O discurso político europeu, no período que sucedeu à assinatura do Tratado de Maastricht, foi muito marcado pela preocupação de reforçar a legitimidade da própria União Europeia, promovendo reformas que pudessem melhorar a respectiva aceitação junto dos cidadãos. A consciência de que não era possível continuar a construir uma integração à revelia desses mesmos cidadãos mas, bem pelo contrário, de que era progressivamente essencial garantir o seu apoio consciente para os futuros desenvolvimentos da União, ficou bem patente nos trabalhos preparatórios e na agenda da Conferência Intergovernamental que, a partir de 1996, preparou a revisão do Tratado da União Europeia.
Nesta linha, a Conferência procurou apontar caminhos para melhorar a eficácia de uma das áreas onde os resultados do funcionamento do Tratado de Maastricht haviam sido reconhecidamente escassos: a Justiça e os Assuntos Internos, área vulgarmente conhecida como o Terceiro Pilar do Tratado da União Europeia. Sob esta designação, agrupa-se um conjunto de questões directamente relacionadas com a liberdade de circulação de pessoas e com a segurança interna do espaço europeu.
Diversas explicações poderiam ser avançadas para os fracos resultados até então alcançados, embora, no essencial, tal pareça assentar no facto de se tratar de matérias que tocam de perto o núcleo da soberania nacional e a esfera de protecção dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É óbvio que, em domínios tão sensíveis, a disponibilidade para uma harmonização é menor do que a que existe nas áreas de natureza económica, onde se centraram os primeiros esforços integradores europeus.
Mas, em contraponto, problemas como o aumento da criminalidade organizada, o terrorismo, o tráfico de drogas e outras práticas ilícitas de natureza internacional ocupam hoje a atenção dos cidadãos europeus e constituem-se em preocupações para as quais é exigida uma resposta a nível colectivo, pela óbvia impossibilidade de debelar tais problemas numa perspectiva puramente nacional. Por outro lado, as questões que se prendem com o acesso e fixação de cidadãos de países exteriores à União no seu território, quer por fluxos migratórios regulares, quer por motivos humanitários, são igualmente temas de crescente relevância, até porque, não raramente, têm incidências políticas nos vários Estados que não é possível ignorar.
Durante os trabalhos da Conferência Intergovernamental que decorreu em 1996 e 1997 ficou claro que, se a União pretendia aumentar a sua credibilidade perante os cidadãos, teria de demonstrar capacidade para enfrentar, de forma efectiva e criativa, o conjunto de problemas que estão hoje na origem de um crescente sentimento de insegurança pública em todas as sociedades europeias, embora manifestados em graus cuja diferenciação deriva das situações específicas que enfrentam.
Assim, se olharmos para o Tratado de Amesterdão e para os avanços no mesmo consagrados, verificaremos que foi precisamente a área da Justiça e dos Assuntos Internos que testemunhou saltos mais significativos em relação ao passado e em que foi possível desenhar, ainda que com períodos transitórios necessários para acomodar a aculturação dos diversos regimes nacionais, alguns procedimentos de aproximação de tratamento comum no futuro, com vista à criação de um espaço único onde venha a ser assegurada a livre circulação de pessoas, com segurança e com justiça.
Para explicar o que evoluiu com Amesterdão é difícil não recorrer a alguma tecnicidade de linguagem. Tentaremos, contudo, optar pela simplificação das ideias, sem fazer concessões ao rigor.
Convém notar, como princípio geral, que o novo Tratado se propõe assegurar a “manutenção e desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade”.
Para dar corpo àquele princípio básico, o novo Tratado introduz um conjunto significativo de alterações àquilo que ficara fixado em Maastricht. Um desses meios, e aquele que, a nosso ver, consubstancia a mais expressiva das alterações ao Tratado de Maastricht, consiste na evolução do tratamento de certas matérias que antes eram abordadas no chamado Terceiro Pilar - em que as decisões são tomadas exclusivamente por unanimidade, até agora sem um papel relevante para a Comissão Europeia e em que o método de articulação intergovernamental é a regra.
