29 de abril de 1999

Agenda 2000: um balanço

Há um ano, no auge da nossa actividade para conseguir modificar os termos de referência da proposta da Agenda 2000, convidei Leonardo Ferraz de Carvalho para estar presente num almoço com a comissária Wulf Mathies. Procurava dessa forma tentar demonstrar à Comissão Europeia que aquele tema atravessava horizontalmente diversos sectores da sociedade portuguesa e que a nossa teimosia negocial não era apenas uma mera obstinação sectária de raiz oficial ou de oportunidade política.

No final desse almoço - que, aliás, não foi nada fácil ... - o Leonardo Ferraz de Carvalho disse-me que o encontro lhe confirmara a percepção de que algo estava a mudar, e muito rapidamente, na filosofia europeia e que, com a Agenda 2000, Portugal estava no termo da sua participação numa corrida de estafetas. A partir de 2006, o testemunho já não seria nosso, mas havia que garantir que a nossa parte da corrida tinha um bom resultado. Esta clarividência era própria de um homem que sabia ver para além do seu tempo. Hoje só posso concordar com ele, embora lho não possa dizer.

Não creio que haja já hoje a real percepção, na sociedade portuguesa, que o saldo da recente Cimeira de Berlim vai muito para além da mera contabilização dos fundos - embora naturalmente estes continuem a ser essenciais para colmatar aspectos de natureza infraestrutural e de formação, que nos podem permitir uma mais rápida aproximação à média europeia.

Sobre este tema, sobre a Agenda 2000, creio que já está dito quase tudo e não é minha intenção entrar em qualquer debate. Os resultados aí estão e genericamente são considerados bastante positivos, havendo mesmo quem duvide da capacidade de se gastar todo o dinheiro obtido !

Sobre este tema, queria apenas dizer que enfrentámos e superámos um ambiente à partida muito negativo, que reforçámos ligeiramente a nossa posição na política estrutural, que melhorámos significativamente, mas ainda de forma insuficiente para os nossos objectivos, os nossos ganhos em matéria agrícola e que, no fundo, criámos as condições financeiras para um processo sustentado de aproveitamento de ajudas decisivo para o nosso futuro.

Mas em Berlim, ficaram claras outras coisas e isso tem a ver com a tal mudança de filosofia que Leonardo Ferraz de Carvalho já pressentia. Estamos hoje a assistir a um processo de alguma ambição no desenvolvimento do projecto europeu - nomeadamente no plano da União Económica e Monetária (UEM), no domínio da Defesa e da Segurança e nos reflexos que dessas duas dimensões podem decorrer para a união política. Mas, um tanto paradoxalmente, essa ambição confronta-se com uma aparente tendência para a estagnação em outras áreas de integração.

Aquilo que se pode ler de Berlim, e da discussão que conduziu aos seus resultados, parece apontar para uma orientação maioritária no sentido de reduzir drasticamente as políticas de financiamento central da União Europeia. Talvez o resultado final de Berlim não traduza ainda, de forma precisa, a concretização desta tendência. Mas é preciso ter consciência que esse é o caminho que parece traçado.

A razão de ser de tudo isto parece, em si mesma, relativamente simples: dada a importância estratégica de assegurar um alargamento político-geográfico da União, e dada a impossibilidade de levar a cabo esse mesmo alargamento mantendo o corpo de políticas que actualmente funciona a Quinze, sem incorrer num aumento exponencial de recursos, o único modelo sustentável é a passagem para uma União muito mais normativa e de natureza reguladora.

É uma opção pela “Europa barata”, que acabou por se acentuar pela dificuldade de encontrar um sucedâneo ao actual modelo de financiamento, em que alguns contribuintes líquidos continuam a considerar-se maltratados face a outros. O resultado deste raciocínio vai, a prazo, no sentido de reduzir drasticamente o peso das despesas agrícolas e atacar ou reorientar, de forma profunda, a rubrica das despesas estruturais. E, com estes dois items, importa ter presente que estamos já a falar de cerca de 85% do orçamento comunitário.

As consequências desta nova filosofia parecem fáceis de prever: o alargamento far-se-á com uma muito menor coesão e o caminho para a dualização permanente da Europa acabará por prevalecer. Se isto é, ou não, compatível com o espírito dos tratados, essa é uma outra questão. O que provavelmente teremos de vir a concluir é que, porventura, este é o único caminho para prosseguir em conjunto, no actual nível de disponibilidade política dos países europeus.

Mas o mais interessante de todo este panorama é que, em paralelo, a Europa da União caminha para a consciência da necessidade de se dotar de meios para reforçar a sua segurança estratégica, seja no plano económico-financeiro, seja no plano político-diplomático. Há a percepção evidente de que casos como o do Kosovo, ou de outras zonas de tensão emergente próximas das suas fronteiras, não podem ficar sem resposta, nomeadamente em termos de enquadramento político-económico.

