". 

E, um tanto ironicamente, aquela boa vontade florescia já na liderança republicana de Lisboa. Digo ironicamente, para sublinhar o contraste com a atitude contra a "pérfida Albion" e o "contra os bretões, marchar, marchar", ditada pela cena do Mapa Cor-de-Rosa, poucos anos antes. A República, que se reforçara no país pela sua feroz atitude anti-britânica nessa crise, necessitava agora de se aproximar de Londres, para diluir as resistências contra si que persistiam pelo mundo. 

Teixeira Gomes fez esse seu trabalho, e fê-lo de forma muito competente. Pelo meio, teve de gerir a difícil e delicada questão da participação portuguesa na beligerância, no conflito mundial que se instalou. 

No início escassamente convencido da bondade da ideia de Portugal se envolver na guerra, o nosso diplomata acabou por ficar confortável com essa opção, colando-se mesmo, a partir daí, a Afonso Costa. E soube trabalhar a filigrana do acordo que, um tanto a contragosto dos britânicos, procurava assegurar ao nosso país um lugar à mesa do compromisso final, para salvar a soberania colonial e pôr travão às ambições que as potências alimentavam sobre um espaço que tínhamos por nosso. Potências essas que incluíam a Inglaterra, bem entendido. 

Conseguiu mesmo que Londres viesse a invocar a Aliança Luso-Britânica nesse contexto, o que, à época, era tido como uma espécie de seguro de vida político, que a diplomacia de Lisboa sempre persistiu em fingir manter vivo, mesmo em tempos posteriores em que, para o que realmente contava, esse tratado estava mais do que morto. 

Uma nota ainda, esta de curiosidade, para sublinhar o incómodo manifestado por Teixeira Gomes com a banalidade burocrática de muitas das tarefas que era obrigado a executar, quase sempre ligadas a questões de natureza consular. Teixeira Gomes não tinha a menor experiência de administração pública e irritava-se com a lentidão dos processos, a complexidade dos protocolos, além da falta de meios materiais de origem oficial, e, em particular, a escassa qualidade dos recursos humanos. Nem Teixeira Gomes, por essa época, poderia imaginar como essa realidade teve o condão de se prolongar em todos os tempos que sucederam aos seus... 

O nosso diplomata em Londres acabaria por ser chamado, no termo da guerra, ao terreno multilateral, onde Portugal negociou os resultados do conflito. Por aquilo que o nosso país não conseguiu, não obstante uma negociação competente, Teixeira Gomes deve também ter entendido aquilo que um diplomata português acaba sempre, e inevitavelmente, por aprender: a dura realidade do nosso real poder relativo, ou da falta dele, no concerto mundial. 

Só o reconhecimento da qualidade do trabalho levado a cabo em Inglaterra pode, aliás, justificar esse seu posterior envolvimento numa grande negociação. É que, no termo da guerra, Teixeira Gomes era um dos mais qualificados diplomatas portugueses, senão mesmo o mais qualificado. 

Pelo meio, tinha ficado o episódio, aliás para ele bem prestigiante, da sua demissão por Sidónio Pais. Sidónio não tardaria a ser assassinado a poucos metros do hotel no qual antes determinara a detenção do diplomata demitido. Teixeira Gomes abriu uma garrafa de champanhe - e isto não é apenas uma metáfora. 

Olhando em perspetiva, tenho-me perguntado sobre as razões de política interna que terão impedido que Teixeira Gomes tivesse alguma vez sido chamado a ocupar o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros, um lugar manifestamente óbvio para o perfil que criara. Alguns terão também desejado, entretanto, que ele fosse chefe do governo, mas parece que esse não seria o seu desejo. Fica a sensação de que a sua apetência para envolvimento na política partidária e governativa terá sido sempre muito escassa. 

E, talvez por isso, por essa distância face à turbulência de Lisboa, somada ao episódio com Sidónio, a sua estrela terá subido na constelação republicana. 

Teixeira Gomes, com o tempo, ainda em Londres, deixou-se um dia tentar pela Presidência da República, que, ao tempo, se decidia por voto parlamentar. Talvez alguma vaidade e desejo de consagração o tenha empurrado para aceitar a ideia. Verdade seja que ele tinha, entretanto, passado a ser uma figura muito considerada dentro do regime democrático. 

Num tempo político em que, por usura, os atores partidários se iam tornando mais polémicos, o seu perfil algo independente, se bem que nunca partidariamente neutral, acabou por se revelar ajustado a um cargo que passava por um certo consenso parlamentar. 

Os anos de Teixeira Gomes em Belém não terão sido, longe disso, anos felizes. Mas, lendo algumas coisas que escreveu, fico com a sensação de que Teixeira Gomes foi sempre um hábil cultor de uma existência marcada por uma felicidade apenas moderada. De facto, olhando alguns dos seus comentários escritos sobre a sua existência, em especial a epistolografia, Manuel Teixeira Gomes dá ares de ser um eterno desadaptado face àquilo em que se envolve. Fica a ideia de que nada lhe agradava em definitivo, que tudo ficava aquém da sua expetativa. Face ao estado do país, sentia-se claramente um "vencido da vida" tardio. 

Nos dois anos que passou em Belém, marcados por várias crises políticas, com sete tentativas de golpe militar e oito governos, terá percebido que pouco mais poderia fazer, que o regime se encaminhava para um impasse. Para um "pântano", como outros diriam mais tarde. E decide sair de cena, faz este ano precisamente um século. 

Cansou-se mas, vale a pena sublinhar, cansou-se porque se "podia" cansar, isto é, porque tinha dinheiro e possibilidade de continuar, durante algum tempo, a passear pelo mundo, coisa que ele fez sempre de forma confortável e elegante. Eu diria mesmo, como nota pessoal, invejável. 

No imaginário português comum, a derradeira etapa da vida de Manuel Teixeira Gomes aparece quase sempre simplificada, por desconhecimento. Teixeira Gomes não saiu diretamente de Belém para Bougie, onde veio a morrer. Essa é a versão simplificada. Só se fixou em Bougie seis anos - repito, seis anos - depois de ter saído de Portugal, depois de ter viajado, pelo Magrebe que o fascinava e pela Europa em que se educava. 

E por Bougie ficou os seus últimos 10 anos de vida, isto é, entre os 71 e os 81 anos. Noto que ter essa idade, nos anos 30 do século passado, representava um tempo de velhice muito assinalável. 

Não me considero competente para especular sobre a circunstância de alguma da obra mais sensual, às vezes erótica, de Teixeira Gomes ter surgido precisamente nesse período. Mas, sendo Teixeira Gomes, precisamente nesse período de velhice, um cultor da memória do seu Algarve e da sua meninice, talvez tenha recorrido a ela para também praticar o regresso virtual ao seu universo onírico mais prazeiroso. Esse será para sempre parte do mistério do homem. 

A opção por viver em Bougie é talvez dos aspetos mais interessantes desse dandy culto e deliberadamente solitário, mediterrânico e algarvio pela sua raiz, homem de um mundo pelos interesses e gostos. 