Embora de forma limitada, e com um escalonamento prudente no tempo, Amesterdão aponta no sentido da progressiva “comunitarização” de certas matérias, isto é, da possibilidade da Comissão Europeia ter um direito de iniciativa através de propostas legislativas e, em determinadas circunstâncias e condições, poder haver o recurso às votações por maioria qualificada. É aquilo que se designa, em jargão europeu, a integração no Primeiro Pilar, o Pilar comunitário. Estão neste caso questões como as relativas à passagem das fronteiras externas da União, ao asilo, à imigração, à protecção dos direitos dos nacionais de países terceiros, à cooperação judiciária em matéria civil e à cooperação entre as administrações nacionais nesta área.
Para estas matérias, o Tratado de Amesterdão prevê que, uma vez findo um período transitório de cinco anos, o Conselho de Ministros possa vir a decidir, por unanimidade, que, no futuro, as decisões legislativas neste domínio passem a ser adoptadas por maioria qualificada. É um salto talvez modesto, até porque não há a certeza dos Estados membros virem a assumir uma abertura no termo do período de cinco anos, mas este foi o denominador comum que Amesterdão pôde consagrar.
O avanço para a comunitarização traz, porém, alguns desenvolvimentos imediatos, embora sempre sob o método da unanimidade. Com efeito, a Comissão Europeia passa, desde já, a dispor de um direito de iniciativa para apresentar propostas legislativas, em paralelo com os Estados-membros, e o Parlamento Europeu será consultado antes da tomada de decisão. Após decorrido o período transitório de cinco anos, e na lógica normal do funcionamento do método comunitário no chamado Primeiro Pilar, apenas a Comissão poderá apresentar propostas e o envolvimento do Parlamento Europeu poderá ainda vir a ser maior.
Por fim, e no sentido de garantir o controlo jurisdicional da actuação das instituições comunitárias, o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias poderá ser chamado a pronunciar-se sobre a interpretação destas novas disposições, bem como sobre a validade ou interpretação dos actos adoptados em sua execução, sempre que essa questão seja suscitada num tribunal nacional cujas decisões sejam insusceptíveis de recurso. Para os direitos dos cidadãos este é um salto qualitativo muito importante, dada a necessidade de tutelar jurisdicionalmente qualquer tipo de medida que se situe na esfera comunitária.
Todas estas inovações vão no sentido de facilitar e acelerar o processo de adopção de medidas comuns em áreas como os vistos, o asilo, a imigração e várias outras políticas relativas à livre circulação de pessoas, contribuindo para um mais rápido estabelecimento de um espaço europeu sem fronteiras internas.
Registe-se que estas disposições não são, por ora, aplicáveis ao Reino Unido, à Irlanda e à Dinamarca que, por razões de ordem interna e após laboriosas negociações, conseguiram ver consagrada a sua “exclusão” em Protocolos anexos ao Tratado, ficando a sua eventual interligação nas novas disciplinas comunitárias dependente da sua vontade unilateral. Esta evidente fragilidade do Tratado, ao deixar de fora alguns países e, no fundo, ao consagrar uma “geometria variável” que não engrandece nem prestigia o sistema, tem porém uma contrapartida não despicienda. Com efeito, passando este património legislativo em evolução a constituir-se como um elemento central da União, ele estará inevitavelmente sobre a mesa das negociações dos próximos alargamentos da União, o que garante a necessidade dos futuros aderentes se ligarem à nossa cultura comum neste domínio, o que não deixa de constituir um elemento indutor de confiança e estabilidade em todo o espaço da União do futuro.
Mas não é só na passagem progressiva do Terceiro para o Primeiro Pilar que se regista uma evolução. O que resta do Terceiro Pilar, onde ainda ficaram, nomeadamente, as medidas de prevenção e combate à criminalidade - que os Estados membros entenderam dever manter sob tratamento intergovernamental - acaba também por sofrer uma evolução no Tratado de Amesterdão.
