1 de janeiro de 2001

A estratégia negocial em Nice

Este texto pretende transmitir uma perspectiva sobre o modo como Portugal se situou ao longo de toda a negociação que conduziu ao Tratado de Nice. Para além do enquadramento político e técnico em torno das principais questões em jogo, procura-se avaliar de que modo aquilo que foi definido como o interesse português foi sendo gerido no decurso dos trabalhos, com vista a tentar perceber em que medida os principais objectivos nacionais puderam, ou não, ser atingidos. No que se crê ser uma abordagem pouco usual neste tipo de registos, referir-se-ão aspectos menos conhecidos do relacionamento entre os governos no decurso da Conferência Intergovernamental (CIG), bem como algumas formas de intervenção pública, fora do quadro formal da negociação, que se entendeu dever mobilizar em apoio às posições portuguesas. Pelo interesse especial que pode ter para a compreensão geral do processo negocial, optou-se por incluir um relato mais pormenorizado do que ocorreu durante a própria cimeira de Nice[2].

Convirá começar por notar que o exercício que se concluiu em Dezembro de 2000, em Nice, foi a CIG com uma das mais limitadas agendas na história das instituições comunitárias. Não obstante essa circunstância - ou, talvez, precisamente por essa razão - acabou por constituir para todos os Estados membros um trabalho delicado e complexo, dada a sensibilidade dos temas em análise e a ausência de elementos de compensação negocial que uma agenda mais alargada propiciaria.

A realização de uma nova CIG ficara já prevista no Tratado de Amesterdão, o qual marcara para antes do próximo alargamento uma reforma das instituições comunitárias. Aquilo que ficou conhecido como os “restos” (“leftovers” ou “reliquats”) de Amesterdão incluía a revisão da dimensão e composição da Comissão Europeia e dos votos de que cada Estado dispunha no Conselho de Ministros [3].

A estas duas questões somou-se, quase desde o início, a possível extensão das decisões tomadas por maioria qualificada, por abandono da regra da unanimidade [4].

O Conselho Europeu de Colónia, em Junho de 1999, viria a confirmar a decisão de convocar a nova CIG em 2000, tendo o Conselho Europeu de Helsínquia, em Dezembro de 1999, fixado, em definitivo, o mandato com que a presidência portuguesa deveria iniciar a nova Conferência [5].


O cenário de fundo

As discussões de Amesterdão haviam deixado relativamente claro o cenário em que se desenrolaria a futura CIG e indiciaram as razões concretas que a justificavam. Formalmente, a nova revisão dos Tratados era apresentada como um passo indispensável para garantir que as instituições da União se adaptariam às exigências provocadas pelos futuros alargamentos, preservando a respectiva eficácia e reforçando a sua democraticidade.

O mais extraordinário de todo este exercício foi a circunstância de ele se ter desenrolado, até tarde, sob a inocente capa de uma revisão institucional que seria absolutamente “indispensável”, no plano técnico-político, antes do próximo alargamento, tendo-se espalhado a convicção de que uma mera projecção do actual formato institucional configuraria um desastre para a Europa [6]. Quem ousasse pôr em causa este dogma “politicamente correcto”  era apodado de anti-europeu e tido, no fundo, como um adversário implícito da adesão dos novos países.

Tornou-se interessante ver a grande generalidade dos comentadores a dar recorrentemente como óbvia esta suposta evidência, sem sequer se interrogar criticamente sobre a validade do argumento. A evolução da discussão e a verdadeira luta pelo poder que nesta CIG acabou por se tornar patente, com expressão mais flagrante nas últimas semanas da negociação, terá aberto, quiçá tardiamente, os olhos a muitos - em Portugal e noutros países.

O que estava de facto em jogo nesta CIG ? Em síntese, esta Conferência é uma exigência imposta por aqueles que, até hoje, se haviam habituado a gerir com relativa facilidade as instituições comunitárias e que, perante a perspectiva de um alargamento de proporções sem precedentes, temeram ver esse poder submergido pelas consequências da futura participação de uma avalanche de países de pequena e de média dimensão no processo decisório.

Com efeito, a simples extrapolação dos actuais mecanismos de decisão no contexto de uma União alargada a 27 ou mais Estados iria retirar-lhes a capacidade de controlo de que hoje dispõem na máquina comunitária, obrigando-os a uma partilha de poder que subvertia as regras do jogo que dominavam.

O argumentário utilizado foi de uma simplicidade meridiana: era forçoso garantir uma maior “eficácia” das instituições (maior facilidade na tomada das decisões) e isso passava por aspectos de “reorganização” das mesmas (nova divisão do poder), à luz de uma maior expressão “democrática” (tida como eufemístico sinónimo de “demográfica”).

A operação tinha duas vertentes essenciais: ao nível da Comissão e no processo decisório no Conselho.

No que toca à Comissão, o objectivo era, muito simplesmente, desligá-la do carácter nacional das nomeações dos comissários, introduzindo o conceito de uma Comissão restrita (12 a 15 comissários, no máximo 20), com uma futura rotação não necessariamente igualitária (o princípio “Conselho de Segurança” - membros permanentes e membros não permanentes - foi deixado a pairar durante algum tempo) e internamente hierarquizada (com fórmulas várias que iam desde a fixação de vice-presidentes apenas para os “grandes”, até a comissários-adjuntos, comissários sem pasta, etc.).

O objectivo era simples: uma estrutura deste género, menos política e mais tecnocrática, acabaria por repercutir as tendências do reforçado poder para os maiores Estados que se pretendia passasse a prevalecer no Conselho de Ministros, apoiada numa estrutura de funcionários que se sabe ser esmagadoramente dominada por esses mesmos Estados. Recorde-se que cada um dos “cinco” dispõe hoje de uma presença maciça a nível de directores-gerais, de chefes de gabinete e de outros lugares cimeiros do aparelho da Comissão.

Porque razão uma Comissão para qual cada país tivesse o direito de indicar um comissário era tão fortemente rejeitada por alguns? Porque a cultura de interesses que uma tal Comissão iria projectar alteraria substancialmente o padrão que hoje nela predomina. De facto, numa União a 27 Estados, uma Comissão em que cada país passe a ter um comissário, e em que internamente se continue a tomar decisões por maioria simples, dificilmente reproduzirá no futuro os actuais padrões de interesses, dada a crescente diversidade que o alargamento vai introduzir. E tratando-se da instituição que tem o monopólio da iniciativa legislativa, e que é responsável pela regulamentação e pela execução das políticas, pode pensar-se na importância do que acabou por ficar decidido em Nice nesta matéria [7].

Se o problema da Comissão era de monta, e justificava para alguns um “downsizing” profilático, a questão do processo de decisão a nível do Conselho de Ministros não o era menos. O que estava aqui em jogo era, manifestamente, provocar um agravamento em matéria de capacidade de representação entre os Estados de maior dimensão e os restantes, através de alterações no poder de voto ou, no mesmo sentido, por via da modulação do peso demográfico no processo de decisão - não obstante o facto deste último modelo contribuir para alguma conflitualidade entre os maiores Estados, como veremos.

O objectivo, também aqui, era evidente: tratava-se de tornar tanto quanto possível irrelevante o papel dos novos aderentes nas decisões futuras, numa lógica que, no entanto, teria como inevitável consequência afectar de forma similar os Estados de pequena ou média dimensão que já fazem parte da própria União a Quinze.

Esta era também uma filosofia que se projectava na possível extensão das decisões por maioria qualificada, em áreas actualmente regidas pela regra da unanimidade. Em especial para os Estados de maior dimensão - que, contrariamente ao que se crê, são aqueles que mais frequentemente recorrem ao veto - a abertura para concederem um tratamento de certas questões por maioria qualificada esteve quase sempre indissoluvelmente ligada à prévia redefinição do seu poder no processo decisório no Conselho de Ministros [8].

Do mesmo modo, não era irrelevante o número de deputados que viesse a ser fixado para cada país no Parlamento Europeu, que, por reflectir uma mais directa expressão demográfica, acaba por funcionar como uma segunda reponderação em favor dos maiores Estados. A este propósito, recorde-se que a co-decisão com o Parlamento Europeu tem vindo a estender-se, cada vez mais, às matérias de natureza legislativa que o Conselho adopte por maioria qualificada [9].

Convém que se diga que este processo de revisão dos mecanismos de poder entre Estados, apoiado em critérios demográficos, tem dentro de si uma contradição interessante, mas difícil de ser abertamente assumida no discurso político europeu.

Com efeito, é sabido que, no dia-a-dia da vida comunitária, a expressão dos interesses dos Estados não se faz nunca por linhas divisórias que isolem os “grandes” dos “pequenos”. A separação processa-se sempre por outras linhas de fractura, as quais, no que toca ao chamado pilar comunitário, onde se situam os temas económicos e sociais, assentam essencialmente nos níveis de desenvolvimento de cada país [10][********]. Por essa razão, desde sempre Estados como o Luxemburgo ou a Bélgica, e hoje a Áustria ou a Finlândia, se situam comodamente no padrão médio de interesses que se reflecte no processo decisório em Bruxelas e, por esse motivo, raramente estão distantes, aquando das votações, das posições dos países “grandes” mais desenvolvidos.

E esta é a grande ironia desta Conferência. Como o único critério possível para “separar as águas”, antes do próximo alargamento, era a via da distanciação demográfica (só a medo alguns ousaram falar no PIB per capita ou nas contribuições para o orçamento da União), alguns países que tradicionalmente votam juntos viram-se afastados formalmente uns dos outros nas propostas que mais radicalmente pretendiam explorar o factor demográfico.

Poderia dizer-se que, no fundo, isso deveria ser indiferente para esses Estados “pequenos” que compartilham os interesses dos “grandes”, dado que o reforço destes últimos os protegeria sempre no processo decisório. Tal é verdade no plano objectivo, mas o facto de formalmente eles caminharem para a irrelevância no processo decisório iria ser difícil de explicar junto dos respectivos parlamentos e opiniões públicas, por maiores que fossem os argumentos de racionalidade. E este não deixou de ser um elemento presente na nossa táctica negocial, como adiante se verá.