Manuel Teixeira Gomes é uma personalidade que se torna mais fascinante à medida que o vamos lendo, que vamos estudando o seu percurso de vida e tentando interpretar o modo como se situou no destino que foi desenhando para si. Para o entender, devemos ter presentes as suas idiossincrasias, que inevitavelmente não podem deixar de comportar - e não quero deixar de o referir - um lado menos simpático da sua vida, que será o comportamento que teve para com a mãe das suas filhas. 

Teixeira Gomes foi uma figura que tinha, com alguma razão para tal, um alto conceito de si próprio. Foi um homem livre, crescentemente solitário, que procurou gerir a vida como queria e sabia que podia querer. 

Foi um autor de imenso mérito, que talvez tenha ficado a dever a si próprio uma obra que poderá ter pensado que não chegou a construir em pleno, prejudicado que foi pelos anos que dedicou à causa pública. 

Foi um estadista, um democrata e um patriota com sentido do interesse nacional, a que o país ficou a dever grandes serviços - e digo isto com a imensa sinceridade de quem o admira. 

O meu - e nosso - colega Manuel Teixeira Gomes sabia que não era um santo, pelo que, estou certo, embora apreciasse que o apreciássemos, zombaria se pressentisse que estávamos a fazer a sua hagiografia. Não foi isso que aqui fiz.

(Intervenção na conferência "Teixeira Gomes, Arte e Diplomacia. Sec. XX- XXI, Portimão, 27 de maio de 2025)




2 de fevereiro de 2025

Entrevista ao "Portugal Diplomático"

Entrevista concedida ao site "Portugal Diplomático", na sua 7ª edição, em fevereiro de 2025

O entrevistado desta edição é Francisco Seixas da Costa, antigo embaixador português. Entrou para a carreira diplomática em 1975, sendo o seu primeiro posto Oslo (1979-82). Exerceu funções nas embaixadas de Luanda (1982-86) e de Londres (1990-94) antes de exercer o cargo de Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, entre 1995 e 2001. Durante este período foi o negociador português do Tratado de Amesterdão e do Tratado de Nice. Em 2001 é nomeado Representante Permanente de Portugal junto das Nações Unidas e em 2002 Representante Permanente de Portugal junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Entre 2005 e 2009 é embaixador no Brasil, antes de ocupar o seu último posto em Paris (2009-13), tendo sido também Representante Permanente de Portugal junto da UNESCO e da União Latina. Após a sua carreira diplomática foi consultor, docente universitário, colunista e comentador em diversos meios de comunicação.

 

Antes de mais, é uma honra ter o Sr. Embaixador como entrevistado. Primeiro de tudo, e antes que me esqueça, queria falar de duas ou três coisas sobre o seu livro “Antes Que Me Esqueça” e perguntar qual é que foi a inspiração de pegar no seu blogue e torná-lo uma obra, um livro?

O meu blogue pessoal começou em 2009, há 16 anos, no dia em que iniciei funções como embaixador em Paris. Embora o blogue aborde muitas outras coisas, tinha, desde o início, decidido colocar nele algumas historietas da vida diplomática. Umas mais divertidas, outras mais sérias. Ao longo dos anos, vários amigos foram-me pedindo para juntar essas histórias: por que não fazes um livro? Um dia, uma editora, que não foi a que agora editou este livro, veio ter comigo e disse-me: gostávamos de publicar histórias que tem no seu blogue. Respondi que não tinha tempo, que teria grande dificuldade em organizá-las, porque isso implicava uma reordenação. A resposta foi desarmante: nós fazemos isso, vamos ao blogue, que está aberto para consulta, escolhemos o que achemos que tem graça e preparamos um livro. E assim fizeram. O resultado não me satisfez, confesso. Era uma seleção por temas e o critério da editora, se bem que respeitável, assentava demasiado nas histórias mais anedóticas. Achei que aquilo dava do Ministério dos Negócios Estrangeiros um ar um demasiado leve, pelo que decidi não ir avante com a publicação.

Contudo, a pressão dos meus amigos, e até de comentadores no blogue que não conhecia, ia aumentando. Um dia, disse para mim mesmo que talvez valesse a pena revisitar o blogue, com o olhar voltado para uma outra seleção de textos. Mas não era fácil: eram treze mil e tal posts. Escolhi cerca de trezentos dentre eles e daí resultou um livro. Depois, foi preciso recompor alguns textos, em particular retocando questões da atualidade. O livro procurou essencialmente assentar em histórias de que eu fosse parte, ou que tivesse testemunhado. Como não tenho apontamentos, como não me habituei a guardar dossiers com documentos, os textos baseiam-se essencialmente na minha memória e isso pode facilmente conduzir a alguns erros. E, de facto, depois do livro publicado, constatei que houve três ou quatro histórias face às quais algumas pessoas vieram ter comigo e disseram: não foi bem assim. Nada de grave, mas eram imprecisões. Mas isso é o que dá fazer uma coisa de memória e, mesmo assim, acho que tenho razoável memória para conseguir escrever trezentas e tal histórias, na maioria das quais não há erros fácticos. E a ideia do livro era, em primeiro lugar, ser mais ou menos divertido para leitura e, depois, procurar, através dele, revelar às pessoas o que é a vida diplomática, o que foi a experiência de alguém que fez 40 anos dessa profissão, andando de posto em posto. A tudo isso, juntei episódios dos cinco anos e meio em que eu estive no governo. Esse tempo foi também uma experiência diplomática, porque eram funções políticas com essa dimensão.

Tudo aquilo, no fundo, acaba por facilitar um teste global, que só os outros que podem ajuizar, sobre a eventual coerência existente na ação e no pensamento. O livro segue um método à partida estranho: os textos reportam-se a variadas épocas, estão misturados cronologicamente e não se pode perder de vista que, quando atravessamos uma vida que tem décadas de trabalho, nós próprios vamos aprendendo e evoluindo na maneira como olhamos para as coisas. De certo modo, o livro é um exercício de transparência sobre a natureza da vida diplomática, ou melhor, sobre uma vida diplomática em concreto. É que convém que fique claro: não quero servir de exemplo ou de modelo a ninguém.

Acho que o livro teve bastante êxito, pelo menos bem mais do que eu pensava: vai na 3ª edição, a caminho da 4ª, e tem-se vendido bem. Decidi doar metade dos rendimentos das vendas da edição inicial para a Associação de Proteção dos Diabéticos de Portugal, uma instituição muito meritória que achei que merecia esse gesto. No blogue ficou ainda muito material, que dá para fazer mais um livro, pelo menos. A seu tempo se verá.

 

E também existem poucos relatos dentro do que se passa na vida diplomática.

Há alguns, embora poucos. E este livro não é, em rigor, uma memória organizada dessa natureza. Não foi um livro de raiz, foi um livro com coisas que já estavam publicadas. Nele procurei também evitar textos que tivessem uma qualquer dimensão de queixa, de acrimónia, de conflitualidade, mesmo de polémica. Costumo dizer que a vida me correu demasiado bem para não ter que estar a sublinhar as poucas coisas que me correram mal. Por isso, os textos são basicamente textos pela positiva, um relato da ação diplomática desenvolvida, expondo os problemas encontrados e o modo, bom mau, como os consegui resolver.

