1 de janeiro de 2000

Reunificar o continente


Foi no seu francês impecável que o meu amigo romeno se despediu de mim, no final daquela tarde de Dezembro de 1997, no átrio do edifício pálido que a Europa tem como sede no Luxemburgo. O Conselho Europeu terminara e todos nos apressávamos para as conferências de imprensa da praxe, que antecedem o regresso às capitais. Das suas palavras breves ressoou-me a amargura pela decisão que a União acabara de tomar, ao dividir os candidatos ao alargamento em dois grupos distintos, abrindo rapidamente a uns as portas da negociação, deixando outros no limbo de uma avaliação futura com calendário imprevisível. “Tu sais, vous avez batî un nouveau mur et maintenaint il faut que nous le justifions chez nous” - atirou-me à cara, num sorriso triste mas sem azedume, sabendo que Portugal havia defendido uma posição diferente da que acabara por prevalecer.

Tentáramos, então, sem sucesso, evitar que se criasse uma nova fronteira psicológica que viesse a afectar os anseios de quantos viam na União o factor decisivo para a sedimentação das suas jovens e frágeis estruturas democráticas e, no fundo, a justificação para o custo das reformas que, com elevado preço social e político, os seus Governos procuravam levar a cabo. A circunstância desse meu amigo se exprimir numa língua que recordava a nossa raiz latina comum, deu-me, então, uma mais dramática consciência do divórcio artificial que a decisão colectiva acabara por consagrar.

Lembrei-me dessas palavras e dessa tristeza quando, há dias, em Helsínquia, a Europa finalmente reverteu por completo a decisão de há três anos e decidiu que os candidatos que então haviam ficado à porta da negociação poderiam, finalmente, iniciar a discussão do seu ingresso no clube comunitário. E, tenho que confessar, a certeza de que esse momento iria ter lugar durante a Presidência portuguesa da União deixou-me como que vingado da episódica derrota das nossas razões na cimeira do Luxemburgo.

Cerca de dois anos antes desse momento, num Conselho de Ministros em Lisboa, António Guterres havia relatado o sentimento estranho que detectara da parte de responsáveis de países candidatos à adesão, ao constatar que Portugal era visto como uma espécie de adversário de primeira linha do alargamento da União Europeia. A sua surpresa fora tanto maior quanto vira na cara dos seus interlocutores uma certa incredulidade quando afirmara, com a sinceridade que o nosso comportamento posterior só confirmou, que o seu Governo tinha como linha central de política europeia o apoio franco ao processo de abertura da União. Muito mudou desde então e Portugal é hoje visto, sem reticências, como um dos mais activos promotores do processo de alargamento.

Nesse contexto, o nosso país terá necessariamente que assumir a sua quota-parte nos custos económicos que a Europa comunitária suportará para poder acolher aqueles que se revêem no projecto de liberdade e de progresso que a União criou, procurando agora a oportunidade que a nós próprios foi dada a partir dos anos 80.

A nossa mensagem é muito clara: Portugal vê o alargamento como um imperativo de sentido estratégico a que é imprescindível dar uma inequívoca resposta positiva. Nenhuma leitura meramente economicista se poderá sobrepor a esta determinante política e, nunca por nunca, poderá justificar um posicionamento egoísta, cínico e irresponsável, dos que só sabem ler a História pelo prisma do imediatismo. Para Portugal, o alargamento constitui um elemento essencial para a desejável reunificação política do continente, que a abertura definitiva das portas de Brandeburgo nos permite agora ambicionar. 

No quadro europeu, alguns só terão acordado para os riscos do prolongamento das tensões nacionalistas e da ausência de uma estratégia global de promoção da estabilidade do continente quando foram confrontados com a tragédia do Kosovo e se capacitaram que, afinal, a guerra estava muito mais à sua porta do que supunham possível. Se houve alguma resultante positiva dessa tragédia, essa pode ter sido o sobressalto que, de certo modo, os obrigou agora a rever a decisão do Luxemburgo.

Não sabemos ainda quando Bucareste será um capital da União Europeia. Mas, para o meu amigo romeno, o ano que hoje começa é, pelo menos, um tempo novo de esperança e a certeza de poder continuar a contar com aqueles que, como nós, se obstinam em ter do projecto europeu uma visão solidária.

(Publicado no “Diário de Notícias”, 1 de Janeiro de 2000)



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