O interesse português

Perante o mandato recebido em Helsínquia, Portugal viu-se obrigado a ter de compatibilizar a sua condição dual de futura presidência da União e de Estado com interesses directos na negociação. Quais eram, em termos gerais, esses interesses ?

Para Portugal, a preservação do processo integrador constituía a principal linha de orientação subjacente às posições a defender na nova Conferência. Assim, e no essencial, partíamos para esta CIG com as linhas básicas com que havíamos encarado o exercício de Amesterdão [11]. O equilíbrio interinstitucional existente era considerado satisfatório para o nosso país e, atendendo ao alargamento, apenas entendíamos indispensável caminhar para uma maior funcionalidade através de duas vias: um aumento da lista de matérias em que a unanimidade deixaria de ser regra e uma revisão dos mecanismos de integração diferenciada nas políticas - as “cooperações reforçadas” [12] - que Amesterdão criara e não haviam sido utilizados.

No primeiro caso, compreendíamos os argumentos de quantos consideravam perigoso, particularmente numa União alargada, mas mesmo na própria União a Quinze, manter-se determinadas áreas isentas de votações maioritárias. Outros diriam que esta era uma atitude suicida, porquanto, estando Portugal fora do “mainstream” de interesses da União, e com uma posição institucional que o quadro do alargamento não iria fortalecer, o risco de marginalização seria cada vez maior, ao prescindir-se do direito de veto.

Esta linha argumentativa esquece três realidades. A primeira é a de que a funcionalidade do processo comunitário constitui também um interesse português e que, se estamos abertos a uma integração progressiva, não nos podemos comportar no seio da União como se de uma qualquer organização internacional se tratasse. A segunda, ligada à primeira, é a circunstância de ser necessária uma leitura diacrónica e dinâmica dos nossos próprios interesses, projectando-os na muito maior diversidade que o alargamento acarretará, onde a nossa posição relativa não vai ser forçosamente a mesma. A terceira - que pode não ser evidente para quem está de fora, mas que o é para quem trabalha de perto com a máquina comunitária - prende-se com o facto do direito de veto ser, quase sempre, uma falsa defesa de difícil execução prática, principalmente para países de pequena e média dimensão, sendo ele próprio de penosa utilização mesmo pelos seus principais cultores - os “grandes” países.

Nas posições que fomos afirmando ao longo da Conferência, quanto à extensão da maioria qualificada, ficou patente alguma evolução face às discussões de Amesterdão - atitude, aliás, comum à generalidade dos Estados membros. Não deixámos, contudo, de sempre ligar esta questão à definição do nosso próprio poder final no Conselho e no Parlamento Europeu e de preservar algumas áreas em que não encarávamos prescindir, nesta fase, da unanimidade. Estavam neste caso algumas disposições fiscais, sociais, na área da Justiça e dos assuntos internos, bem como relativas à coesão económica e social. Algumas outras áreas foram inicialmente avançadas como problemáticas, mas a continuação do debate e a evolução dos textos de alguns artigos acabou por acomodar as nossas preocupações, como aconteceu com outros Estados. 

Quanto às “cooperações reforçadas”, a nossa perspectiva evoluiu desde Amesterdão, onde, como é sabido, fomos responsáveis por muito daquilo que ficou fixado no Tratado [13][§§§§§§§§]. Mas se continuávamos a pensar que não eram as condições práticas exigidas no Tratado que impediam o recurso às “cooperações reforçadas”, ou mesmo a simples tentativa de as encarar, o que justificou que Portugal favorecesse agora uma revisão daquelas condições ?

Há duas ordens de razões. A primeira prende-se, uma vez mais, com a heterogeneidade crescente que o alargamento virá a introduzir na União, bem como com outras linhas de fractura que já são também detectáveis a nível dos Quinze, como se pode observar nos modelos de integração diferenciada hoje existentes ou na frágil compatibilidade das culturas de Defesa dentro da União. Para um país como Portugal, que sofre de condições específicas que são, elas próprias, indutoras de perifericidade, torna-se importante encontrar mecanismos de regulação centrípeta que, de uma forma controlada e transparente, possam abrir caminho ao nosso interesse em participar em pleno em mecanismos de maior aprofundamento de certas políticas, se e quando a nossa vontade nacional decidir ir por aí, como foi já o caso da moeda única ou de Schengen.

A segunda razão é de natureza mais táctica. Se bem repararmos, desde Amesterdão que vínhamos a assistir a discursos, ou tomadas de posição prática, que apontavam a rigidez do actual modelo de “cooperações reforçadas” como a justificação para o alimentar de pretensões para vir a trabalhar, em certos domínios, à margem das instituições comunitárias. O espírito “grupo de contacto” estava assim a começar a espalhar-se de forma perigosa e, ao propormos nós próprios a revisitação controlada dos actuais modelos de “cooperações reforçadas”, procurámos retirar argumentos a quantos pareciam crescentemente interessados em funcionar fora do quadro institucional único da União, nomeadamente fugindo ao papel central da Comissão Europeia e à tutela do Tribunal de Justiça.

Mas do conjunto de interesses que Portugal procurava preservar nesta CIG constava também a necessidade de atentar na evolução de duas importantes fontes de influência e de poder: a Comissão Europeia e o Conselho.

A leitura que Portugal, desde sempre, tem vindo a fazer da vida comunitária assenta na importância do papel da Comissão Europeia, o que justifica a preservação, e mesmo o reforço, dos respectivos poderes no quadro interinstitucional. Daí decorre igualmente a ideia de que deve ser atribuído ao presidente da Comissão um conjunto mais alargado de poderes que, sem afectarem o princípio da colegialidade, facilitem a afirmação da sua autoridade, que deve ir a par da sua crescente responsabilização política, nomeadamente no que toca às garantias de neutralidade e de independência da instituição.

A especial posição de debilidade que os países de pequena e média dimensão têm na estrutura funcional da Comissão, bem como a genuína ideia de que essa instituição deve, como todas as outras, reflectir no seu seio a diversidade das culturas políticas e de interesses que existem na União, levou Portugal, também desde sempre, a defender a possibilidade de poder continuar a designar um elemento para o colégio de comissários. Ao ligar esta possibilidade à importância que teria a obtenção, pela primeira vez na história comunitária, de uma absoluta igualdade dos Estados na Comissão, estávamos a desenhar uma linha de intervenção ambiciosa no tocante a esta instituição - e a importância deste passo deve medir-se pelas dificuldades com que ele se confrontou ao longo de toda a CIG.

A obtenção da igualdade dos Estados perante a Comissão implicava - como o Protocolo anexo ao Tratado de Amesterdão já previa - a compensação a nível do Conselho aos Estados que viessem a perder o seu segundo comissário. A questão estava em saber de que modo tal compensação se faria, fosse optando por uma “reponderação simples”[14], por alteração da tabela até agora em funcionamento, fosse pela introdução de factores que reforçassem o elemento demográfico. Para Portugal, era naturalmente decisivo, garantir que a compensação pela obtenção da igualdade na Comissão se viesse a fazer pelo “preço” mais baixo possível a nível do Conselho. 


O alargamento como argumento

Desde muito cedo que alguns dos Estados que pugnavam por reformas institucionais profundas - o mote “mais vale não haver um acordo em Nice do que se acabar num acordo de mínimos” era a expressão teórica dessa linha - deixavam entender que, em caso de bloqueio provocado pela indisponibilidade dos países de pequena e média dimensão de se vergarem aos objectivos dos maiores países, os primeiros não deixariam de ser apontados como os culpados do fracasso da CIG, que o mesmo seria dizer, do bloqueio do alargamento.

O peso político deste argumento era significativo, pelo que se tornava imperioso tentar desmontá-lo desde cedo, deixando claras publicamente as reais intenções dos Estados de maior dimensão nesta CIG - eram eles os verdadeiros “demandeurs” da reforma profunda das instituições - e tornando óbvio aos candidatos que a luta que travávamos ia no sentido dos seus próprios interesses.

Recorde-se que o discurso comum apontava para a necessidade de a reforma institucional ser acordada até ao termo de 2000, com o Tratado a ser assinado dois ou três meses mais tarde, dando-se depois os 18 a 20 meses tradicionais para as ratificações nacionais. Tal permitiria que, pela parte da União, o alargamento pudesse vir a ter lugar a partir de início de 2003 - atrasando, mesmo assim, um ano face ao previsto como temporalmente possível no quadro financeiro da “Agenda 2000”.

Ao ligar-se a nova reforma das instituições ao desencadear do processo do alargamento, acabava por projectar-se um duplo objectivo: por um lado, evitava-se que os países candidatos, prioritariamente interessados no avanço rápido das negociações de adesão, pudessem apresentar ou apoiar linhas argumentativas em matéria institucional que surgissem como dificultantes de um compromisso final; por outro, deixava-se o ónus de qualquer cenário de crise em Nice a quantos, dentre os Quinze, se revelassem “troublemakers” durante a CIG, isto é, os que se opusessem à reforma institucional radical patrocinada pelos maiores Estados.

Pela nossa parte - e ainda antes de qualquer outro país - sempre dissemos que éramos favoráveis ao maior envolvimento possível dos países candidatos na reforma institucional, naturalmente em moldes compatíveis com o seu estatuto de ainda não membros.

Nunca escondemos que o fazíamos, não apenas por uma questão de coerência com o que considerávamos ser um espírito de lealdade e lisura com os futuros parceiros da União, a qual não devia mudar radicalmente de regras sem uma informação e diálogo com aqueles cuja entrada justificava tais mudanças, mas igualmente porque tínhamos consciência de que as posições dos candidatos no domínio institucional poderiam vir a ajudar a reforçar aquelas que nós próprios defendíamos. Esta nossa atitude era uma constante do nosso discurso político e foi durante anos sustentada publicamente, não apenas em todos os contactos bilaterais com esses mesmos países, mas igualmente junto dos nossos parceiros comunitários, neste caso com evidente incomodidade por parte de alguns.