 

E há situações mais sérias, digamos, não é? Existe um exemplo muito específico que foi o caso da Líbia.

Sim, há situações mais sérias, que têm a ver com conjunturas mais delicadas. O que é fascinante na vida diplomática é que nada se repete. As experiências são muito diferentes umas das outras, tanto mais que os interlocutores são muito diversos. Somos postos a teste permanentemente sobre a nossa capacidade de reagir perante uma determinada situação, sempre com dimensões novas. São testes contínuos ao nosso bom senso, à nossa capacidade de atuar de forma ponderada, equilibrada e que, essencialmente, defenda o interesse do Estado que representamos. A defesa do interesse do Estado é o elemento essencial na nossa ação. Não estamos ali para melhorar a nossa imagem pessoal, estamos para preservar a imagem do Estado português e para defendê-la da melhor maneira que sabemos e podemos.

A diplomacia é, além disso, até porque somos um país com embaixadas em regra muito pequenas, um exercício de alguma solidão na ação. Os diplomatas estão muitas vezes sozinhos, não têm sequer com quem “checkar” as coisas, com quem trocar ideias no sentido de definir o que deve ser a ação a executar. Quando se tem embaixadas grandes, e eu já trabalhei em embaixadas grandes como Luanda, Londres, Paris, Nova Iorque ou na OSCE em Viena, com bastantes pessoas, é uma coisa, mas quando se está num posto como a Noruega, numa embaixada pequena, a decisão e a ação são muito solitárias.

Essa solidão pode ter outras formas. Conto no livro a experiência de uma missão que fiz a São Tomé e Príncipe, menos de seis meses depois de entrar no Ministério, ainda jovem Adido de Embaixada. Fui encarregado de tentar resolver ali um problema que, entretanto, surgira, e que a nossa embaixada não conseguia solucionar. Tive de ir falar com o primeiro-ministro e com vários ministros do novo país. Foi uma missão muito incomum, pois não conheço nenhum caso de um funcionário acabado de entrar para o Ministério que tenha sido enviado numa missão individual dessa responsabilidade ao exterior. Atuar sozinho, tomar uma decisão sobre um problema, implica, como então implicou, a necessidade de ter a noção de que estava a representar o país, de ser a cara do país. Isso, ao mesmo tempo, é um orgulho, mas também é uma responsabilidade.

 

E é necessário também muita capacidade de adaptação a nível pessoal.

Quando se circula entre vários postos, é necessária essa capacidade de adaptação, porque a vida é muito diferente de sítio para sítio. Alias, falo no livro na mudança que foi viver na Noruega, um dos países mais desenvolvidos e cómodos do mundo, e, de um dia para o outro, cair numa Luanda quase caótica, no meio de uma Guerra Civil. Essa capacidade de adaptação é fundamental.

É nos postos mais complicados que podemos cometer mais erros. Na carreira diplomática há uma coisa que se aprende: é que quando se comete um erro, passa-se o resto da carreira a tentar apagar esse erro. Há um colega meu, Marcello Mathias, um embaixador que tem uma obra literária magnífica, que dizia isso: passa-se uma vida inteira para corrigir um erro feito num segundo. Se uma pessoa comete um erro grave, e se esse erro tem repercussões no Ministério, a imagem profissional desse funcionário fica colada a esse erro, toda a gente o passa a recordar por esse episódio. Há uma coisa que costumo recomendar aos jovens diplomatas: não se deixarem amarfanhar por uma coisa que lhes correu episodicamente mal na vida profissional.

Dou um exemplo: uma pessoa é colocada num sítio que não gosta, imaginemos Ulan Bator (não temos embaixada em Ulan Bator...). Ele não queria ir para Ulan Bator, mas o seu desejo não foi atendido, foi ali colocado contra a sua vontade. E, enquanto está por lá, deixa que a sua ação passe a ser marcada por esse mal-estar. Se, nesse quadro de trabalho, ele vier a revelar desinteresse profissional, falta de disponibilidade e de iniciativa, ausência de sociabilidade, tudo isso vai fazer parte de um capítulo da sua vida diplomática que o Ministério não irá esquecer. Qual é a solução para isso? É preciso saber dar a volta “por dentro”, tentar “transformar” Ulan Bator no posto mais “importante” da carreira diplomática, estimular protocolos entre universidades de Ulan Bator e universidades portuguesas, procurar intercâmbio cultural e artístico, tentar promover ali a literatura portuguesa, encontrar empresas compatíveis em ambos os países, etc.

É sempre possível criar, é sempre possível inventar, ser criativo. Mas se o diplomata desiste, se “sofre” o posto, vai ali torturar-se durante três ou quatro anos. E isso vai mudá-lo por dentro, de forma negativa. Vi colegas meus que tinham um excelente potencial, mas que, entretanto, atravessaram experiências desagradáveis e deixaram-se marcar por elas. Isso arruinou-lhes a carreira, porque não conseguiram ultrapassar esse mau momento. No que me toca, estive em postos de que não gostei, mas consegui ultrapassar o meu desagrado íntimo. Fiz isso de propósito, para não dar uma alegria a quem tinha contribuído para ter sido colocado nesses postos que eu não desejava...

 

Neste caso até pode considerar-se que é um mal que vem por bem.

Existe uma expressão francesa, que aliás Mário Soares utiliza no prefácio a um livro meu, que diz “à quelque chose malheur est bon” (que, de certa forma, se pode traduzir por “há males que vêm por bem”). Há sempre um lado positivo nas coisas más, que temos de descobrir. Isso faz parte dessa capacidade de adaptação, sem a qual um diplomata não conseguirá um mínimo de sucesso profissional e até de estabilidade emocional.

Outras dimensões que estão presentes no seu dia-a-dia é a adaptação dos cônjuges, dos filhos, as condições de saúde e segurança nos postos, os problemas da família que fica em Portugal. São coisas que se não podem pré-determinar, que vão evoluindo, pelo que estamos sujeitos a um teste permanente, na nossa vida no exterior. Às vezes, essa vida corre bem, outras vezes corre mal.

Há um aspeto que eu gostava que ficasse claro, e julgo que fica evidente no livro e, de certo modo, na minha própria vida no Ministério. Fui fazer o concurso de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros não conhecendo ninguém lá dentro. Nem um contínuo! Preenchi uma ficha, fiz os vários e muito exigentes exames e fui admitido. Não fiquei no topo, fiquei em 13°, entre centenas de candidatos. Fiz a minha carreira, que não foi má de todo, foram-me dadas oportunidades, que soube aproveitar, e acabei como embaixador em Paris. Creio que isto prova que há alguma democraticidade e reconhecimento do esforço. E há muito mais gente como eu, gente que não tinha conhecimentos, que não tinha um tio ou um primo ou um avô que tivessem sido embaixadores, ou o apoio de famílias mais ou menos conhecidas e influentes. Repito: fiz o meu percurso sem conhecer ninguém, sem ser protegido por quem quer que fosse. Fui sendo promovido e colocado por governos das mais diversas cores.