Os sinais dados a países como a Albânia ou a Macedónia revelam que a União está prestes a criar um segundo nível de relacionamento institucional, talvez diferente daquele que abriu caminho aos próximos alargamentos. A meu ver, não vamos a caminho de um apressar dos alargamentos; o que poderemos é estar a iniciar um novo modelo de articulação, longe da integração plena, mas susceptível de servir de “chapéu” político para um relacionamento mais profundo da União Europeia com novos Estados.

Mas, a este esforço, outro se acrescenta. Com efeito, há a consciência que importa reforçar economicamente a União, por forma a conjugar posições para o novo ciclo mundial de liberalização, que já não é apenas comercial, por forma a garantir um papel central à Europa na regulação do processo de globalização.

Como é que é possível compatibilizar tudo isto?

A primeira constatação a fazer é que há hoje, na Europa, muito mais perguntas do que respostas e que muito do que se vai fazendo é uma espécie de navegação à vista. Sobre isso não vale a pena ter ilusões e só os inocentes, ou os cultores das teorias conspirativas, é que acham que, por detrás de tudo isto, há um plano bem gizado que está a ser seguido. Não há. Há uma avaliação de grandes tendências, há uma mobilização diferenciada, país a país, face a alguns objectivos e isso aponta a que a Europa do futuro venha a acabar por ser o reflexo institucional dessa mesma diferenciação. Isto é: os países europeus estão cada vez mais empenhados apenas no financiamento e na execução de políticas que correspondam a modelos de agregação com objectivos comuns mais directos, na lógica da tal geometria variável que o Tratado de Amesterdão já consagra.

O que pode vir a acontecer é a possibilidade de virem a multiplicar-se, no futuro, os modelos de cooperação reforçada entre um número limitado de Estados, eventualmente assentes num financiamento comunitário bastante baixo, mas, na prática, geridos através de um “financiamento por objectivos”, saído dos orçamentos nacionais dos países interessados e com as consequências que se adivinham em termos da diferenciação no processo decisório. Não quero entrar em futurologias, mas a área da Defesa poderá ser o primeiro desses modelos.

É óbvio que isto tem consequências na coesão do projecto global europeu. Daí que, não obstante a importância estratégica do projecto político do alargamento, se possa verificar uma potencial quebra de solidariedade financeira face a países cujo nível de desenvolvimento os não situa no mesmo patamar de interesses. E porque o processo integrador é cada vez mais acompanhado pelas opiniões públicas, porque a aceitabilidade dessas mesmas opiniões é uma condição sine qua non de todos os futuros passos, o ritmo e a disponibilidade integradora dos vários Estados variará na razão directa da sua percepção de que tal corresponde aos interesses que conseguem fazer passar junto da sua própria população, em função da respectiva agenda imediata de preocupações.

É um exercício permanente no sentido de demonstrar a “utilidade” da Europa, de fazer perceber que aquilo que a União Europeia representa tem impactes directos, e facilmente perceptíveis, junto do cidadão comum.

Mas voltaria um pouco atrás. Em Berlim assegurámos o financiamento da união até 2006, com quatro elementos essenciais:

A política agrícola é fixada um pouco mais abaixo do que estava planeado, mas, mesmo assim, muito acima daquilo que será sustentável se ela viesse a aplicar-se em pleno a alguns países candidatos. Além disso, esta política agrícola dificilmente será compatível com as futuras regras da Organização Mundial de Comércio, cujo novo ciclo liberalizador começa daqui a meses.

Na política estrutural - que, ao contrário do que muitos pensam, sempre beneficiou mais os países ricos do que os países pobres da União - houve um esforço de redução global e de maior reorientação em favor dos países mais ricos. A questão está em saber se o modelo actual ainda assim é extensível, sem mudanças, aos novos países aderentes, por exemplo, se esses mesmos países podem vir a usufruir das políticas de solidariedade de que os actuais Estados da Coesão beneficiaram.

Quanto ao alargamento, há para ele verbas orçamentadas a partir de 2002. A questão está em saber: é realista pensar em 2002, tendo em conta que decorrerá, pelo menos, um ano e meio após o fecho das negociações, para efeitos de ratificações por todos os parlamentos dos Quinze ? Quantos e que países entrarão ? Em qualquer caso, as verbas previstas seriam suficientes? Quem, de facto, ganhará com qualquer atraso no alargamento ? Como as verbas eventualmente não gastas, a partir de 2002, não revertem para as despesas dos Quinze, só há uma dedução a fazer: a ter lugar qualquer atraso do alargamento, ele só beneficia os contribuintes líquidos.

Finalmente, quanto às chamadas políticas internas (em que cerca de 2/3 vai para a Investigação & Desenvolvimento) e às relações externas da união (Mediterrâneo, América Latina, etc.), verifica-se que o que sai de Berlim revela uma ambição muito escassa. Neste caso, qual é o futuro de políticas como aquelas em que se apoia o processo mediterrânico?