Foi na aplicação dessa orientação de informação aos candidatos, que víramos entretanto consagrada nas conclusões de Helsínquia, que o Ministro dos Negócios Estrangeiros português escreveu aos seus homólogos dos 13 países candidatos, já como presidência mas ainda antes do início da CIG, solicitando-lhes a expressão de posições que quisessem transmitir aos Quinze sobre a reforma das instituições que em breve se iniciaria. As tomadas de posição recolhidas - e que, em geral, se pautavam por uma grande prudência, com óbvia intenção de não dificultar a conclusão do exercício no período previsto - iam num sentido já pressentido, em função dos alinhamentos demográficos. Isso ajudou, de qualquer forma, a definir uma tendência maioritária que se deixou expressa de modo formal no decurso dos trabalhos.

O objectivo de articulação informativa com os países candidatos prosseguiu ao longo de toda a nossa presidência, tendo sido, com esse fim, organizado em Maio, em Bruxelas, um encontro de trabalho a nível governamental. Posteriormente, já no decurso da presidência francesa, a anteceder a sessão da Conferência Europeia em Sochaux, foi transmitida aos representantes diplomáticos em Lisboa dos países candidatos a leitura de Lisboa sobre a evolução da CIG, patenteando as dificuldades que se avizinhavam no caminho para Nice e esclarecendo sobre as principais linhas em confronto. Tal diligência não deixaria de ter consequências interessantes nas posições assumidas por alguns dos candidatos na reunião de Sochaux.

O que mais tarde se viria a passar em Nice, no tocante a propostas de desigualização em matéria de representação nas instituições entre os actuais Estados membros e candidatos de idêntica dimensão demográfica, terá confirmado o acerto do alerta que, em tempo útil, fora por nós feito aos países candidatos.


A CIG na presidência portuguesa

Como antes se referiu, a circunstância de Portugal deter a presidência da União obrigou a uma acção paralela enquanto gestor relativamente neutral da CIG e de defensor dos interesses nacionais.

A presidência portuguesa mostrou-se, desde o início, aberta a considerar o alargamento da agenda recebida em Helsínquia [15], pelo que suscitou um largo conjunto potencial de temas, alguns remanescentes de anteriores Conferências, outros aventados em resoluções do Parlamento Europeu ou em tomadas de posição de outras instituições ou órgãos da União. Esta longa lista de assuntos foi colocada a todos os Estados membros ainda antes da abertura da Conferência, devendo referir-se que esta atitude de grande abertura por parte da presidência portuguesa se revelou fundamental para a obtenção do parecer conforme do Parlamento Europeu, que permitiu o arranque dos trabalhos da CIG [16].

Verificou-se, no entanto, que a preferência inicial da grande maioria dos Estados membros ia para uma agenda limitada [17], justificada pela necessidade de não tornar o exercício mais complexo e passível de ser concluído até Dezembro de 2000. Por essa razão, a presidência centrou os seus esforços na inserção da revisão das “cooperações reforçadas” - iniciativa que, é hoje interessante recordar, foi então apenas apoiada pela Itália e pelo Benelux [18]. O “entusiasmo” que o tema veio a suscitar em alguns parceiros foi, assim, resultado de uma curiosa evolução posterior.

Enquanto delegação nacional, Portugal deixara clara desde o início a sua posição quanto à questão da Comissão Europeia, onde não encarava sair de Nice sem a possibilidade de continuar a indicar um comissário. Porque qualquer abertura neste domínio poderia indiciar disponibilidade para trabalhar em cenários de uma Comissão limitada ou hierarquizada, Portugal recusou-se mesmo a entrar num debate teórico assente em tal perspectiva, correndo deliberadamente o risco de não controlar o sentido desse mesmo debate.

No tocante ao mecanismo de decisão no Conselho, a nossa posição foi razoavelmente aberta - embora parte dessa abertura tivesse algo de táctico. Com efeito, desde o início da CIG que ficou patente que todos os países “grandes” (com excepção da Alemanha) favoreciam abertamente um novo modelo de “reponderação simples”, que substituísse o modelo existente. Porquê ? Porque qualquer “dupla maioria” [19] acabaria por desigualizá-los, na prática, face à Alemanha, que sempre contaria mais em qualquer fórmula onde a pura expressão demográfica viesse a prevalecer como variável.

Pela nossa parte, mostrámo-nos sempre abertos a não afastar a hipótese de uma “reponderação simples” moderada, através da qual os Estados membros que viessem a perder o seu segundo comissário pudessem ser compensados. Enquanto presidência, ilustrámos no nosso relatório para a Feira um conjunto de alternativas já aventadas, tendo igualmente construído um novo modelo baseado numa variante daquele que os Países Baixos haviam, sem sucesso, tentado fazer passar nas últimas horas de Amesterdão [20][§§§§§§§§§§]. Este modelo, a que muito viriam a chamar o “modelo da Feira”, veio a constituir-se numa referência para o resto dos trabalhos da Conferência [21].

Mas sabedores de que sempre seria difícil controlar a ambição dos maiores Estados no tocante à reponderação, fomos dizendo da nossa preferência pelas fórmulas de “dupla maioria” - onde o elemento populacional prevalecia. Verdade seja que esta era uma posição não isenta de algum risco, caso as variáveis concretas de tais fórmulas evoluíssem num sentido excessivo. Com efeito, algumas fórmulas de “dupla maioria” poderiam ir muito longe na consideração do factor populacional, tanto mais que não havia, à partida, certezas quanto à aceitação do critério da maioria dos Estados [22], que era uma salvaguarda compensatória essencial. Mas sempre pensámos que a esperada rejeição deste modelo pelos “grandes” países (com excepção da Alemanha) acabaria por ser um factor decisivo para moderar os desejos de uma “reponderação simples” brutal [23]. O que se viria a passar nas últimas horas de Nice mostrou que tínhamos razão.

Pode já hoje revelar-se que Portugal defendia um modelo que assentava em elementos que fazem parte da fórmula que acabou por sair de Nice. Com efeito, interessava-nos encarar uma limitada reponderação compensatória pela perca do segundo comissário dos “grandes”, a que se somassem duas linhas de segurança: a exigência da presença de uma maioria dos Estados da União e de uma percentagem mínima de população europeia em qualquer maioria qualificada. É evidente que, nesse cenário, haveria sempre que tentar regular, da forma o mais eficaz possível, três variáveis: os valores da reponderação (no fundo, quantos votos “valia” um comissário) e as percentagens mínimas de votos e de população em todas as decisões por maioria qualificada.

Por que razão favorecíamos que uma reponderação limitada pudesse estar no centro do novo modelo a sair de Nice ? Porque a base da qual partíamos - o modelo que vigorou até Nice – reflectia, por contraste com um modelo de pura transposição do factor demográfico, aquilo que podia ser considerada como uma sobrerepresentação dos países de pequena ou média dimensão. Por esse motivo, constituía uma óptima base de negociação.

Os debates durante a presidência portuguesa mostraram duas realidades.

Por um lado, que havia uma maioria de 10 Estados em favor da manutenção de um comissário por Estado membro (se bem que, dentre esses, alguns pudessem admitir a fixação de um tecto máximo e aceitassem o princípio da reorganização da estrutura do colégio). O relatório que apresentámos à Feira afirma isto claramente.

Por outro lado, que havia uma larga maioria (uma vez mais 10 Estados) contra uma “reponderação simples” brutal. Mas a questão aqui era mais complexa, porque se dentre esses 10 Estados alguns favoreciam modelos de “dupla maioria”, outros eram apologistas de uma “reponderação simples”, ainda que bastante moderada. Só que estes últimos viriam a ser contados pela futura presidência no grupo dos que preferiam uma “reponderação simples”, o que deixava em minoria os defensores da “dupla maioria” !

Para além da questão do tandem Comissão/Conselho, as principais discussões no quadro da nossa presidência processaram-se em torno do alargamento das decisões por maioria qualificada - com um progresso lento, como Nice veio a reflectir [24] -, a revisão do art. 7º do Tratado, conjunturalmente potenciado pela situação austríaca [25], além de outros temas menos polémicos, como os relativos aos Tribunais de Justiça e de Primeira Instância [26], bem como o estatuto dos partidos políticos europeus.

Um tema mais controverso começava, contudo, a despontar: a nova distribuição de lugares no Parlamento Europeu, num cenário de alargamento, na hipótese, à época tida como segura, daquele parlamento não vir a exceder os 700 deputados. Neste domínio, uma proposta de simples redução linear da nossa presidência foi contestada pelos maiores Estados, o que levou a presumir que este seria também um tabuleiro mais para o “package deal” final.

Assinale-se, por fim, que o tema das “cooperações reforçadas” só foi objecto de um tratamento em reuniões de carácter informal (isto é, não apoiadas em documentos de Conferência), dado não fazer parte da agenda oficial do nosso mandato, o que só viria a acontecer na Feira, em Junho. De qualquer forma, fomos tão longe quanto possível nessa discussão, deixando alguns sinais e alertas, na tentativa de controlo do futuro desenvolvimento do trabalho de revisão dos modelos de Amesterdão neste âmbito.

O relatório que apresentámos ao Conselho da Feira sobre a nossa gestão da CIG foi deliberadamente objectivo, embora delimitador de opções para o futuro. Ter ido por um caminho diferente - como seria moldar o sentido do relatório aos nossos próprios interesses nacionais - representaria uma descredibilização sem qualquer vantagem prática, que teria como segura consequência uma rejeição expressa do texto por parte de várias delegações, deixando as mãos livres à presidência seguinte para “iniciar” os trabalhos da Conferência.

Refira-se que a nossa metodologia foi muito apreciada pela generalidade das delegações dos Estados de pequena e média dimensão, não tendo sido manifestamente do agrado dos “grandes” Estados, os quais, contudo, não conseguiram nela descortinar razões concretas para se dissociarem do texto. Poder-se-á dizer que fomos tão neutrais quanto possível, sem sermos masoquistas !


