Um pouco antes de Abril de 1974, comentando o “Portugal e o Futuro” de António de Spínola, Artur Portela Filho escreveu uma carta aberta ao General em que concluía (e cito de memória): “o que V. Exa. diz não é novo; o que é novo é tal ser dito por V. Exa.”. Quando li a já famosa intervenção de Joschka Fischer na Universidade de Humboldt, em Maio de 2000, não pude deixar de me lembrar daquele comentário.
Se é verdade que a intervenção do ministro alemão não trouxe nada de profundamente inovador, em termos teórico-políticos, ao debate europeu, no tocante a propostas de substância sobre o futuro do modelo integrador, ela não deixou, contudo, de constituir uma “pedrada no charco”, por ter sido assumida por um destacado dirigente activo de um dos países mais proeminentes da actual União Europeia.
No entanto, algumas outras questões se colocam: o que levou Fischer a escolher aquele momento para proferir a sua intervenção? Porque correu o risco de arruinar, em termos práticos, a Conferência Intergovernamental que estava então em curso, através da expressão pública de um conjunto de ideias que, inevitavelmente, não poderiam deixar de conduzir o debate europeu para outro patamar e, ao mesmo tempo, tenderiam a secundarizar esse esforço de revisão dos instrumentos comunitários ?
Outras interrogações diferentes se colocam sobre o discurso do Presidente Jacques Chirac, feito cerca de um mês depois. Ainda antes de entrar em pormenores, e se quisermos caricaturar desde já essa diferença, poder-se-á dizer que, se o discurso de Fischer propõe um modelo para uma gestão federal da Europa do futuro, a intervenção de Chirac configura, muito simplesmente, um projecto de intergovernamentalização orientada, sob a elegante aparência de uma proposta de integração europeia reforçada. Em ambos os casos, porém, convém que fique claro que estamos perante duas tomadas de posição que pretendem redefinir o equilíbrio de poderes na Europa do futuro e, não surpreendentemente, que têm como resultante vantagens evidentes para os países que os dois responsáveis políticos representam.
Mas porque não é possível analisar estas propostas sem as projectar no cenário prático daquilo que é hoje a situação no espaço europeu, e no contexto dos interesses que nele se debatem, proponho um bosquejo prévio sobre algumas dimensões que importa ponderar, se se quiser perceber a lógica subjacente às ideias avançadas e, em particular, à respectiva oportunidade temporal.
O desafio político-estratégico
A situação europeia subsequente ao fim do “muro de Berlim” colocou o projecto integrador, que tinha evoluído desde o Tratado de Roma, sob uma pressão de dimensão sem precedentes.
Por um lado, o modelo comum na União Europeia havia-se tornado o mais apelativo para os novos regimes emergentes a Leste porque, no plano ideológico, representava a vitória do padrão de democracia que fora sendo criado no lado ocidental do continente e que, naqueles países, era maioritariamente visto como a opção adequada para sedimentar novos projectos de Estado e de desenvolvimento que poderiam alterar radicalmente essas mesmas sociedades, de cuja direcção haviam sido já afastados os derrotados locais da “guerra fria”, e que eram agora lideradas por figuras sensíveis aos valores que a União consubstanciava. Dar uma resposta positiva ao movimento de aproximação por parte desses países tornava-se, assim, num imperativo irrecusável, não apenas por um sentido de responsabilidade histórica, mas igualmente por razões de natureza e oportunidade estratégica que eram por demais evidentes.
À vontade de aproximação desses países somava-se uma compreensível urgência política - que afastou, desde logo, a consideração de modelos integradores de transição, do tipo Espaço Económico Europeu – perante a qual a Europa comunitária reagiu inicialmente de forma diferenciada, à luz das maiores ou menores proximidades e afinidades geográfico-estratégicas, bem como da hipótese do estabelecimento de potenciais novas áreas de influência, com possível indução de mudanças nos equilíbrios europeus. Dessa amálgama de posições - onde se juntavam “realpolitik”, ambições nacionais, mas também algum sentido ético - acabou por resultar a decisão de Copenhague, no sentido de promover o alargamento, cujos moldes negociais práticos viriam a ser acordados em 1997, no Luxemburgo, e que o efeito Kosovo viria a rever dois anos mais tarde em Helsínquia.