Perante este cenário, não isento de dúvidas, mas que, pelo menos, fixa os termos de referência para os tempos mais próximos, e que, de certo modo, desdramatiza por algum tempo o debate sobre os meios, há a certeza de que vamos entrar num período novo de discussão, que se prolongará pelos próximos anos e que - convém recordá-lo - marcará a Presidência portuguesa da União em 2000.

Esse período será, a nosso ver, centrado em quatro grandes temas:

A questão das políticas de acompanhamento do euro, com pressões para uma comunitarização ou rápida harmonização em algumas áreas colaterais à UEM;

Os problemas de segurança interna, com esforços de cooperação policial, de combate à imigração, de tentativas de políticas comuns de regulação da questão dos refugiados;

A reforma institucional, com pressões para uma redefinição do poder relativo dos Estados no processo decisório, quer através do reforço do argumento demográfico, quiçá mesmo tentando ligar esse novo desenho a questões como a diferenciada contribuição financeira de cada Estado para os cofres da União;

E, finalmente, e se bem interpreto os sinais das últimas semanas, vamos assistir muito proximamente a uma iniciativa nova em matéria de Defesa Europeia, consonante com o papel efectivo de alguns países no contexto da actual crise do Kosovo e no âmbito do “grupo de contacto” que tem feito a ponte entre a União e os EUA, por um lado, e a Rússia por outro.

Tudo isto serve para dizer que vamos entrar num movimento muito claro no sentido de uma reconversão de prioridades dentro da Europa. Para um país como Portugal, há que estar muito atento e participante nesse contexto. Sob pena de nos marginalizarmos de forma irrecuperável, temos de estar presentes em todo este esforço de nova recentragem europeia, mesmo que essa integração comece a não abranger todos os países - o que é uma tendência que nos parece inescapável. Recordo que o fizemos, no passado, com Schengen, e, mais recentemente, com o euro. Temos de garantir que conseguimos acompanhar todos esses modelos de integração diferenciada no futuro.

Não podemos esquecer que temos dois handicaps específicos, que só um certo voluntarismo nos pode evitar agravar: um diferencial de desenvolvimento económico-social a colmatar e uma situação geográfica periférica, à partida muito desfavorável.

Para isso, no nosso caso, e talvez mais do que no de muitos outros, são necessárias duas coisas essenciais: visão europeia e vontade política.

A visão europeia é aquela que decorre da leitura que fazemos da nossa participação no projecto integrador. Temos uma agenda específica de interesses nacionais a defender, mas não ficamos por aí: trabalhamos sempre em todos os domínios que percebamos como importantes para o próprio projecto europeu, mesmo que não imediatamente ligados aos interesses portugueses. E é preciso entender que o empenhamento demonstrado por Portugal na questão do combate ao desemprego na Europa, no apoio sem equívocos ao Alargamento da União, na contribuição para o esforço de pacificação da Bósnia-Herzegovina ou através de uma intervenção activa na procura de soluções para a reforma do sistema dos “recursos próprios” da União constituíram factores de grande credibilização do nosso país na cena europeia nos últimos anos.

Tudo isto não foi, aliás, despiciendo no nosso sucesso na difícil batalha da Agenda 2000. No futuro, temos que continuar a ter uma perspectiva dinâmica do nosso próprio interesse nacional no contexto europeu, sem o que teremos apenas a força da nossa reduzida dimensão como país. Daí a necessidade de garantir, em permanência, uma vontade política interna, que vá para além do governo e se projecte também ao nível dos agentes económicos e sociais, que seja mobilizadora para as exigências que se nos vão colocar no plano europeu. Essa vontade tem de ser capaz de fazer perceber ao país que, muito provavelmente, será necessário dar passos mais ousados no campo da União Política e que temos de estar abertos para tal, sem sentimentos de nacionalismo mesquinho. Se não conseguirmos mobilizar esta vontade política interna, alguns dos esforços até agora realizados poderão perder-se e o nosso país pode arriscar-se a um novo ciclo histórico de periferização.

O que aí vem, em matéria de Europa política, pode ser um projecto diferente e até pode ter algumas características que o diferenciem negativamente face ao processo integrador passado, que tínhamos como bom no horizonte da nossa adesão. Mas é ainda, com certeza, um projecto muito interessante e o único que pode permitir a um país como Portugal situar-se num movimento de desenvolvimento económico e social compatível com as aspirações dos portugueses a uma vida melhor, num quadro de estabilidade, de modernidade e de paz.



(Baseado na intervenção na XII Conferência Anual do “Semanário Económico”, realizada no Hotel Ritz, em Lisboa, em 29 de Abril de 1999. Publicado naquele jornal em 7 de Maio de 1999.)

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