A CIG na presidência francesa

Muito foi já dito, e não apenas por nós, quanto ao modo como a presidência francesa geriu os trabalhos da CIG, de Julho até Dezembro. Para o que aqui nos importa, é interessante que possamos cruzar esse comportamento com os nossos interesses. E, nesse campo, vale a pena constatar que a presidência francesa foi um inesperado, ainda que não deliberado, auxiliar da nossa estratégia negocial nacional.

Como atrás ficou dito, a divisão entre “grandes” e “pequenos” não é uma realidade concreta do dia-a-dia comunitário, onde alguns “pequenos” estão porventura mais próximos de alguns “grandes” do que todos estes entre si. Mas se esta constatação é sustentada no plano racional, ela é menos evidente quando as propostas sobre a mesa reflectem uma inaceitável desigualização radical dos Estados com diferentes pesos demográficas. E ao termos tomado mais tarde a iniciativa de denunciar tais propostas, foi nossa intenção tornar o debate sobre esse ponto incontornável na agenda europeia.

Ao colocar sobre a mesa, desde o início da sua gestão da CIG, documentos marcados por falta de neutralidade, reflectindo com evidente desequilíbrio as posições de uns e de outros, a nova presidência veio, muito simplesmente, confirmar que não estávamos a exagerar quando afirmávamos que havia uma deliberada estratégia por parte dos maiores países para efectuar um “takeover” da União, prévio às novas adesões. A alargada rejeição que esses mesmos documentos foram colhendo, em quase todas as reuniões da CIG, acabou por criar um ambiente propício à refutação quase sistemática de todos os textos apresentados, os quais, aliás, quase sempre ignoravam de modo autista os argumentos alheios.

Se a nossa atitude nacional de resistência a este tipo de ofensiva teve desde o início franca aceitação no quadro do “grupo preparatório”, por parte de países próximos das nossas preocupações, a metodologia seguida pela presidência na condução dos vários formatos ministeriais que instituiu (reuniões formais da CIG, “conclaves” de MNE’s, reuniões e/ou jantares de ministros/secretários de Estado dos assuntos europeus), que acarretavam uma maior atenção mediática, acabou por ser o principal factor que ajudou à criação de um ambiente de radicalização das posições.

Os primeiros problemas colocaram-se na questão das “cooperações reforçadas”, onde foi nítida a tentativa de diluir as garantias de respeito pelas regras e salvaguardas dos Tratados, bem como de facilitar modelos de participação nacional restrita no quadro da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), para além de uma imensidão de modificações das condições de trabalho, que apareciam como atentados à transparência do sistema. O intenso labor que a delegação portuguesa desenvolveu nesta área permitiu, depois de semanas de árduos debates, atingir textos bastante mais equilibrados e aceitáveis. Se hoje se comparar os textos de Julho com o que ficou aprovado em Dezembro, poderemos verificar o quanto se andou. E, sem falsa modéstia, é reconhecido que Portugal teve um papel de liderança neste ponto do debate, com a autoridade que lhe advinha do facto de ter sido por sua iniciativa que o tema fora colocado na agenda da Conferência [27].

No caso da Comissão, as posições extremadas da presidência foram mais difíceis de combater, tanto mais que, escassas semanas passadas, era já dado por adquirido nos textos da presidência que não havia senão duas opções: ou uma Comissão muito reduzida, com rotação igualitária (sendo que alguns “grandes” Estados não confirmavam poder dispensar a sua presença permanente na Comissão) ou, caso prevalecesse a ideia de um comissário por Estado membro, a necessidade de introdução de uma hierarquia formal entre os comissários (ficando implícita a nacionalidade dos comissários “coordenadores”...). Não estando nas nossas intenções aceitar concentrar as opções nesta dualidade redutora, fomos forçados a “deslocar” sistematicamente a discussão para outros terrenos.

Ainda mais difícil se tornou o debate no tocante ao poder de voto no Conselho, dado que a presidência, mesmo privilegiando os cenários de “reponderação simples”, evitou sempre colocar sobre a mesa propostas quantificadas que pudessem objectivar uma análise concreta do tema. Situado o debate apenas em torno de vagas linhas orientadoras, tornava-se complicado desmontar a lógica subjacente às várias hipóteses, obrigando, também aqui, a um constante esforço de “deslocação” do argumentário para terrenos não previstos nos documentos da presidência, com óbvias consequências numa certa tensão no debate.

Neste caso, as linhas de intervenção que tínhamos como firmes, e para as quais procurávamos concitar apoios, eram a necessidade de manter sobre a mesa as propostas de “dupla maioria” (que sabíamos desagradáveis para os “grandes”, com excepção da Alemanha) e a defesa intransigente do princípio de uma maioria dos Estados membros em qualquer maioria qualificada.

Mas era por demais evidente, em Setembro/Outubro, que o debate continuava a resvalar para um terreno perigoso para os Estados de pequena e média dimensão. Face à indiferença da presidência perante as posições que se lhe opunham, pareceu-nos que só havia uma única solução: iniciar um “blitzkrieg” mediático e diplomático, na máxima exploração da contradição “grandes”/”pequenos” e na evidenciação da falta de neutralidade da presidência.

Dir-se-á que este foi um método algo radical, potenciador de divisões entre os Estados membros e que podia fazer perigar o clima de confiança indispensável a qualquer compromisso. Isso tem a sua quota de verdade, mas não fôramos nós os culpados da situação, tanto mais que tínhamos a nosso crédito um comportamento exemplar enquanto presidência da CIG. Mas o que estava em causa era muito importante, não apenas para a defesa do interesse nacional português, mas para a preservação de um certo equilíbrio inter e intrainstitucional que entendíamos desejável para o projecto europeu. E para grandes males, só grandes remédios!

Um trabalho foi assim desenvolvido de forma sistemática junto da comunicação social, através de artigos e entrevistas, bem como de contactos informativos regulares com a imprensa internacional acreditada em Bruxelas. Colóquios, conferências, seminários e outros eventos de natureza similar, em Portugal e no estrangeiro, foram aproveitados com o mesmo objectivo.

E não deixou também de ser relevante toda a sensibilização feita junto de Governos potencialmente próximos das nossas preocupações, em particular através da acção das nossas missões diplomáticas, para esse fim munidas de um completo argumentário. Com efeito, o nosso objectivo não se esgotava na afirmação da posição nacional sobre os temas, por maior força de razão que aquilo que afirmávamos pudesse ter. Para Portugal, era importante fazer partilhar das mesmas preocupações as opiniões públicas e os parlamentos nacionais de países com idêntica dimensão, por forma a que os respectivos governos pudessem ser mais facilmente mobilizáveis para as movimentações em sede de CIG que se previam para as últimas semanas de negociação.


O erro de Biarritz

O modo como foi gerido pela presidência o Conselho Europeu extraordinário de Biarritz representou, a nosso ver, um erro maior na estratégia de Paris na fase final da CIG.

Não se nos oferece qualquer dúvida que o que estava preparado em Biarritz era, muito simplesmente, a tentativa de definir, de modo radical, linhas de redução das opções que vinham a ser colocadas sobre a mesa da Conferência face aos principais temas, com vista a fornecer “orientações” definitivas e constrangentes para o trabalho subsequente.

Por razões óbvias, não vamos entrar aqui em detalhe sobre o que se passou em Biarritz e, em especial, sobre o teor dos debates informais entre os Chefes de Estado e de Governo. Mas foi a circunstância das clivagens terem sido assumidas a um nível tão elevado que acabou por transformar Biarritz num “ponto de não retorno” no ambiente algo conflitual criado na CIG, com incidências concretas no resultado de Nice. Porém, e uma vez mais, essa evolução veio objectivamente a processar-se no sentido dos nossos interesses, e à revelia da vontade da presidência.

A questão da Comissão saiu, assim, de Biarritz totalmente em aberto para a decisão final, mas marcada pela esmagadora preferência pelo modelo de um comissário por Estado membro. Assumida que foi esta realidade nas várias conferências de imprensa imediatamente após a cimeira, o tratamento do tema ia muito mais controlado para Nice. Adiante veremos como as coisas acabaram por ser algo mais simples do que se temia.

Biarritz é também, do mesmo modo, o regresso da “dupla maioria” como opção a reter em paralelo com a reponderação. Diluídos que estavam alguns equívocos do passado, tudo regressava à estaca zero em matéria de peso nacional nas decisões do Conselho. E, pela primeira vez a um nível tão elevado, muitas das delegações defenderam o princípio de uma maioria de Estados (alguns falaram então ainda de “metade dos Estados”) em qualquer maioria qualificada. Também aqui, as coisas iam no caminho que nos interessava...

Algum equívoco se estabeleceu em Biarritz, contudo, quanto a possíveis avanços na extensão da maioria qualificada e no tocante às “cooperações reforçadas”.

No primeiro caso, houve como que uma certa confusão entre uma generalizada assunção do discurso “politicamente correcto” favorável ao tendencial abandono da unanimidade e a falta de predisposição efectiva para levantar algumas reservas nacionais de fundo, parte das quais vinham desde Amesterdão. Não obstante o excelente e esforçado trabalho da presidência francesa neste domínio, que envolveu mesmo um algum avanço nas próprias posições da França enquanto delegação, o optimismo que ressaltou de Biarritz pareceu, a alguns de nós, um tanto excessivo, em especial nas áreas social, fiscal e de justiça e assuntos internos. Os resultados em matéria de maioria qualificada que saíram de Nice confirmaram a correcção dessa leitura.

Quanto às “cooperações reforçadas”, era óbvio que a distância entre as diversas posições em confronto vinha já sendo reduzida nas últimas semanas e que começava a criar-se uma linha tendencial favorável a um texto de compromisso. Em especial, o fim da possibilidade de recurso ao Conselho Europeu por um Estado membro que entendesse bloquear e a fixação do limiar de um mínimo de 8 Estados para o arranque de uma “cooperação reforçada” começavam a merecer grande apoio. Porém, Biarritz pareceu iludir dois pontos que estavam ainda em aberto: a faculdade excepcional proposta para que 4 ou 5 países pudessem agir em nome da União no quadro da PESC e o alargamento das “cooperações reforçadas” no II pilar à segurança e defesa. Uma larga maioria opunha-se à primeira ideia e os Estados de tradição neutralista ou ultra-atlanticista consideravam indesejável a segunda abordagem. Ambas as ideias viriam, contudo, a cair no caminho para Nice.