Incapaz, assim, de fazer vingar politicamente um processo de transição mais lento, rejeitado por Estados e classes políticas que tinham uma “pressa histórica” que não se compadecia com modelos faseados, a União Europeia acabou por enveredar, um tanto voluntaristicamente, por um “salto em frente” de consequências globais inicialmente pouco medidas, mas que se revelou ser o único passo politicamente correcto no tempo novo de estabilidade no espaço europeu que se pretendia salvaguardar - e que, manifestamente, nunca deixou de estar dependente da leitura estratégica que se fazia da possível evolução da situação na Rússia.
O financiamento das políticas
Tomada que estava a decisão irreversível de promover o alargamento, importava considerar o modo como seria possível definir, na União do futuro, o seu novo tecido de políticas, nomeadamente se ele poderia ou não ser similar ao que tinha vindo a ser desenvolvido na actual União, com uma eficácia e virtualidades que haviam sido, aliás, um importante factor apelativo para a aproximação dos novos candidatos.
Também aqui - vale a pena reconhecer - a União voltou a reagir sob alguma pressão e sem tempo de resposta para uma readequação ponderada do seu modelo. O quadro financeiro desenhado na “Agenda 2000” - a projecção orçamental entre 2000 e 2006 que foi concluída em Berlim, em Maio de 1999 - constituiu, na realidade, uma falsa resposta ao compromisso político assumido com os países candidatos. O quadro de “phasing-in” financeiro previsto para suportar os encargos da União alargada é, além de meramente estimativo, em especial no tocante aos países a envolver em cada fase, manifestamente insuficiente para cobrir qualquer projecto que possa aparecer como concretizando a integração plena dos candidatos. Sem o afirmar abertamente, a Europa dos “Quinze” deixa duas opções implícitas: ou o alargamento se não faz no médio prazo (e, note-se, o calendário da “Agenda 2000” previa mesmo um primeiro alargamento em 2002) ou, a fazer-se, ele terá necessariamente de comportar a adopção de medidas que excluam a plena aplicação de algumas das políticas mais onerosas da União Europeia.
Tal exclusão pode ser feita de três formas: ou através da instituição de longos períodos transitórios, ou por via de uma não aplicação, pura e simples, de algumas das políticas tradicionais aos novos candidatos (o que poderia, de certo modo, implicar também o prolongamento da “dupla orçamentação” após 2007: uma para os “Quinze”, outra para os novos aderentes) ou, o que será mais plausível, pela redução generalizada, no futuro, das políticas de financiamento central da União.
Mas porque razão não é possível custear as políticas actuais num quadro de uma União alargada ? Simplesmente porque não há vontade política para aumentar as contribuições orçamentais de origem nacional nacionais. Antes pelo contrário, verificou-se, durante a negociação da “Agenda 2000”, que havia uma determinação muito firme por parte dos contribuintes líquidos no sentido de “estabilizarem” as despesas - o que, para muitos, era sinónimo de proceder mesmo à sua redução em termos reais.
Daqui resulta, implicitamente, que temos de chegar à franca conclusão de que não é viável suportar o actual tecido de políticas num quadro de alargamento. Daí que tudo indique que a solução passará pelo estabelecimento de uma nova filosofia de custeio das políticas financeiramente mais exigentes. Essa nova lógica deve assentar numa espécie de “subsidiariedade financeira” - de que as propostas de co-financiamento na Política Agrícola Comum são o modelo mais óbvio -, que se pode igualmente objectivar através da utilização mais frequente dos modelos de integração diferenciada - como é o caso das “cooperações reforçadas” -, cujo financiamento ficará a cargo apenas dos Estados participantes.