Acho que isto, de certo modo, é um elogio não apenas ao serviço público português, mas também à própria sociedade portuguesa. Essa ascensão pelo mérito aconteceu, na sua vida, com pessoas como Cavaco Silva ou António Guterres, por exemplo. Há espaço em Portugal para que quem trabalhe bem tenha oportunidade de construir uma carreira. Isto não quer dizer que alguns não tenham, por vezes, a vida facilitada através de conhecimentos, até de “cunhas”, mas a experiência mostrou-me que quem for persistente, quem for competente, pode conseguir afirmar-se no serviço público, mesmo não fazendo parte de circuitos sociais elevados. E, claro, é também necessário ter alguma sorte. A mim, como diz o outro, toda a sorte que tive deu-me muito trabalho a conquistar...

 

Na questão da educação, considera que ao prosseguir os estudos, como o mestrado e o doutoramento, pode-se abrir essas portas?

Hoje em dia, tenho alguma dúvida sobre esse efeito. Já tenho encontrado licenciados em caixas do Pingo Doce e, portanto, tenho muitas dúvidas sobre essa relação de causa-efeito. Não ter um curso é, obviamente, um “handicap”. Ter um curso é uma plataforma a partir da qual se parte, mas não é condição sine qua non para ter um futuro garantido. Faço parte de uma geração em que quem tivesse concluído um curso tinha uma garantia de emprego e, mesmo sem um curso, conseguia-se facilmente aceder a uma atividade profissional. Verdade seja que, com os mesmos 10 milhões de população dessa época e de hoje, o número de licenciados era muitíssimo mais pequeno. Tudo era mais fácil para quem tivesse a sorte de conseguir aceder à universidade. Mesmo para os maus alunos! Comecei por estudar engenharia eletrotécnica e fui aí um péssimo estudante. Mudei entretanto de curso e concluí uma outra licenciatura. Mas, ainda antes de a concluir, fiz, em 1971, concurso para a Caixa Geral de Depósitos, passando a trabalhador-estudante para não sobrecarregar os meus pais. Aí teria continuado se, depois de acabado o curso, me não tivesse tentado pela diplomacia. Já estava casado e, posso hoje confessar, fiz o concurso de acesso ao MNE por diletantismo puro, num sentido quase provocatório. Disse para mim mesmo, na altura: vou conseguir ser aprovado no concurso para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque, em temas internacionais, provavelmente sei tanto como os que vão fazer esse concurso.  Embora não fosse só isso que estava em jogo. Era preciso saber história diplomática, economia política, direito internacional, além de relações internacionais em geral. Estudei o mínimo que era necessário dos restantes temas e fui admitido.

Com algum orgulho, costumo dizer que fiz parte de uma geração, a geração que nos últimos anos vai saindo da cena profissional, que se interessava por saber um pouco de muita coisa. Nisso fui ajudado pela minha família. O meu pai assinava o L’Express, que eu lia, desde os meus 16 anos. Havia muitos livros lá por casa. Entre o meu avô materno, o meu pai e os meus tios falava-se muito da Segunda Guerra Mundial. Olhando para trás, acho que cheguei às questões internacionais muito por virtude da literatura em torno dessa guerra.

Lia então muito pouco em inglês: 90% do que lia em línguas estrangeiras eram revistas e livros em francês, só 10% em inglês. Hoje é praticamente o contrário. Leio 80% em inglês e 20% em francês. Essa foi a geração universitária de cafés, de tertúlias, muito interessada pelas coisas internacionais. Estávamos vidrados na democracia que havia lá fora, porque não havia disso por cá. Lembro-me de ter um dia ido a Paris para ...  ver eleições. Por cá não havia eleições ou, se havia, não eram “a sério”!

Voltando à sua questão: é necessário um curso? É, mas, sendo necessário, não é suficiente. Mas vou ser sincero: há uma coisa muito importante, para além do curso: a vontade de saber, a curiosidade em aprender, continuamente. Digo isto com total abertura: tenho 77 anos de idade e continuo a comprar livros desalmadamente, consulto cada vez mais apps de Inteligência Artificial, para saber coisas que não sabia e que infelizmente já devia ter sabido há anos. Mantenho uma curiosidade insaciável sobre imensas coisas e concluí que essa curiosidade foi um elemento fundamental para a construção do meu percurso de vida. É tentar saber um pouco de tudo. Não é ler tudo. Quer dizer, se eu tivesse lido dois livros por semana, entre os meus 17 os 77 anos, que é a minha idade de hoje, teria lido 6 mil e tal livros. Ora, eu tenho 10 mil e tal livros e, obviamente, fiquei muito longe de ter lido dois livros por semana. O que é que se passa? Comprei muitos mais livros do que consigo ler. Há livros que eu nunca li e comprei e, se calhar, vou comprar amanhã outros que nunca vou ler, mas esta vontade de querer saber um pouco mais, mesmo não conseguindo ir a todas, foi para mim a minha salvação de vida.

Mas volto a dizer, o curso é fundamental, é importante concluir um curso. Se é preciso fazer um doutoramento, não sei. Acho que mestrado, hoje em dia, é o mínimo. O doutoramento, para o qual me tentaram no passado, nunca esteve no meu radar. Nunca fez parte da minha ideia de vida ter uma carreira académica. Agora, ter uma base sólida de natureza cultural e académica, que nos garanta um conhecimento alargado da realidade mutante em que vivemos, acho fundamental. Eu vivo de iPad ao lado, de manhã à noite, e, quando não tenho iPad, tenho iPhone. Confesso que sou muito dependente hoje de toda essa informação, além de que escrevo um blog diário, escrevo no Twitter, escrevo no Facebook.

As redes sociais, para mim, mais do que a conversa e o debate entre pessoas, que não pratico, são fontes de informação - jornais, think tanks, etc. Tenho informação a mais e a minha preocupação é conseguir fazer uma triagem eficaz. Gosto muito de ter acesso aos factos, para os poder analisar sem estar sistematicamente a tê-los já trabalhados por alguém. Desde há vários anos que privilegio fontes de informação de tendências políticas diferentes das minhas. Gosto de ler o que me contraria... Obriga-me a criar anticorpos e argumentos. Costumo dizer que para pensar aquilo que eu penso basto eu! E, por isso mesmo, ouvir o contraditório, ouvir o outro lado, é muito importante, porque senão você fica preso numa caixa e deixa de ter elasticidade mental. Não consegue sair depois dessa caixa.

Voltando outra vez ao que me perguntou. Estudar em permanência é absolutamente essencial, par ter as bases essenciais atualizadas. Todos nós temos de perceber que um curso não é chave de futuro, só que, às vezes, sem ele não há futuro.

A transição tecnológica também se fez sentir na rede diplomática e nas embaixadas? E como é que se fez, como é que foi essa transição? É que existe uns pequenos retratos, durante o seu livro, que não tinham contacto para Lisboa, por exemplo.

Em fins de 1987, depois de ter estado cerca de dois anos no departamento criado para o ingresso de Portugal nas então Comunidades Europeias, fui convidado para assessorar o então secretário de Estado, Durão Barroso, nas questões de cooperação para o desenvolvimento, lugar onde fiquei três anos. Num canto do gabinete que me atribuíram, havia umas caixas. Abri-as e era um computador a estrear, que os anteriores ocupantes do espaço não chegaram a usar. Era um Olivetti 286. As pessoas que conhecem computadores sabem o que isso era. Era praticamente dos primórdios. Eu, até então, nunca tinha tocado num computador.