Os resultados políticos de Biarritz foram quase sempre lidos pela imprensa internacional como tendo significado o ponto mais elevado de conflito entre os “grandes” e os “pequenos” Estados, vistos estes últimos como resistentes a uma tentativa clara tendente à sua menorização. Muito embora a presidência se tivesse esforçado para combater esta interpretação, ela acabou por passar para as opiniões públicas, em especial dos Estados de menor dimensão, suscitando tomadas de posição nessa mesma linha por parte de vários governos, alguns dos quais se sentiram mobilizados para iniciarem então um processo bilateral de coordenação de posições.

Pela parte portuguesa, cujo primeiro-ministro fora indiscutivelmente em Biarritz a figura mais proeminente do lado dos Estados de menor dimensão, procurou-se garantir que se não perdia a atenção mediática para o ambiente de uma certa dramatização entre os dois grupos de Estados. Uma conferência de imprensa em Bruxelas para jornalistas internacionais, de que transpirou algum pessimismo sobre a contribuição de Biarritz para um avanço da CIG, entrevistas em várias televisões, rádios e imprensa de países membros, assim como a presença do governo português num longo e activo debate no Parlamento Europeu (a anteceder precisamente a presença da presidência nessa mesma instância), fizeram parte dessa estratégia, sempre acompanhada por uma intervenção activa e firme no quadro das reuniões ministeriais e do “grupo preparatório”. O objectivo era inequívoco: sublinhar em toda a parte a nossa sincera indisponibilidade para vir a aceitar um acordo que nos menorizasse de forma injusta no poder no Conselho, explicar o que alguns pretendiam, de facto, com a ideia da redução da Comissão e - o que não deixava de ser vital, como adiante se verá - continuar a referir os efeitos das propostas mais radicais sobre a posição dos futuros aderentes no quadro da União.

Durante algum tempo no mês de Novembro, Portugal entendeu não dever aceder a apelos no sentido de que fosse o nosso país a tomar a iniciativa de coordenar algumas posições do grupo de Estados de pequena e média dimensão. No entanto, o agravamento do clima negocial levou a que promovêssemos, em 24 de Novembro, uma reunião discreta dos negociadores da CIG dos 10 Estados de pequena e média dimensão, que teve lugar na Representação Permanente de Portugal em Bruxelas. O objectivo imediato era conseguir repor na agenda da CIG a proposta da “dupla maioria”, que a presidência tinha formalmente abandonado, bem como definir eventuais linhas comuns sobre a questão da Comissão que pudessem ser transmitidas na reunião desse mesmo dia e nos “confessionários” bilaterais que a presidência entretanto iniciara com cada país [28].

Esta iniciativa provou a sua utilidade: não apenas a “dupla maioria” ficou, de novo, consagrada como opção alternativa à “reponderação simples” na reunião da CIG desse mesmo dia, mas também, no caso da Comissão, a presidência e os maiores Estados puderam observar a afirmação de uma abordagem maioritária (embora “nuancée” nas suas várias fórmulas) que se opunha às suas propostas e que ditava já a linha que viria a projectar-se em Nice.

Este trabalho de coordenação nas últimas semanas, que passou posteriormente por intensos contactos bilaterais aos mais diversos níveis, acompanhando as visitas da presidência às diversas capitais, acabou por se revelar vital na preparação do ambiente para a derradeira cimeira.


Crónica dos dias de Nice

Não obstante um ambiente mais distendido que se verificou nas últimas semanas, marcadas por uma atitude menos pressionante por parte da presidência, ninguém tinha dúvidas de que, na cimeira de Nice, iriam ser ressuscitadas algumas propostas favoráveis aos países mais populosos.


1º dia - 5ª feira, 7 de Dezembro

O primeiro dia do Conselho Europeu iniciou-se com outros temas, para além da CIG. Após um encontro com os países candidatos à adesão, foi feita a “proclamação” da Carta dos Direitos Fundamentais, afastada que estava já então a possibilidade da sua integração ou simples referência no Tratado.

O debate dos chefes de Estado e Governo sobre a reforma institucional foi relativamente genérico, sendo repetidas as posições nacionais tradicionais.


2º dia - 6ª feira, 8 de Dezembro

A CIG só voltou a ser abordada a partir de metade da tarde. A presidência convocou cada delegação para “confessionários” bilaterais onde, sem dar qualquer indicação sobre as suas intenções, ouviu apenas o que cada Estado tinha para defender como posição nacional. Foi possível verificar os efeitos benéficos das conversas de coordenação havidas nas semanas anteriores, não obstante se pressentir que, no caso da Comissão, havia o risco de serem exploradas algumas “nuances” no discurso dos Estados de menor dimensão.

Pela nossa parte, deixámos as seguintes preferências: “dupla maioria”, embora pudéssemos encarar o “modelo da Feira” em matéria de reponderação, mas sempre associado com o princípio da maioria de Estados; Comissão com um comissário por Estado membro, com hipótese de revisão quando se atingisse um determinado número de Estados, sem se determinar desde já o sentido dessa revisão; recusa do lançamento de “cooperações reforçadas” por um número de Estados inferior a oito, mas aceitando a segurança e defesa como tema possível, tendo sido expresso o interesse em ver reforçado nesse contexto o papel da Comissão. Na maioria qualificada, a nossa lista negativa era a habitual: algumas escassas áreas da fiscalidade, assuntos sociais, limitados temas ligados à livre circulação de pessoas e à coesão económica e social (abrindo aqui a possibilidade para a fórmula que veio a ser consagrada, como adiante se verá).


3º dia - Sábado, 9 de Dezembro

O documento apresentado pela presidência, na manhã do terceiro dia, não ofereceu a mais leve surpresa à delegação portuguesa. Quase linha por linha, as propostas eram previsíveis e, na sua generalidade, inaceitáveis. O dia não ia ser fácil.

Naquela que foi a primeira proposta quantificada em matéria de ponderação de votos, a presidência francesa propunha uma escala de 3 a 30 votos (com Portugal a dispor de 10). O critério da maioria dos Estados era apresentado pela negativa: uma maioria qualificada estaria obtida se não tivesse contra ela uma maioria de Estados.

No caso da Comissão, mantinha-se a ideia, que a presidência vinha a acalentar, de fixar um tecto de 20 comissários em 2010, com rotação igualitária.

No caso do Parlamento Europeu, era feita uma distribuição que favorecia manifestamente os grandes Estados, mas ainda dentro do limite de 700 deputados previsto no Tratado de Amesterdão.

As questões sensíveis sobre a maioria qualificada eram apresentadas em termos gerais, sem textos de apoio, o que tornava a discussão mais complexa. Porém, a coesão económica e social (art. 161º) era já apresentada como podendo passar a maioria qualificada a partir de 2007 (ou adiada até à adopção das novas perspectivas financeiras), como os “países da coesão” pretendiam.

O primeiro-ministro português, o primeiro a intervir na sessão, fez um forte ataque às propostas, que rejeitou liminarmente, falando em “golpe de Estado institucional” por parte dos “grandes” países. Deixou claro que o governo português - que mantinha um contacto permanente com a sua oposição - não concordava com elas nem tinha qualquer espaço político de manobra interno para as poder vir a aceitar.

Na primeira ronda de intervenções verificou-se que as propostas da presidência tinham apenas um apoio minoritário. Além disso, o texto comportava uma evidente “provocação” aos países candidatos, ao dissociar no Conselho a Polónia da Espanha (reconhecido mais tarde como “une erreur de frappe” por parte da presidência) e ao dar uma expressão de voto o mais reduzida possível à maioria dentre eles.

Entretanto, fontes da delegação portuguesa foram autorizadas a expressar junto dos meios de comunicação social dos países candidatos esta nossa leitura, não apenas na lógica de coerência do que sempre afirmáramos, mas também para explicar que um possível veto que Portugal viesse a fazer ao Tratado de Nice não deveria ser confundido com quaisquer reticências face ao alargamento, como alguns poderiam ser tentados a sugerir mais tarde.

Sem o carácter de documento formal, Portugal circulou uma contraproposta de reponderação a Quinze que deixava em aberto a hipótese de à Alemanha serem dados mais votos do que aos restantes 3 países que compartilhavam o mesmo “cluster”, dava menos dois votos à Espanha e deixava sem indicação a quantificação da possível descolagem dos Países Baixos do “cluster” onde também estava Portugal (que, ao contrário da Bélgica, não se opunha a esta valorização dos Países Baixos), do qual fazia aproximar a Suécia.

Entretanto, uma proposta rectificativa do modelo português de reponderação viria a ser mais tarde apresentada pela Finlândia, a qual para nós era também aceitável como base de trabalho. Em qualquer dos casos, a presidência recusou submeter os textos à discussão, pelo que as sondagens sobre a possível aceitação daquelas tabelas se processaram sempre à margem da sessão.

O governo português deixou entretanto evidente, perante uma ávida conferência de imprensa internacional, que, com base no que havia sido proposto, não havia condições para qualquer compromisso, apelando à presidência para repensar.

No início da sessão da tarde, a presidência apresenta um novo documento de sessão. Quanto à ponderação, mantinha-se o quadro da manhã, com a referência a 58% de população europeia exigida para qualquer maioria qualificada (percentagem mínima actual), mantendo-se a salvaguarda da maioria do Estados revertida (uma maioria qualificada estaria obtida se não tivesse contra ela uma maioria de Estados). Quanto ao Parlamento Europeu, o quadro era idêntico ao de manhã.

Surpreendentemente, porém, este texto continha já uma proposta sobre a Comissão Europeia que era perfeitamente aceitável para Portugal: um comissário por Estado membro até a União ter 27 Estados e, a partir de então, uma Comissão com um tecto mais reduzido a ser definido, nessa altura, por unanimidade. No entanto, ficava desde já garantida a rotatividade em moldes absolutamente igualitários e abandonavam-se quaisquer ideias de hierarquia ou coordenação. A indicação de vice-presidentes seria feita nos moldes que vínhamos a defender e os poderes do presidente eram retocados de forma aceitável.