Serve isto para dizer que nos aproximamos, muito rapidamente, de um modelo de União que terá um carácter mais normativo e regulador, na sua extensão ao novo conjunto dos Estados membros, e que, no plano das políticas mais onerosas, tenderá a favorecer aqueles que forem capazes de se autofinanciarem. Parece-me inevitável que daqui decorra uma União mais dual, menos solidária e, porventura, um quadro político-económico que pode acabar por constituir-se em alguma desilusão para os novos Estados aderentes. Mas este é, com grande probabilidade, o preço que haverá que pagar para conseguir executar o novo alargamento, cuja dimensão e exigências deverão introduzir uma mudança qualitativa sem precedentes na própria natureza da União Europeia.
A gestão institucional
O modelo institucional nascido no Tratado de Roma, e que sofreu ligeiros, mas não radicais, processos de adaptação com os sucessivos alargamentos, foi instituído em torno de certos equilíbrios que partiram de realidades do pós-guerra, bem como do modo específico como os Estados do Benelux se situavam face ao binómio franco-alemão, com o factor italiano a ter de ser compensado em todos os cálculos.
Independentemente das peculiaridades dos modelos de desenvolvimento de cada um dos “Seis” iniciais, foi notório que acabou por prevalecer um padrão similar de desenvolvimento - e de fixação de políticas comunitárias para o respectivo apoio - em que esses Estados quase sempre acabaram, no essencial, por se rever, com reflexos óbvios no processo legislativo que iam gerando em Bruxelas como acervo comum, grande parte dele definido ainda num quadro decisório em que a unanimidade se mantinha como regra.
Os sucessivos alargamentos vieram entretanto introduzir algumas inevitáveis alterações aos equilíbrios criados no grupo inicial, nuns casos no plano de algumas opções políticas de fundo - por idiossincrasias nacionais ou constrangimentos de raiz histórica ou constitucional, como foi o caso da maioria dos alargamentos a Norte e Centro -, noutros casos com implicações muito fortes de raiz económica, derivados de graus de desenvolvimento diferenciado - de que os alargamentos a Sul são um óbvio exemplo.
Maugrado estas tensões, o sistema institucional conseguiu sempre resistir às pressões que sobre ele foram colocadas, em especial atendendo a que, em todas as fases, acabou por prevalecer na resultante decisória um padrão de desenvolvimento mais próximo dos interesses que eram comuns aos países fundadores e, por consequência, aos Estados mais desenvolvidos. Isto teve sempre uma tradução objectiva no processo legislativo e na gestão orçamental.
A circunstância de, a partir do Acto Único Europeu, se ter trabalhado mais através de decisão maioritária, com o Parlamento Europeu envolvido através de uma cada vez mais frequente “co-decisão” desde Maastricht, acabou por reforçar a preeminência do padrão médio de interesses que já era então dominante no Conselho, dado que no PE se acentua ainda mais a diferenciação demográfica que, de uma forma geral, favorece os países mais desenvolvidos.
Tudo pode mudar, porém, com a perspectiva dos próximos alargamentos e dos seus reflexos nos equilíbrios actuais.
A revolta dos interesses
A concretizar-se o alargamento que se projecta para a União Europeia, no corrente processo negocial que envolve 12 países (a adesão turca deverá, realisticamente, ser encarada noutra perspectiva temporal), ele trará consigo um conjunto de Estados cujo padrão de interesses, no que toca ao seu nível de desenvolvimento, se situa manifestamente fora da actual média comunitária. Mesmo que todos possamos considerar que as potencialidades estruturais de muitos desses Estados podem vir a garantir-lhes uma rápida recuperação do seu atraso em matéria de desenvolvimento, a verdade é que esse não deixa de ser um cenário de futuro mais longínquo. Daí que, a curto e médio prazos, a esmagadora maioria desses países se situe em patamares mais próximos dos Estados menos desenvolvidos da actual União a “Quinze”.