Através deste renovado Terceiro Pilar, o novo Tratado propõe-se “facultar aos cidadãos um elevado nível de protecção num espaço de liberdade, segurança e justiça” nas áreas da prevenção e combate à criminalidade, em especial o terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de drogas e de armas, a corrupção e a fraude. Para tanto, será reforçada a cooperação entre os Estados-membros nos domínios policial e judiciário em matéria penal. No domínio da cooperação policial, é designadamente atribuída especial relevância à Europol (Serviço Europeu de Polícia), que viu as suas competências aumentadas.
Mas também em termos dos instrumentos jurídicos o Terceiro Pilar sofre uma evolução assinalável. De facto, e embora, como se disse, esta cooperação se mantenha num nível estritamente intergovernamental (o que, repete-se, implica que as decisões sejam tomadas por unanimidade), foi desde já generalizado o direito de iniciativa da Comissão e foram criados novos instrumentos jurídicos mais vinculativos, como é, por exemplo, o caso das “decisões-quadro”, em tudo semelhantes às directivas comunitárias de harmonização. Além disso, estabelece-se um mecanismo de simplificação que, mediante algumas condições, permite a entrada em vigor antecipada das Convenções firmadas entre os Estados membros, por forma a ultrapassar os bloqueios que os longos processo de ratificação nacionais por vezes acabam por causar.
Além disso, e com o intuito de garantir maior transparência e democraticidade à actuação da União nestes domínios, o Parlamento Europeu passa a estar associado ao processo de adopção dos actos em execução do Terceiro Pilar do Tratado, através de um processo de consulta prévia. Os Parlamentos nacionais também vêm a sua intervenção garantida, ao abrigo de um Protocolo anexo ao Tratado, o que consagra a sua desejável associação crescente a uma área em que os direitos dos cidadãos que representam necessitam de ser permanentemente protegidos, o que também justificou a atribuição de competências ao Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, que as não detinha no quadro do Tratado de Maastricht.
Finalmente, uma referência ao Acordo de Schengen, que o novo Tratado acolhe com o respectivo património legislativo, naquilo que constitui a evolução natural de um sistema que, desde 1985, os Estados signatários sempre assumiram como desejavelmente alargado a todos os países das então Comunidades Europeias.
Portugal teve uma activa participação e um grande empenhamento na definição do modelo que veio a ser consagrado no Protocolo e, muito em particular, estimulou, no quadro da sua Presidência de Schengen em 1997, o esforço que muitos países partilharam no sentido de garantir que o acervo de Schengen pudesse integrar o corpo legislativo da União. Doravante, os treze membros da União signatários de Schengen (o Reino Unido e a Irlanda dispõem de um direito selectivo de “inclusão” nas dimensões de Schengen em que entendam participar) ficam autorizados a instaurar entre si uma “cooperação reforçada” nos domínios abrangidos por aquele acordo, podendo prosseguir autonomamente o seu trabalho de aprofundamento, mas agora já no quadro jurídico e institucional da União Europeia. Também aqui se verifica a vantagem do que foi construído em Schengen poder integrar a negociação dos próximos alargamentos, com as vantagens atrás já referidas.
São estes, no essencial, os aspectos de evolução que o novo Tratado regista na área da Justiça e dos Assuntos Internos. Para alguns, serão tímidos e poucos ambiciosos passos, insusceptíveis de garantir, desde já, um quadro referencial mínimo para a verdadeira instituição de uma área europeia de liberdade, de segurança e de justiça. Para outros, entre os quais nos contamos, os avanços ora conseguidos, e aqueles que estão delineados como possíveis e desejáveis, constituem um interessante caminho num domínio reconhecidamente de grande sensibilidade e delicadeza.
Portugal, que é um Estado que não necessita de ter síndromas de risco nas partilhas de soberania que efectua, procurou e continuará a procurar avançar de forma integrada nestas áreas, preservando sempre um equilíbrio entre as dimensões de natureza securitária que lhes estão associadas e a permanente afirmação de uma cultura de protecção dos direitos dos cidadãos, na linha de uma ligação e desejo de participação no desenvolvimento de uma cultura europeia de liberdades.
(Publicado em “Europa – Novas Fronteiras” (nº 2, 1997), Centro Jacques Delors, Lisboa)
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