Que razões levavam a presidência francesa a colocar, tão cedo na negociação, uma proposta sobre a Comissão de tão fácil aceitação ? Excluída a hipótese de erro, só pode entender-se como um gesto para vários Estados de pequena e média dimensão que tinham apresentado a questão da Comissão como essencial, tentando assim “comprar” a sua imediata boa vontade quanto à reponderação ou, pelo menos, atenuar a sua resistência neste domínio. Se esta era a aposta, ela falhou por completo.

Assim, Portugal iniciou o debate da tarde dando o seu acordo ao capítulo da Comissão - o que viria a ser repetido praticamente por todos os 10 Estados de pequena e média dimensão -, continuando a rejeitar as propostas quanto ao Conselho e ao Parlamento Europeu. Com a Comissão “adquirida”, a luta passou a concentrar-se nestes dois pontos.

Em paralelo com o início da sessão da tarde, algo se passou, entretanto, nos bastidores. Dada a insistência da presidência em torno das teses de reponderação, e a circunstância das contrapropostas portuguesa e finlandesa terem provocado uma divisão entre Estados de pequena e média dimensão que se constatava impossível de conciliar, tornava-se necessário conseguir repor na discussão do Conselho Europeu a tese da “dupla maioria”. A razão era simples: a incomodidade que tal provocaria à presidência francesa poderia ajudar a moderar as suas propostas radicais de reponderação.

Portugal tomou a iniciativa de organizar uma reunião de emergência dos negociadores do Grupo Preparatório dos 10 Estados de pequena e média dimensão. Se as divisões no tocante aos modelos de reponderação eram evidentes (a rejeição da Bélgica de deixar os Países Baixos sair do “cluster” comum, se à Alemanha não fosse dado o mesmo tratamento, continuava firme; a subida da Suécia não agradava a alguns parceiros), quase todos se mostraram inclinados a propor aos seus chefes de Estado e de Governo a retoma da hipótese da “dupla maioria”. Acrescia que a Alemanha dera sinais de continuar a persistir no modelo (e a não insistir formalmente em ter mais votos que a França) e a Itália fizera constar que a ele poderia vir a aderir.

Entretanto, a “batalha” da comunicação social continuava a ser ganha pelos pequenos e médios Estados, que lançavam de modo regular avisos sobre a sua recusa das soluções propostas e, no limiar, culpavam a metodologia e o carácter pouco representativo das propostas da presidência por um possível insucesso. O trabalho junto da comunicação social dos países candidatos continuava também a ser desenvolvido com intensidade.

Depois de debater aspectos da maioria qualificada e do cenário “pós-Nice” [29], a presidência encerrava os trabalhos deste terceiro dia sem dar mostras das conclusões que retirara dos debates. Sabia-se que a presidência procuraria jogar no dia seguinte com a “conquista” pontual de algumas delegações, sugerindo compensações a nível de outras áreas, de que eram exemplo mais óbvios os lugares no Parlamento Europeu, que passou a funcionar, até ao fim do Conselho Europeu, como uma espécie de “saco azul” para compensações negociais. Mas sabia-se que o cenário de crise também não era descartado por Paris, falando-se mesmo na eventualidade de, perante o impasse, virem a ser convocados pela presidência os países fundadores da União. Para uma eventual “refundação” da União ?

Para Portugal, não obstante os avanços conseguidos na Comissão, o cenário não parecia brilhante, mas a determinação em não aceitar um resultado desequilibrado era plena, não obstante os riscos políticos que encerrava. Moderámos, contudo o nosso discurso mediático, sublinhando os aspectos positivos do novo documento da presidência (solução para a Comissão), deixando claro estar-se ainda muito longe quanto aos restantes pontos, pedindo um esforço de aproximação à presidência. A hipótese de não acordo continuava a ser sugerida como possível - e isso correspondia ao sentimento verdadeiro da delegação portuguesa.


4º dia - Domingo, 10 de Dezembro

A presidência iniciou os trabalhos com um novo documento.

Quanto ao Conselho, era apresentada uma nova tabela de ponderação de 3 a 30 votos (com 11 para Portugal, em lugar dos 10 anteriores). O limiar da maioria qualificada de votos subia para 73,3 % (em lugar dos 71,3 % actuais). A população mínima exigida para uma maioria qualificada passava a 62% (em lugar dos 58% actuais), mas com uma cláusula de verificação demográfica [30]. O princípio da maioria dos Estados membros voltava a figurar de forma inversa.

Quanto ao Parlamento Europeu, a presidência “rompia” o tecto de 700 deputados fixado em Amesterdão e continuava a favorecer os grandes Estados.

Portugal, Bélgica e alguns outros países dizem continuar a não poder aceitar o proposto. Porém, era sensível que alguns Estados de pequena e média dimensão começavam a dar preocupantes sinais de flexibilidade quanto ao modelo de reponderação.

A presidência interrompe a sessão e, ao retomá-la, coloca sobre a mesa uma proposta de reforço da posição do Luxemburgo e de Chipre (em ambos os casos de 3 para 4 votos). O gesto face a Chipre foi interpretado por alguns como uma atitude que poderia também flexibilizar Atenas, o que, contudo, não viria a acontecer. Dando como aceites estas alterações, a presidência propôs encerrar o debate sobre a reponderação e retomar o tema do “pós-Nice”.

Portugal interrompe para deixar uma mensagem clara à presidência: perante as propostas que continuam sobre a mesa quanto aos votos, não aceita o Tratado. A Bélgica secunda esta intervenção. A sessão é de novo interrompida.

Após o almoço, o primeiro-ministro francês pede para ver o seu homólogo português, que lhe repete o que Portugal desejava: recuo em votos dos maiores países, subida de Portugal para 12 votos e maioria dos Estados exigida em qualquer maioria qualificada.

No início da sessão da tarde, a presidência decide tratar de outros temas. Na maioria qualificada, Portugal obtém tudo o que deseja. As “cooperações reforçadas” ficam num modelo aceitável para nós. Entretanto, fruto de um debate no Comité Político, o art. 17º sobre a PESC evolui da forma que Portugal vinha a apoiar há semanas.

Nos corredores da cimeira e na sala de imprensa, o isolamento de Portugal e da Bélgica começava a ser o facto mais comentado, não obstante vários outros Estados de pequena ou média dimensão, perante estas duas posições, darem mostras de partilhar as preocupações daqueles dois países.

A delegação portuguesa começou, entretanto, a preparar um projecto de declaração justificativa da sua possível decisão de não dar o seu acordo no final da Conferência. O projecto chegou informalmente a elementos do Secretariado-Geral do Conselho e a delegados de alguns Estados membros. Minutos mais tarde, algumas cadeias internacionais de televisão e de rádio davam como certo o abandono de Portugal da cimeira. Em conferência de imprensa posterior, o governo português manifestava o seu empenho em continuar a discussão, até à obtenção de um acordo. Sem confirmar a existência do texto de abandono, Portugal advertia que esse cenário não podia ser descartado em absoluto.

Entretanto, no Conselho Europeu, a questão dos votos domina o debate, com várias interrupções para consultas bilaterais. Muitos outros Estados de pequena e média dimensão passam a sublinhar, de uma forma mais clara, a sua oposição às propostas da presidência, a qual chega a aventar a possibilidade de adiar a CIG por 2 ou 3 meses. O primeiro-ministro português tem duas intervenções muito fortes, continuando a dar mostras de não poder ter qualquer flexibilidade.

A presidência francesa faz novas consultas e procura bilateralmente Portugal. Propõe agora baixar de 30 para 29 os votos dos maiores Estados (Espanha passaria de 28 para 27), subindo Portugal para 12 votos. O princípio da maioria dos Estados seria incluído como Portugal desejava. Os limiares de votos e de população passariam respectivamente a 74,56% e 62%, neste caso com a cláusula de verificação demográfica. Portugal afirma discordar no limiar proposto para a maioria qualificada, que prejudica a pretendida facilitação do processo de decisão, que constituía o objectivo desta CIG. Porém, num espírito de compromisso, aceita a proposta, desde que o acordo geral possa ser conveniente a todos os parceiros.

A Bélgica, contudo, não aceita. O acordo é insatisfatório dado que os Países Baixos saem do seu “cluster”, o que atenta contra os equilíbrios do Benelux. Para além da realização de Conselhos Europeus em Bruxelas - que passa a “capital da Europa” ! - são-lhe oferecidos 22 parlamentares europeus (em lugar dos 20 que a tabela antes proposta lhes atribui, tal como a Portugal e à Grécia). A Grécia, que tem mais população, naturalmente não aceita.

Um certo parceiro europeu sugere informalmente à presidência que a Bélgica e a Grécia fiquem com 22 deputados, deixando Portugal apenas com 20. Avisada do alvitre por alianças velhas, a nossa delegação deixa claro que se oporá, o que faz com que a presidência decida atribuir a Portugal também 22 deputados.

A Bélgica continua a resistir ao acordo, que aceitaria facilmente se à Alemanha fosse dado, pelo menos, mais um voto que aos restantes três grandes Estados. Após várias interrupções, a Bélgica cede, desde que se crie um novo “cluster” superior ao dos Países Baixos, dando à Roménia 14 deputados (em lugar dos 13 previstos). No debate, e para corrigir uma injustiça evidente na proposta inicial, à Lituânia são dados mais 2 votos, pelo que passa a 7. Finalmente, a Bélgica exige um limiar evolutivo da percentagem de votos para a maioria qualificada, só se atingindo os 73,4% propostos pela presidência no final do alargamento aos 27 Estados, a fim de facilitar o processo decisório.