Que consequências poderiam decorrer se, ao processar-se esse grande alargamento, fossem utilizados os mecanismos institucionais prevalecentes até Nice, por mera extrapolação automática dos mesmos, como foi acontecendo no passado ? Muito simplesmente, assistiríamos a uma espécie de reequilíbrio de forças no seio do Conselho de Ministros, na referida dualidade desenvolvidos/menos desenvolvidos, que, sem necessariamente menorizar os primeiros, daria seguramente aos segundos uma capacidade de pôr em causa aquilo que constitui hoje a sua capacidade incontestada de gerir a máquina comunitária. Daqui decorre a lógica dos esforços para conseguir uma reponderação ou uma consideração radical do peso populacional, que tiveram a sua expressão na dura discussão de Nice.
Do mesmo modo, e tendo em atenção o seu papel decisivo na promoção e desenvolvimento das políticas, deve ser entendido o esforço que foi desenvolvido por alguns com vista a evitar a fixação do princípio de um Comissário por Estado membro, tentando prevenir a possibilidade da presença igualitária no colégio de personalidades originárias de todos os países, logo, reequilibrando decisivamente uma instituição que, desde sempre, foi dominada pela ala mais desenvolvida da União.
As propostas radicais para a reforma institucional, que se espelharam nas ambições patentes em Nice, representaram, assim, como que a revolta dos interesses de quantos se habituaram a gerir com total liberdade a União do passado. A procura de modelos de compensação, ainda que a prazo, para evitar essa deriva constituiu o eixo de toda a estratégia da fase francesa da Conferência Intergovernamental. Uma lógica que, diga-se, contrastou de forma evidente com a que foi seguida pela presidência portuguesa da CIG, onde se procurou “dramatizar” o conflito “grandes” vs “pequenos/médios” Estados, por forma a extrair desse confronto um ambiente político-diplomático, com efeitos mediáticos e na opinião pública, conducente a um resultado mais equilibrado. O resultado de Nice pode ler-se como o saldo possível da tensão entre essas duas correntes.
As finalidades da União
Foi neste contexto global, que incorpora uma luta clara de interesses e um quadro de relações intra-estatais muito específicos, que Joschka Fischer proferiu o seu discurso e lançou as ideias que abalaram a União.
Partindo de uma leitura prospectiva das consequências do alargamento, aceite nas suas vertentes de imperativo ético-estratégico e impulsionador de desenvolvimento e estabilidade no espaço europeu, Fischer avança com a ideia de um tratado constitucional para uma Europa federal, assente num parlamento e num governo europeus. Respondendo a preocupações pressentidas em muitas partes, o conceito de Estado-Nação é preservado neste modelo, sendo avançada mesmo uma partilha explícita de competências que deve ser apoiada numa subsidiariedade constitucionalmente acordada. Para acalmar as inquietudes nascentes nos parlamentos nacionais, o órgão legislativo da Federação incorporaria duas câmaras, uma das quais composta por eleitos que fariam simultaneamente parte desses mesmos parlamentos. O papel central da Comissão Europeia é preservado, interrogando-se, contudo, o ministro alemão sobre se o papel do Governo europeu não poderia ser cometido ao próprio Conselho.
Convém começar por dizer que foi a própria presidência portuguesa da União, no primeiro semestre de 2000, que estimulou o debate nesta área, ao propor como tema da reunião informal de Ministros dos Negócios Estrangeiros, que teve lugar nos Açores, uma discussão sobre o futuro do modelo europeu. A nosso ver, começava a ser útil tentar perceber como cada Governo se colocava neste domínio, particularmente porque tal não era indiferente ao modo como encarava o exercício da Conferência Intergovernamental já em curso. O facto do MNE alemão ter vindo a público exprimir, de forma mais organizada, as ideias que já havia deixado nas Furnas, constituiu, contudo, um passo que foi, para muitos em que nos contamos, algo inesperado.