Chamei um colega que sabia do assunto e montou-me o aparelho. Fiquei “cliente”! Desde esse mês de dezembro de 1987 que não uso outra coisa! Em 1990, fui para a nossa embaixada em Londres, onde não havia nenhum computador. Pedi ao Ministério dinheiro para comprar um computador “desktop” para mim. Como havia uns saldos, com esse dinheiro consegui comprar dois aparelhos. E, tempos mais tarde, conseguiram-se outros, para todos os diplomatas e técnicos. Era unidades isoladas, não tínhamos rede nem, claro, internet. Funcionávamos à base de disquetes. Quando regressei a Lisboa, quatro anos depois, tudo era já diferente. Mas tenho orgulho de dizer que, se bem julgo saber, terá sido a primeira embaixada informatizada, embora de forma muito rudimentar.

A informatização mudou radicalmente o sistema de comunicações do Ministério, bem como a sua rapidez e facilidade de difusão da informação. Antigamente tudo ia por telex, depois por fax, sempre com códigos cifrados. Em geral, a rapidez e facilidade das comunicações mudou tudo. Os telefonemas entre países eram muito caros e usados com grande parcimónia. E, às vezes, eram difíceis. Quando estive na embaixada em Luanda, uma chamada telefónica para Lisboa tinha de ser pedida com horas de antecedência...

E, durante muito tempo, não houve internet. E a internet mudou tudo, facilitou a circulação da informação, tornou a relação entre os funcionários mais fácil, entre os postos e Lisboa, o que se cumulou com a criação do e-mail. Mudou também a forma de fazer diplomacia. Algumas embaixadas começaram a ter “sites” próprios.

Em Brasília, em 2005, criei, e eu próprio alimentei pessoalmente durante mais de dois anos, um blogue, que chegou a ter milhares de consultas por dia. Dava informação oficial mas, essencialmente, cobria as relações Portugal-Brasil, nas suas várias dimensões – económicas, culturais, desportivas, etc. Tenho o gosto de dizer que foi o primeiro blogue criado numa embaixada portuguesa. Os britânicos já tinham isso em algumas das suas missões e inspirei-me neles. Fiz depois o mesmo em Paris, mas com uma ambição de cobertura informativa mais limitada. Tradicionalmente, as pessoas escreviam cartas para as embaixadas. Com o e-mail, tudo se agilizou, dispensando o correio tradicional. As redes sociais vieram facilitar o papel de comunicação através das embaixadas, potenciando fortemente a chamada diplomacia pública, que é a ligação direta com as sociedades em que as missões diplomáticas estão inseridas. A partir do momento em que as embaixadas passam a ter os seus próprios espaços de informação, isso valoriza-as localmente e aumenta a sua capacidade de passarem mensagens, seja aos seus concidadãos nesse país, seja ao público em geral.

 

E no caso das comunidades portuguesas?

As comunidades portuguesas, pela sua diversidade, apresentam problemas muito particulares no tocante à utilização dos meios digitais para as servirem. Descontando esta última vaga migratória, feita por gente com qualificações académicas, o panorama dos portugueses da diáspora é muito diverso. Há comunidades mais antigas, pouco propensas à utilização dos meios informáticos, ao lado de outras mais abertas a tal.

Fui embaixador, sucessivamente, nas duas maiores comunidades portuguesas no mundo, o Brasil e a França. Ao tempo em que ali atuei, dei-me conta da diferenciada disponibilidade dessas pessoas para abandonarem a “cultura de balcão” e optarem pelos meios digitais. Em grande parte, há uma divisão etária, mas também cultural, que é necessário superar. O tempo acabará por resolver isso, com os nossos concidadãos a convencerem-se das vantagens de evitar desnecessárias deslocações. Mas, em muitos casos, cruzamos pessoas que se habituaram a um tratamento presencial e ainda têm dificuldade em dispensá-lo. Vivemos um tempo de transição. Nos dias de hoje, de certo modo, os nossos consulados passaram a ser uma espécie de Lojas do Cidadão, onde cada vez mais há uma desmaterialização dos atos, pelo acesso às coisas por via informática. Isso traz imensas vantagens, poupa deslocações, poupa tempo e mesmo custos.

Não deixo de reconhecer que, em certas comunidades, a presença consular tem ainda uma significativa dimensão simbólica. Recordo-me de que, quando cheguei ao Brasil, cabia-me tutelar uma rede de 10 consulados de carreira, titulados por diplomatas, e cerca de 40 consulados honorários, com funções diferenciadas entre si. As coisas já se não passam hoje da mesma forma e a tendência vai necessariamente no sentido da simplificação, que acabará por ser um ganho grande para as nossas comunidades portuguesas. Além disso, o facto de, no âmbito da União Europeia, haver hoje um Serviço Europeu de Ação Externa é um importante contributo para uma maior proteção dos portugueses que andam pelo mundo. Onde não há embaixadas ou consulados portugueses, os nossos compatriotas podem hoje recorrer a outras embaixadas de Estados da EU. A cidadania europeia é um valor acrescentado à nossa cidadania nacional. E isto protege muito mais nossos cidadãos.

 

Como é que é feito o contacto das embaixadas de Portugal com o poder local, ou neste caso o poder nacional, de onde estava acreditado?

 

Há um formalismo, quase um ritual, no relacionamento entre as embaixadas e os poderes locais. Curiosamente, é um modelo de matriz europeia, porque o berço dos rituais diplomáticos foi a Europa. É interessante ver, digamos, a embaixada da Malásia a dirigir-se ao Ministério dos Negócios Estrangeiros da Bolívia exatamente da mesma maneira que a embaixada da Alemanha em Paris se dirige ao Quai d‘Orsay, à sede da diplomacia francesa. Há uma espécie de um “template” que a diplomacia internacional adotou. O relacionamento entre as embaixadas entre si ou com os governos nacionais está plasmado nas Convenções de Viena sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares, que são documentos dos anos 60 do século passado. Sabe-se exatamente quais são os direitos, quais são os deveres, o comportamento que é exigido a cada um e o que se espera do outro. Há uma espécie de igualdade formal entre os Estados.

 

Mas essa igualdade é só formal. Os países têm uma capacidade de afirmação muito diferente. Se o embaixador americano em Paris quiser ser recebido pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, por um motivo urgente, a probabilidade de conseguir esse encontro no mesmo dia é elevada. Por muito que peça, o embaixador da Bielorrússia ou do Botswana nunca conseguirá ter uma audiência com o ministro francês, nem com um secretário de Estado, e o melhor que consegue é encontrar-se, alguns dias depois, com o “desk” da área geográfica ou com um subdiretor qualquer. Goste-se ou não, os países têm uma hierarquia entre si.