Está obtido o compromisso, embora se tenha saído de Nice com uma contradição aritmética entre estes limiares percentuais e os votos. A Espanha é o país que mais reclama porque, apesar de ter obtido uma subida substancial do seu peso no Conselho, não alcança o objectivo central que trazia para a Conferência - poder bloquear com um Estado “grande” e com um “médio” -, para além de ser o país mais penalizado no Parlamento Europeu (menos 23 % de deputados). O diferendo resolver-se-ia nos derradeiros dias de Dezembro.

Para Portugal, o compromisso de Nice era satisfatório. Na Comissão, na maioria qualificada, nas “cooperações reforçadas” e no Parlamento Europeu obtivéramos excelentes resultados. Nos votos no Conselho, a percentagem de poder que cabe a Portugal é melhor que a de qualquer outro modelo discutido à mesa da CIG - mesmo o “modelo da Feira” com que a nossa própria presidência ilustrara uma fórmula possível. Embora os limiares para a maioria qualificada tenham subido, o que, em princípio, favorece a posição dos países mais populosos, é de sublinhar que, tornando-se as minorias de bloqueio mais pequenas, sobe teoricamente o peso potencial de Portugal dentro delas. Além disso, a introdução do critério da maioria dos Estados fornece uma rede suplementar de segurança da maior importância. Se é permitida uma nota pessoal ao autor deste texto, é para dizer que, no início desta CIG, ainda não acreditava que fosse possível vir a introduzir uma salvaguarda deste género no Tratado de Nice.


Algumas conclusões

O que atrás fica dito espelha, de forma tão fiel quanto possível, aquilo que constituiu a estratégia negocial portuguesa durante a Conferência Intergovernamental de 2000. Como todas as experiências semelhantes, incorpora elementos de conjuntura, posições pré-definidas e adaptações tácticas ao longo dos trabalhos. Julgou-se útil deixar aqui este testemunho, como elemento de análise e de estudo, não obstante ele não poder deixar de ser relativizado, por se tratar de uma perspectiva que é forçosamente subjectiva, até porque interessada e participante.

De notar que a circunstância de ter cabido a Portugal a condução da CIG na primeira fase dos trabalhos, e de a ter exercido da forma independente como o fez, acabou por se revelar um elemento que propiciou o reconhecimento de uma certa linha de coerência na atitude nacional.

Portugal apresentou, desde o início, uma agenda de posições muito clara e lógica, que aliava um espírito afirmadamente europeu com a defesa de posições de interesse nacional onde muitos outros se reviam. Não nos confinámos aos temas de implicação directa para o país, antes estivemos em todos os espaços de debate, sempre numa filosofia de onde decorriam óbvias prioridades e hierarquia de interesses, que tentámos sempre fossem transparentes para os nossos parceiros. Mesmo a nossa intransigência em muitos momentos procurou estar sempre apoiada num argumentário com solidez europeia.

O facto de termos conseguido posicionar-nos de modo responsável nos temas mais estruturantes (extensão da maioria qualificada e “cooperações reforçadas”) deu-nos crédito para poder ter uma atitude de grande firmeza nas questões de influência e poder (Comissão e peso no Conselho). Alguns esperariam que não fôssemos tão longe na defesa de certas posições, mas foi patente que todos perceberam desde cedo qual era a nossa margem política de manobra interna, bem como a coerência e a fundamentação global da nossa atitude na CIG. E o facto de termos saído de uma presidência bem sucedida, com um primeiro-ministro com uma imagem europeísta bem firmada, deu outra solidez à nossa posição nos últimos meses da negociação, em especial nos Conselhos Europeus de Biarritz e de Nice.

A firme definição de posições nas sessões ministeriais da CIG, bem como nos Conclaves e noutras reuniões de nível idêntico, contribuiu para reforçar politicamente o trabalho executado no “grupo preparatório” e, de uma forma muito vincada, foi decisiva para estruturar a intervenção posterior nos Conselhos Europeus. A circunstância de ter ficado evidente que existia uma linha argumentativa coerente e sem hesitações, que atravessava de forma transversal os diversos patamares de negociação, revelou-se um factor caracterizador da posição nacional que acabou por ter a maior importância.

De destacar a acção das nossas Embaixadas e os contactos com os representantes diplomáticos dos Quinze e dos países candidatos em Lisboa. No primeiro caso, foi possível dotá-las de linhas de pesquisa que iam aprofundando a evolução das posições nacionais, passando também as mensagens certas para todos os nossos parceiros. No segundo caso, tentou garantir-se que aos representantes diplomáticos estrangeiros eram transmitidos, com o maior rigor, os elementos exactos sobre a nossa atitude perante as grandes questões. Todos eles testemunharão que o que sempre lhes foi dito como posição nacional foi precisamente o que se levou à prática.

No âmbito parlamentar, é de destacar o diálogo constante mantido com a Comissão dos Assuntos Europeus da Assembleia da República, que recebeu todos os documentos da Conferência e com a qual foram discutidos à exaustão os diversos passos da negociação, o que viria a ser extensivo à sua congénere dos Negócios Estrangeiros, quando o Governo a ela foi convocado.

Os contactos directos do primeiro ministro com os lideres da oposição, antes da Feira, de Biarritz e de Nice, além de várias vezes durante o curso desta última cimeira, revelou-se crucial para dar à posição defendida pelo Governo um cariz tanto quanto possível nacional.

De igual modo, foi decisiva a frente do Parlamento Europeu, credibilizando a presidência portuguesa na fase de lançamento da CIG - quer no plenário, quer nas Comissões especializadas -, por forma a Portugal ter a possibilidade de ver escutadas as suas posições enquanto delegação nacional, na fase final da Conferência.

Parece ainda de destacar, por ter sido indispensável nesta CIG, o constante trabalho com a Comunicação Social, quer nacional, quer estrangeira. Não se tratou de a instrumentalizar, passando mensagens viciadas, mas apenas de aproveitar o destaque dado às posições nacionais para sublinhar, com grande força, quais os nossos limites e a nossa leitura franca sobre aquilo que estava verdadeiramente em causa. Por vezes essa franqueza surpreendeu alguns, por extravasar da linguagem redonda com que certa escola diplomática se habituou a almofadar a realidade. Mas essa foi, num certo momento, a única resposta possível para poder fugir de alguns becos negociais onde tentaram encurralar-nos - porventura pelas melhores razões, mas que não eram as nossas...

Neste campo, poder-se-á argumentar que algumas vezes se terá ido bastante longe na dramatização dos conflitos de posições, em especial entre Estados “grandes” e “pequenos/médios”. Essa, contudo, foi uma condição mínima e essencial para conseguir chamar a atenção para a inadequação e desequilíbrio de certas propostas, as quais, a terem vingado, teriam representado percas de grande importância para os interesses do país e para aquilo que entendíamos serem os equilíbrios vitais do processo europeu. O discurso de contraposição com outros interesses afirmados por alguns dos nossos parceiros, em especial pela presidência francesa, foi sempre mantido nos limites de um são relacionamento, que não exclui a frontalidade, nunca se situando - contrariamente a alguns relatos - num registo de qualquer conflitualidade política bilateral. Cada um de nós defendeu os interesses que entendia por legítimos, no quadro de afirmação democrática de atitudes e de obtenção de consensos que as instituições da União Europeia proporciona.

A CIG 2000 - a única Conferência Intergovernamental em cuja direcção Portugal participou - acabou por não ser o exercício de revolução radical das instituições em que alguns a pretendiam transformar, da mesma maneira que o seu resultado não terá sido totalmente inócuo face a certos equilíbrios que outros, como nós, entendiam dever preservar. Foi, contudo, o exercício do possível que permite à Europa continuar a caminhar e a Portugal participar nesse movimento com uma razoável capacidade de afirmação. Não era outro o nosso objectivo.


(Publicado na revista “Negócios Estrangeiros” (nº1, 2001), ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa)



[2] O autor agradece as contribuições e sugestões dadas para a elaboração deste texto pela Dra. Josefina Carvalho, pelo Dr. Pedro Lourtie e pela Dra. Ana Leitão. 

[3] O artigo 1º do Protocolo relativo às Instituições na perspectiva do Alargamento da EU estabelece que “à data da entrada em vigor do primeiro alargamento da União, e não obstante o disposto no nº 1 do artigo 157º do TCE, a Comissão será composta por um nacional de cada Estado membro, desde que nessa data, a ponderação de votos no Conselho tenha sido alterada (...) compensando os Estados membros que prescindam da possibilidade de designar um segundo membro da Comissão”. Por seu lado, o artigo 2º do mesmo texto determina que “o mais tardar um ano antes da data em que a União Europeia passar a ser constituída por mais de vinte Estados membros, será convocada uma Conferência de representantes dos Governos dos Estados membros, a fim de proceder a uma revisão global das disposições dos Tratados relativas à composição e ao funcionamento das Instituições”.

[4] Embora este terceiro tema não fizesse parte do compromisso de Amesterdão, ele surge numa declaração unilateral da Bélgica, França e Itália, inscrita na acta final do Tratado, acabando mais tarde por ser assumido pelos restantes como uma questão incontornável a tratar na nova CIG

[5] As conclusões de Helsínquia indicam que a Conferência deverá examinar “a dimensão e a composição da Comissão Europeia, a ponderação de votos no Conselho e o possível alargamento das votações por maioria qualificada, bem como outras alterações que será necessário introduzir nos tratados a propósito das instituições europeias, relacionadas com as questões supracitadas e em aplicação do Tratado de Amesterdão”.

[6] Desde o início que assumimos uma perspectiva crítica desta revisão maximalista (cf. “Uma reforma indispensável ?”, in “Europa - novas fronteiras”, (nº 5, 1999) , Centro Jacques Delors), Lisboa.

[7] No parecer que apresentou antes do início da CIG, em Janeiro de 2000, a própria Comissão propõe, quanto àquilo que a CIG deverá fazer no que a ela própria respeita, duas opções: ou uma Comissão com 20 comissários, com rotação em estrita igualdade, ou uma Comissão com um comissário por Estado membro “conjuntamente com medidas para reorganizar profundamente a Comissão”. Já durante a presidência francesa, face à pressão maioritária no sentido da fixação do princípio de um comissário por Estado membro, a Comissão acaba por abandonar o primeiro cenário. Mesmo no caso do segundo cenário, a Comissão teve que vergar-se à falta de vontade dos Estados membros para, por exemplo, encararem “a possibilidade de os membros da Comissão coordenarem e dirigirem a acção de alguns dos seus colegas, sobre os quais exerceriam autoridade”.