Qual pode ter sido a desvantagem da tomada de posição de Fischer ? Convém ter presente que o processo europeu evoluiu, ao longo dos anos, numa espécie de implícito consenso em não abordar o modelo final para onde poderia apontar a integração comunitária. No decurso dos vários momentos em que o processo integrador se reforçou, as medidas tomadas foram quase sempre de natureza pontual, baseadas no acordo face a necessidades progressivas, justificadas pelo evoluir das circunstâncias. De certo modo, foi adoptada uma deliberada ambiguidade neste caminho, evitando explicitar as suas finalidades últimas - as quais, diga-se, estão longe ser consensuais, mesmo entre os mais integracionistas. Foi essa ambiguidade criativa que permitiu gerir um progresso que conjugou povos e Estados com agendas de preocupações muito diferenciadas, com uma capacidade também muito distinta no modo como liam e lêem o processo integrador.
Abrir a discussão sobre o modelo europeu final, sobre o “fim da história” da Europa, torna-se, assim, indispensável? A nosso ver, isso só tem sentido se, com esse gesto, se pretender criar como que um “choque político” que acabe por separar as águas e definir quem está disposto a ir, desde já, avante e, do mesmo modo, seleccionar quantos se não dispõem por ora a esse passo. Para ser mais directo, abordar a finalidade última da União, no actual estado das opiniões públicas face ao projecto europeu, que não é independente do quadro de desafios e interrogações que às mesmas se colocam com premência, não pode deixar de representar senão a vontade de refundar o projecto europeu.
Esta é a tese que me parece resultar do discurso do MNE alemão: consciente da impossibilidade de preservar, com alterações sensíveis, um modelo institucional que as teimosas resistências nacionais impedem que se converta num permanente eixo do poder comum dos que entendem dever constituir-se no centro da governabilidade da União do futuro, a escapatória óbvia é sair para a ruptura federal. Nesta residirá, pela força económica das coisas, pela força política do diferenciado peso diplomático-militar e pela realidade demográfica, o novo modelo de poder que, por outros meios, garantirá aos Estados centrais da União o prolongamento futuro da sua capacidade de gestão do processo integrador, sem terem de se sujeitar a cíclicos processos de negociação, sobre tudo e com todos. O estabelecimento de um “Tratado no seio do Tratado” é, desta forma, um modelo elegante de consagrar a nostalgia dos fundadores do acordo de Roma.
Portugal e o modelo europeu
Gostava de deixar claro que, a título pessoal, não considero que, para um país como Portugal, a adesão a um projecto como o que é proposto seja necessariamente negativa, se bem que haja a necessidade de precisar alguns aspectos, antes de nos abandonarmos nos braços de uma deriva federal de contornos não totalmente explícitos.
Com efeito, convém ter presente que um país como Portugal não partiria para esta nova fase de uma situação de equidade. As estruturas da União, onde reside o poder funcional, estão hoje dominadas por uma burocracia altamente dependente dos Estados de maior dimensão ou dos que se situam, desde há muito, na sua proximidade estratégica. Teríamos assim que medir bem em que medida as vantagens que retiraríamos de um abandono das últimas salvaguardas da intergovernamentalidade seriam compensadas - e não necessariamente apenas em termos financeiros - com seguranças essenciais àquilo que entendemos dever definir como a capacidade mínima de controlo do papel do país numa ordem que entendemos sempre considerar externa.
A eventual consideração de um modelo federal por parte de Portugal também não é independente da circunstância desse modelo ter ou não capacidade para vir a impor-se no quadro europeu. Considerar determinadas opções pode, por vezes, ser uma atitude inevitável se uma omissão vier a revelar-se potencialmente lesiva dos interesses últimos do país. Proceder de forma diferente poderia ser um gesto de cómoda ressonância nacionalista, mas que provavelmente teria como consequência um novo ciclo de periferização no cenário europeu.