 

Por essa razão é que os diplomatas, em especial dos países menos poderosos, têm necessidade de criar relações com figuras locais com interesse para a sua ação profissional. Há algum artificialismo nisto? É verdade, mas a chamada “representação”, a criação de círculos de conhecimentos, é parte integrante da atividade diplomática. Em cada posto que tive, comecei por identificar as pessoas que poderiam vir a ser importantes para o meu trabalho, em especial nos Ministério dos Negócios Estrangeiros locais, mas não só – empresas, imprensa, “opinion makers”, etc. Fazia-lhe visitas de cortesia, convidava-os para jantar, para concertos ou cocktaiks na embaixada, isto é, criava com eles uma proximidade que me permitia, nomeadamente em face de uma situação de interesse para Portugal, contactá-los rapidamente pelo telefone, evitando o moroso percurso burocrático tradicional. Muitas vezes, acabei por fazer bons amigos nesses conhecimentos profissionais. Muitos até hoje.

 

Portugal não é um país poderoso. É um país muito conhecido: todos nos conhecem, até porque somos um dos mais antigos Estados do mundo. Mas temos a importância que temos. Somos o país mais pobre da Europa Ocidental. Alguns portugueses não gostam de ouvir isto, mas é a pura verdade. Somos, contudo, um país que tem, no plano internacional, a imagem de país sério, que cumpre o que diz, que tem uma agenda internacional decente, que respeita os grandes princípios e os grandes valores humanistas. Mas não somos a Alemanha, não somos a Itália, nem somos o Brasil. Não temos essa dimensão associada ao nosso nome. ser claros. Por isso mesmo, como diplomatas, somos obrigados a fazer um esforço para compensar essa limitação de poder à escala internacional. Um embaixador português, se quiser ter as “portas abertas” no país onde está acreditado, tem de se movimentar, de convidar pessoas, de saber intervir. Não se trata de um mero exercício de afirmação pessoal, trata-se, muito simplesmente, de criar as melhores condições para, se e quando necessário, poder ter eficácia na defesa dos interesses portugueses – na economia, na nossa comunidade, na vida cultural. Profissionalismo diplomático é isso.

 

 

E outro aspeto, dentro da área da diplomacia, é o das visitas de Estado, que também é muito importante nas dinâmicas e nas relações bilaterais entre os países. Como é que elas são organizadas?

 

Estamos a falar de dois tipos de visitas. As visitas ditas “de Estado” são as tituladas, em Portugal, pelo Presidente da República. As visitas em que as delegações são chefiadas pelos Primeiros Ministros ou por outros membros dos governos designam-se por visitas oficiais.

 

Como os chefes de Estado portugueses não têm poderes executivos, as visitas que eles titulam apenas podem funcionar como plataformas para aquilo que os governos quiserem que o presidente faça nessas ocasiões. Ao longo da minha carreira, tive forte responsabilidade na organização de algumas visitas de Estado e, como membro do governo, integrei algumas outras. Umas tiveram alguma importância substantiva, outras foram meramente protocolares. Repito: as visitas de um Presidente português têm a importância que os governos da altura lhe quiserem dar. Às vezes, podem assinar-se alguns acordos, haver encontros entre empresários, ter lugar algum evento cultural. Recordo-me de ter integrado visitas de Estado dos Presidentes Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Cavaco Silva. Já não “apanhei” Marcelo Rebelo de Sousa...

 

Em termos de substância, os encontros de delegações chefiadas pelos Primeiros Ministros são, em regra, bastante mais “sumarentos”. Como se trata de figuras com competências executivas, há nesses encontros coisas mais concretas. Participei em inúmeros encontros entre chefes de Governo, entre ministros e eu próprio presidi a dezenas de delegações portuguesas.

 

Os acordos que se vão assinar nessas ocasiões são, em regra, discutidos em tempo anterior, em regra através das embaixadas. Há sempre uma margem para algum improviso, mas o essencial já está fixado semanas antes. O que muitas vezes acontece é que um determinado acordo não esteja completamente “fechado”, por dificuldades ou objeções de uma das partes, e haja, à última hora, uma pressão política para ultrapassar a dificuldade.

 

Outro aspeto também, já quando referiu a sua experiência de enquanto Secretário de Estado, é o das negociações para os tratados de Amsterdão e de Nice. Como é que são realizadas estas negociações? 

 

Esse tratados passam por um processo negocial longo, de muitos meses, de centenas de horas de debate. São as chamadas Conferências Intergovernamentais. Cada país, em regra, designa um negociador-chefe, que se rodeia de pessoas das áreas do governo a quem poderá interessar a negociação. Nos tratados que vieram a chamar-se de Amesterdão e de Nice, eu fui designado pelo governo como negociador-chefe, cumulando com a minha função de Secretário de Estado dos Assuntos Europeus. No anterior tratado, chamado de Maastricht, o meu antecessor como Secretário de Estado decidiu indicar negociadores para os capítulos económico e político, fazendo ele a coordenação. O modelo do tratado de Lisboa foi também diferente, tanto mais que o texto partia do projeto de Tratado Constitucional, que foi rejeitado pelos referendos francês e holandês, depois da chamada Convenção Europeia.

 

O processo negocial é complexo. Em regra, no âmbito europeu, entre os chefes de Governo, é estabelecida uma agenda, assente nas áreas do anterior tratado que se pretende alterar. Cada país, no plano interno, olha para a agenda e define se está ou não interessado em associar-se às mudanças. Pode fazer propostas ou reagir às que vão surgindo. A nível do governo, é aprovado um mandato para o trabalho do negociador-chefe, que, em princípio, ele tem de respeitar. O grande problema é que, muitas vezes, a dinâmica dos debates vai mudando a própria agenda inicial e nós temos de estar preparados para evoluir das nossas posições de partida. Ora isso implica estar sempre a consultar as áreas técnicas do governo que são relevantes para os temas em discussão. No fundo, temos de ir revendo aquilo que era o nosso mandato inicial. O negociador nacional não pode perder de vista que o tratado que sair da negociação europeia tem de ser ratificado no parlamento português. Daí que, com regularidade, tenha de ir à Comissão Parlamentar de Assuntos Europeus dar conta de como anda a negociação. E, ainda antes disso, tem de ir informando o seu próprio governo do que anda pela Europa a decidir em nome dele... É um processo interessantíssimo em que eu percebi que, às vezes, era mais fácil negociar na Europa do que com os vários ministérios portugueses! Foi um trabalho fascinante, mas muito cansativo.

 

Só mais uma nota. Ainda antes de chefiar a negociação em Amesterdão e em Nice, eu já tinha feito parte do “grupo de reflexão” que inventariou as modificações a introduzir no tratado de Maastricht. E, enquanto decorria a negociação do Tratado Constitucional, que seria rejeitado, e estando como embaixador na OSCE, na Áustria, vim a Lisboa aconselhar o governo de então nessa negociação. Mas nada tive a ver com o Tratado de Lisboa.

 

 

E quais foram os principais desafios à posição de Portugal durante essas negociações? 

 

É difícil sumariar aquilo que foi um imenso trabalho. Diria que tínhamos uma agenda defensiva, uma agenda ofensiva e uma agenda funcional. Eu explico.