[8] De assinalar que a Itália foi, dentre todos os maiores países, o único que sempre teve uma posição de máxima abertura face à utilização das votações por maioria qualificada, independentemente do seu peso no Conselho. Esta foi, igualmente, a posição permanente da Bélgica - o único dos países “pequenos”/”médios” que se mostrou com total disponibilidade para abandonar as votações por unanimidade.

[9] A exemplo do que aconteceu na negociação do Tratado de Amesterdão, verificou-se, na CIG 2000, que alguns países condicionavam a sua abertura para considerarem a passagem a maioria qualificada de certas decisões à não existência de um automatismo entre esse regime de voto e a introdução de co-decisão com o Parlamento Europeu.

[10] Nos restantes pilares, os alinhamentos fazem-se normalmente por outro tipo de clivagens. No II pilar, recorde-se as posições específicas do Reino Unido, por um lado, e dos países de tradição neutralista, por outro, que colocam dificuldades a determinados avanços na PESC. No III pilar, basta lembrar os “opt-out” britânico e irlandês em Schengen.

[11] Antes do início da CIG de 1996, Portugal deu a conhecer em documento a sua posição geral para a Conferência ( “Portugal e a Conferência Intergovernamental de 1996”, ed. MNE, Lisboa, 1996). Dado que a agenda desta CIG era muito reduzida, e retomava apenas temas que na anterior haviam ficado por resolver e sobre os quais as posições nacionais eram por demais conhecidas, optou-se por não avançar com um documento idêntico.

[12] Em Amesterdão foi prevista a possibilidade de alguns Estados membros - cujo número não poderia ser inferior a metade dos Estados – aprofundarem uma cooperação entre si em domínios que relevassem dos primeiro ou terceiro pilares, fazendo uso do quadro institucional e dos procedimentos previstos no TUE e no TCE.

[13] Portugal foi o primeiro país a apresentar, durante a CIG de 1996, uma proposta de cláusula de “cooperações reforçadas”. Grande parte das condições então avançadas pela delegação portuguesa fez então vencimento no texto final. 

[14] A “reponderação simples” consiste na revisão da actual grelha de ponderação, sem que a esta se cumule qualquer requisito adicional, seja de um número mínimo de Estados ou de uma certa percentagem da população total da União Europeia.

[15] As conclusões do Conselho Europeu de Helsínquia previam a possibilidade da presidência portuguesa propor a inscrição de outros pontos na ordem de trabalhos da CIG.

[16] No anexo 7.3 do seu relatório ao Conselho Europeu da Feira, a presidência portuguesa referiu vários temas que, até essa data, haviam sido examinados pela CIG, sem que a Conferência houvesse concluído pela necessidade do seu agendamento posterior: simplificação dos Tratados, repartição de competências, personalidade jurídica da União, possibilidade de adesão da UE à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, disposições para a luta contra a fraude e instituição de um procurador europeu com esse fim, expiração do Tratado CECA, desenvolvimento de outras políticas, hierarquia de normas.

[17] Só a Grecia, a Itália e os países do Benelux acompanhavam Portugal no interesse pelo alargamento da agenda da CIG.

[18] Os países do Benelux, em documento sobre a CIG apresentado ainda durante a presidência finlandesa, foram os primeiros a sugerir que a agenda da CIG viesse a incluir as “cooperações reforçadas”.

[19] “A dupla maioria” consiste na fixação de um duplo limiar expresso, por um lado, em número de Estados ou de votos ponderados, e, por outro, em percentagem da população total da União.

[20] O chamado “modelo de Amesterdão” (anexo 2.6 do relatório sobre a CIG da presidência portuguesa ao Conselho Europeu da Feira) previa uma escala de 3 a 25 votos (Portugal com 10) e consistia na duplicação dos votos actuais (com excepção do Luxemburgo, que passaria de 2 para 3), dando 5 votos mais aos países que perdessem o seu segundo comissário e 2 votos aos Países Baixos. Esta proposta não foi, pelas razões que são evidentes, bem aceite nos países do Benelux.

[21] O chamado “modelo da Feira” foi uma fórmula ilustrativa de “reponderação simples” (anexo 2.7 do relatório sobre a CIG da presidência ao Conselho da Feira). Nele se previa uma escala de 4 a 25, que partia do seguinte pressuposto: todos os votos eram duplicados, sendo concedidos mais 5 votos aos países que perdessem o seu segundo comissário.

[22] Trata-se do critério segundo o qual deve estar sempre representada nas decisões  tomadas por maioria qualificada pelo menos a maioria dos Estados membros, como tem, aliás, sido a regra até à data. Este critério deve resultar do sistema de ponderação que se venha a adoptar ou ser expressamente consagrado no Tratado como condição autónoma.

    [23] Se descontarmos o modelo apresentado pela presidência francesa no Conselho Europeu de Nice, podemos concluir que apenas a Itália ousou tornar público um modelo de reponderação simples “brutal” (a presidência francesa chamar-lhe-ia “substancial” nos seus textos. Tal modelo previa uma escala de 3 a 33 votos, estes últimos para os quatro “grandes” Estados. A Portugal caberiam 10 votos (numa primeira versão do documento apenas 8...).

A Suécia, por sua vez, avançou com um modelo matemático - não o tendo, ao invés da Itália, apresentado formalmente à Conferência - baseado na raiz quadrada da população dos Estados membros. Na primeira versão deste modelo (anexo 2.8 do relatório da Presidência portuguesa sobre a CIG apresentado ao Conselho Europeu da Feira), a escala ia de 1 a 18 votos, sendo concedidos 6 votos a Portugal. Em Novembro, apresentou duas variantes desse modelo, cujas escalas iam de 2 a 24 e de 3 a 27, cabendo a Portugal, respectivamente, 8 e 9 votos. Significativamente, qualquer destes modelos permitia à Suécia sair o seu anterior "cluster" dos 4 votos e integrar o de 5.

[24] Os debates sobre a extensão da maioria qualificada ocuparam aproximadamente 2/3 das cerca de 350 horas de debate desta CIG. Aprofundando o que já havia sido extensamente analisado em Amesterdão, o “grupo preparatório” procurou ir um pouco mais além do que a simples passagem das disposições dos Tratados da unanimidade para a maioria qualificada. Assim, em ambas as presidências, foi feito um laborioso trabalho de “reescrita” do articulado de algumas disposições, a fim de facilitar a obtenção de consensos. No saldo global, haverá que concluir que muito desse esforço foi inglório.

[25] A Conferência analisou as propostas de alteração ao artigo 7º do TUE apresentadas pelas delegações belga e austríaca, essencialmente destinadas a institucionalizar um procedimento dito de alerta precoce, ou seja, que permitisse constatar a existência, num determinado Estado membro, de um risco de violação dos princípios enunciados no artigo 6º nº 1 do TUE. À luz dessas discussões, a Presidência portuguesa apresentou, no seu relatório sobre a CIG para o Conselho Europeu da Feira (anexo 7.1), uma proposta de alteração ao artigo em referência, cujas linhas fundamentais viriam a ser retomadas pela redacção do artigo 7º posteriormente aprovada em Nice.

[26]Por iniciativa da presidência portuguesa, no que foi seguida pela presidência francesa, foi instituído um nível paralelo de aprofundamento das questões ligadas ao TJCE e ao TPI. Esse grupo de peritos, que vulgarmente se designa por grupo “amigos da presidência”, reportou ao “grupo preparatório” e fez um interessante trabalho no tocante à composição dos dois Tribunais, à reapreciação das funções do Advogado-Geral, à duração dos mandatos dos juízes, à repartição de competências entre os dois Tribunais, à eventual criação de novos órgãos jurisdicionais e ao procedimento de modificação do Regulamento de processo e do Estatuto do TJCE e do TPI.

[27] A abordagem das “cooperações reforçadas” na CIG foi muito difícil durante a presidência portuguesa. Países houve que começaram por se recusar a admiti-la em sessões formais do “grupo preparatório”, enquanto outras delegações, sem afastarem em absoluto a abordagem do tema, solicitaram discretamente à presidência que evitasse colocá-lo num estádio muito inicial da CIG. Por essa razão, a presidência decidiu abordar as “cooperações reforçadas” num almoço de trabalho e dedicar-lhe a totalidade da reunião informal do “grupo preparatório” em Sintra, em 14 de Abril. Foi com base nestes debates informais que a presidência elaborou o capítulo sobre as “cooperações reforçadas” que incluiu no seu relatório sobre a CIG ao Conselho da Feira e que propôs a esse mesmo Conselho a inclusão do tema na agenda formal, o que viria a ser aceite.

[28] As reuniões tipo "confessionário" são encontros da presidência com as delegações nacionais, durante os quais estas explicam as suas principais dificuldades na negociação, ficando implícito que tais declarações não serão transmitidas aos outros parceiros. Durante esta CIG, tiveram lugar dois "confessionários" a nível de representantes dos governos (um em cada presidência) bem como uma reunião do mesmo género, já em Nice, a nível de chefes de Estado e de Governo.
[29] Em consequência da pressão de alguns Estados membros, particularmente da Alemanha - sujeita às fortes exigências dos "Länder" no sentido de vir a ser iniciado, a prazo, o processo de delimitação de competências entre os Estados membros e a União Europeia - e da Itália, ficou estabelecida em Nice, em declaração inscrita na acta final da conferência, uma agenda de trabalhos centrada num debate sobre o futuro da União, a prolongar-se pelas presidências sueca e belga, e que deverá culminar, em 2004, com a convocação de uma nova CIG.

[30] Esta cláusula permite a qualquer Estado membro pedir, sempre que uma decisão for tomada por maioria qualificada, a verificação de que essa maioria representa, pelo menos, 62% da população total da União. Caso tal não se constate, a decisão em causa não será adoptada.

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