A intergovernamentalidade reforçada
Ao lado do discurso de Fischer, a proposta apresentada por Jacques Chirac tem a marca inevitável do modo particular como a França lê o seu próprio papel no cenário europeu e mundial. Ao retomar a ideia do “grupo pioneiro”, o presidente francês comunga da nostalgia dos fundadores do Tratado de Roma expressa por Fischer, mas coloca-se, rapidamente, numa arquitectura institucional que se distingue, muito nitidamente, do modelo europeu do responsável alemão.
Para Jacques Chirac, o imperativo do avanço separado dos “like-minded” com a visão da França não passa, necessariamente, pela instituição de um novo Tratado. Trata-se de aproveitar à exaustão a flexibilidade dos mecanismos institucionais actuais e trabalhar fora deles, independente do quadro que a UE consagra, se e quando tal se revelar necessário à prossecução dos interesses do “grupo pioneiro”, que não obrigatoriamente aos interesses da União. O desaparecimento ou enfraquecimento do papel da Comissão Europeia - que uma das opções de Fischer preserva, no essencial - revela em que medida esta proposta aparece marcada por uma tendência de reforço do papel do Conselho, onde a diferenciação de poder entre os países de diferentes dimensões surge como a chave do sucesso funcional, erigido este a princípio essencial do modelo.
Ao contrário do modelo federal, deveremos ter a coragem de afirmar que, neste caso, estamos já, sob a capa de um projecto de leitura do interesse europeu que se situa nas margens de um modelo de puro “directório”. Concedemos que essa possa ser a fórmula mais operativa para a consagração permanente de um condomínio do continente onde a França e alguns outros Estados possam realizar-se, provavelmente num quadro de progresso e de desenvolvimento com indiscutíveis virtualidades sectoriais, mas seguramente numa espécie de tutela paternal em que alguns entregariam a sua independência à “sagesse” de uma coligação de potências. Este não parece, definitivamente, um cenário que nos interesse considerar - como, aliás, estamos convictos que não colherá o interesse de muitos.
Prelúdio de um debate
Uma nova Conferência Intergovernamental está já prevista para 2004, com uma agenda esboçada em Nice (Dezembro de 2000) e cujo desenvolvimento foi feito em Lakaen, no último Conselho Europeu da presidência belga (Dezembro de 2001), antecedido de uma alargada Convenção para o futuro da Europa.
Os próximos anos não deixarão, assim, de proporcionar um debate aberto sobre o futuro do projecto de integração do continente, particularmente se se verificar que o modelo institucional que enquadra o alargamento se revela incapaz de preservar as ambições de controlo desse mesmo projecto por quantos se habituaram a geri-lo sem grandes peias.
Talvez então se compreenda melhor a razão pela qual Portugal defendeu na anterior Conferência Intergovernamental que se “revisitassem” as cláusulas das cooperações reforçadas: para evitar dar razões a quantos argumentavam que era a rigidez do modelo que proporcionava a ideia de trabalhar à revelia das instituições, tida como única forma de garantir condições para um aprofundamento eficaz.
A questão está em saber se, mesmo nesse quadro mais flexível, será viável controlar as tentações dos que crêem - provavelmente com as melhores intenções, mas que não têm forçosamente de ser as nossas - que o processo integrador só pode desenvolver-se se assente em alguns pilares nacionais tidos como predestinados para nos guiar num destino comum. Outros procurarão, porventura, utilizar a Europa como palco para projectarem uma ideia de si próprios que já só os manuais históricos recolhem. Todos estão no pleno direito de afirmarem os seus sonhos, embora também todos tenham de ter a consciência de que a Europa não é propriedade de ninguém e que tentar nela projectar simples e datados modelos de poder pode acabar por confirmar a versão de um clássico já pouco em voga segundo a qual “a História ocorre uma primeira vez como tragédia e uma segunda como farsa”.
(Publicado na revista “Política Externa” (vol 10, nº 3, 2001/2002), S. Paulo, Brasil, sob o título “Europa – o fim da História ?”. Uma primeira versão deste texto foi publicada na revista “Política Internacional” (vol 3, nº 22, 2000), Lisboa).
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