 

A agenda defensiva era, no essencial, conseguir não perder poder próprio numa Europa cada vez mais alargada: poder de voto no Conselho de Ministros europeu e número de deputados no Parlamento Europeu. Além disso, queríamos manter a unanimidade em áreas que fossem muito sensíveis para Portugal. Mas havia bastantes outros aspetos em que tínhamos de ter uma postura restritiva. O que eu pretendia garantir era a nossa capacidade de bloqueio. Pode parecer que estava assim a tentar prejudicar o funcionamento da União. Mas não era isso. A capacidade de bloqueio na União Europeia é uma coisa importante, porque quando se tem capacidade potencial para bloquear uma decisão, isso não significa que a vá bloquear, mas apenas se quer utilizar esse poder para fazer pressão junto da Comissão Europeia para que ela, na apresentação da proposta, tenha em atenção as nossas preocupações, para que não fiquemos isolados. Portugal, na União Europeia, tem uma posição difícil. Temos 10 milhões de habitantes, isto é, a mesma população que a Bélgica ou a Áustria, mas não temos os mesmos problemas desses países. A maioria das decisões tomadas no processo decisório legislativo europeu cobrem os interesses da Bélgica ou da Áustria, mas não cobrem necessariamente os interesses de um país pobre, pouco menos desenvolvido, periférico, económica e fisicamente, como é Portugal. Os nossos interesses são periféricos e não são cobertos pelo “mainstream” das decisões que são interessantes para a França e para a Alemanha e, portanto, para a Bélgica, para a Holanda e para o Luxemburgo, porque estão ali no meio dessa geografia desenvolvida. Nós estamos fora, estamos mais longe, somos mais pobres. Temos assim que encontrar maneira de garantir um mínimo de força institucional para preservar essa nossa diferença. E esse é sempre um desafio para qualquer negociador português. 

 

A agenda ofensiva essencial era conseguir garantir uma base jurídica para poder beneficiar as regiões ultraperiféricas dos Açores e Madeira. Nos Tratados anteriores havia apenas uma declaração, na base da qual nós conseguíamos algum financiamento. Pretendíamos uma base jurídica, que era o que nos dava força para, em termos orçamentais, poder ter verbas.  É sempre difícil, porque com uma União a alargar-se, naturalmente, sendo o bolo o mesmo, as fatias são menores. Conseguimos o nosso objetivo e as Regiões Autónomas beneficiam hoje disso.

 

A agenda funcional era de natureza política. Nós tínhamos de conseguir mostrar que, não obstante as nossas resistências à perda de poder institucional, no voto e na preservação pontual do veto, estávamos, em muitas áreas, abertos a considerar um alargamento do número de decisões a tomar por maioria qualificada. Além disso, desejávamos ser criativos na possibilidade de criar modelos de integração diferenciada, as chamadas cooperações reforçadas, a possibilidade de alguns Estados poderem estar juntos na execução de algumas políticas, com outros a não quererem ir tão longe.

 

Se existir o alargamento da União também a Leste, isso vai complicar um pouco mais as negociações?

 

O projeto europeu começou com seis Estados e vai em 27. Quase todos os alargamentos da União mudaram a sua natureza. Mas é evidente que o alargamento da União Europeia aos países do centro e do leste alterou qualitativamente a União. Por exemplo, alterou a sua política externa. Já não se ouve falar de política mediterrânea na União Europeia. Já não ouve falar de relações com a América Latina. Já não se ouve praticamente falar das relações com a África. O peso do centro e do leste europeu, e a concentração de interesses no confronto com a Rússia, bem como na questão ucraniana, e mesmo na questão do Médio Oriente, levou a uma deslocação geopolítica de interesses que mudou a natureza da União. 

 

Quanto aos novos possíveis alargamentos de que se fala, nomeadamente aos Balcãs, o único que traria um impacto muito significativo seria o da Ucrânia. Lembro que este passaria a ser o mais extenso país da União e que a aplicação à Ucrânia das políticas atuais da União, nomeadamente a Política Agrícola Comum, mesmo com fases transitórias, implicaria um aumento exponencial do orçamento comunitário. Ora se nós estamos com imensa dificuldade em discutir as contribuições para a defesa, somar a isso um aumento brutal das contribuições nacionais para suportar a integração ucraniana levaria, inevitavelmente, a uma redução drásticas das políticas e apoios sociais. Haverá um ambiente político que permita fazer isso sem revoltas sociais nos 27? E será possível fazer aceitar isso nos parlamentos desses Estados, que têm de votar unanimemente tais medidas? Confesso que duvido.

 

Mudando agora para a política internacional, um tema que se tem falado muito nos últimos tempos é do Presidente Trump e da questão da Gronelândia. Que impacto é que isso poderá ter nas relações transatlânticas? 

 

Estamos perante um presidente americano imprevisível, com uma lógica de “quero, posso e mando”. Estamos perante uma situação inédita no quadro internacional, que é um Presidente que, no seu próprio país, conseguiu juntar, pela primeira vez, todos os poderes - a vitória da presidência, com maioria de votos, o que lhe confere uma legitimidade grande, com a maioria dentro da Câmara dos Representantes, com a maioria dentro do Senado e com o Supremo Tribunal Americano, com a maioria. Ora a América não é um país qualquer:  é o país mais poderoso do mundo, com as mais poderosas Forças Armadas do mundo, a maior potência económica mundial. Ora é esse mesmo país que afirma, pela voz desse Presidente, um total e completo desrespeito pela vontade dos outros, pela vontade de todos quantos se possam opor à vontade americana. Na minha opinião, isto é de uma gravidade sem precedentes. Traduz uma mudança quase sistémica e epistemológica relativamente àquilo que foi a posição americana no passado. Os americanos foram os inspiradores da nova ordem internacional após a 2ª Guerra Mundial. Essa ordem internacional era baseada nas Nações Unidas, às quais os americanos por vezes se ligavam, por vezes se desligavam, conforme lhes desse jeito, faziam uma espécie de multilateralismo à la carte.  A partir do momento em que os Estados Unidos dizem que é a sua maior força que determinará as regras de poder à escala mundial, isso significa colocar todo esse normativo que os Estados Unidos nos tinham ensinado a respeitar fora do cenário. E ao fazerem-no, criam uma ordem internacional diferente, que vai inclusivamente, para alguns outros poderes mundiais, pensar que, se tiverem força para atuar numa certa zona, poderem fazê-lo. E agora levanta-se uma questão: quem é que pode travar o poder unilateral dos Estados Unidos? Será a Europa e os seus aliados ocidentais? Não, a Europa e os seus aliados ocidentais estão “taken for granted”, como se costuma dizer. Não têm força, não têm vontade, porque são incapazes de gerar uma vontade para se opor aos Estados Unidos. Nem têm força militar, nem vontade para se opor aos Estados Unidos. Será a Rússia? A Rússia provavelmente vai encontrar uma forma de acomodação com os EUA, a preço de algum espaço na Ucrânia. Será a China? De facto é o único poder que, não no poder militar, mas ao nível de poder económico, pode confrontar os Estados Unidos. 

 

Perante tudo isto, Trump está à solta. Com uma exceção possível, que é o voto futuro do povo americano, o mesmo que o elegeu. Isto é, Trump, daqui a dois anos, vai ter “midterm elections” e esse sufrágio vai, muito provavelmente, de acordo com tudo aquilo que a experiência passada provou, e a menos que a democracia nos Estados Unidos entretanto colapsasse, dificultar a posição do Presidente, como aliás já se viu, ligeirissimamente, na difícil eleição do novo Presidente da Câmara dos Representantes. Se Trump vier a perder a Câmara dos Representantes, isso vai, de certa maneira, atar-lhe politicamente as mãos. Além disso, não pode ser reeleito, porque as regras americanas não o permitem.

 

A questão da Gronelândia? A Gronelândia já tem lá americanos, já há ali uma base americana, assente num acordo entre Dinamarca e os EUA. Gostava de lembrar que a Dinamarca não é, para os EUA, um país qualquer na Europa. Fala-se disso muito pouco, mas há um acordo de natureza secreta, em matéria de "intelligence” entre os Estados Unidos e a Dinamarca. E portanto, o que vai acontecer é que este “bullying”, porque isto é puro “bullying”, vai ter como consequência os dinamarqueses darem mais espaço aos americanos na Gronelândia. É isso que Trump quer, para dar oportunidades de negócios aos seus amigos do dinheiro. Vale a pena começar a chamar-lhes o nome devido: são os oligarcas americanos.

 

Ainda na questão europeia e nas relações transatlânticas, será que a Europa está na altura de ter a sua tão discutida autonomia estratégico-militar?

Uma completa autonomia estratégico-militar europeia afigura-se-me um sonho irrealizável. Em primeiro lugar, é uma evidência que, no imediato, se os Estados Unidos saíssem da Nato, a Nato parava. Há importantes valências dentro da Nato que só existem e só podem ser exploradas porque os Estados Unidos lá estão. Não é possível substituí-las, ou melhor, ao que parece, seria possível a Europa vir a criá-las, mas apenas num prazo de 30 a 40 anos, e só se houvesse uma vontade coletiva simultânea para isso. E ela não existe. A Europa não é um país, são 27 países, com 27 agendas de interesses, com 27 agendas de preocupações, com 27 governos diferentes, com 27 fronteiras diferentes, com imaginários diferentes sobre o que é a própria Europa, os seus desafios e finalidades. Cada país tem a “sua” Europa. E só pontualmente essas Europas coincidem.

Há uns anos, fui pela Fundação Gulbenkian à Estónia, para participar num exercício comparado de perceções sobre a ideia europeia e os problemas da Europa. A certa altura, abordámos a hierarquia desses mesmos problemas europeus, na perspetiva de cada país. O chefe do grupo estónio disse então: "Nós temos 10 problemas. O primeiro chama-se Rússia, o segundo chama-se Rússia, o terceiro chama-se Rússia, e, quanto ao quarto, talvez possamos hesitar se é Rússia ou se é outra coisa qualquer”. E isto foi bem antes da invasão da Ucrânia! Ora, se perguntar a mesma coisa em Portugal ou em Malta ou na Irlanda, a hierarquia dos problemas não é a mesma. Quero com isto dizer que cada um de nós está na Europa com uma agenda e com um empenhamento diferentes.  Às vezes, há momentos de sintonia. Por exemplo, a Europa costuma reagir bem aos sustos que sofre. Costuma-se dizer que os “pais” da Europa unida foram Robert Schumann e Jean Monnet. Mas alguns, ironicamente, acrescentam José Estaline a esses fundadores. Porquê? Porque a Europa também foi criada pela existência da Cortina de Ferro, pelo medo do mundo soviético que estava do outro lado. A Europa une-se pelo medo, como se viu no caso recente da Ucrânia, bem patente na súbita mudança da Suécia e da Finlândia quanto à NATO. Mas não estará a Europa ainda sob esse choque? Talvez, em parte, mas isso não me parece ser suficiente para provocar uma agregação de vontades políticas, com consequências institucionais significativas. Porquê? Porque nós somos, como disse, 27 países, com parlamentos diferentes, com ciclos eleitorais não coincidentes.

Veja-se, por exemplo, a questão das relações da Europa com os Estados Unidos. A relação da Europa com a América só aparentemente é unívoca. Os países europeus não olham os EUA da mesma forma e relacionam-se com eles cada um a seu jeito. Veja a senhora Meloni, que foi já “pedir batatinhas” a Donald Trump. Aposto que vamos assistir aos líderes europeus serem “pescados à linha” por Trump, porque ficarão seduzidos se Trump lhes telefonar. O poder é uma coisa verdadeiramente afrodisíaca. E a Europa coletiva, a União Europeia, vai ser a grande vítima de tudo isto. Aguardemos pelas medidas de natureza aduaneira que a América vai impor. Na parte militar e de segurança, a Europa vai ter de fazer o que Trump quiser. Como já acontece com o gás, que a Europa compra aos Estados Unidos a preços muitos mais caros do que comprava à Rússia. E vamos assistir a uma crescente pressão para a aquisição de armamento americano, com a correspondente pressão para gastar uma maior percentagem dos orçamentos nacionais em defesa. O poder tem muita força. E o poder americano tem, neste momento, uma força desmesurada para ser possível uma gestão democrática do mundo.

E qual é o grande desafio que a União Europeia vai enfrentar, para além da guerra na Ucrânia? A competitividade. O relatório Draghi é um excelente mostruário daquilo que é a dificuldade que a União Europeia tem, num quadro de globalização ameaçada, de garantir uma capacidade de afirmação económica à escala global, que seja competitiva com outros atores, que se lhe opõem ou que com ela rivalizam. A União Europeia tem um desafio muito complicado, que é a dificuldade de, ao mesmo tempo, conseguir defender-se, manter o seu modelo social e ser competitiva. Tudo isto num ambiente com pulsões migratórias e medos de vária natureza. E, se não conseguirem esta “quadratura do círculo”, os governos mais moderados perderão legitimidade perante os seus cidadãos, que se sentirão tentados a dar oportunidade a propostas extremistas. E aí terá sucesso o populismo, o autoritarismo a demagogia.

 

E a economia verde poderá ser, digamos, um novo modelo económico para a Europa?

Tenho um forte sentimento de que sim, mas não tenho um conhecimento especializado sobre o tema. Na vida, fui aprendendo a não ter opiniões fáceis sobre temas complexos, sobre áreas que não domino. A sensação que tenho é que o desafio da economia verde não é apenas importante para a Europa, é vital para o futuro do mundo, sem o que entraremos numa espiral de tragédia que, pelos vistos, pode ser ainda mais acelerada do que aquilo que se estava à espera. A Europa tem feito coisas muito importantes nessa área, saltos decisivos, quer sob o ponto de vista de avanços tecnológicos, quer na criação de uma nova cultura comportamental. Infelizmente, e não obstante o excelente trabalho promovido pela Comissão Europeia, constata-se que há forças dentro das instituições, nomeadamente no novo Parlamento Europeu, que começam a “remar” num sentido contrário, apoiando tendências mais regressivas em matéria agenda verde. Porquê? Por meros motivos de natureza económica, para terem ganhos de natureza imediata. É aqui que a grande questão se coloca: se estamos interessados no lucro ao fim do mês ou se nos interessa evitar o fim do mundo. Temos de optar.