24 de setembro de 2003

Para onde vai a Europa?

Quando, aí por 1997, o então ministro da Agricultura, Gomes da Silva, se juntou no Terreiro do Paço a uma manifestação de protesto contra a política agrícola europeia, quase que caíram o Carmo e a Trindade. A atitude pareceu configurar o reconhecimento da incapacidade de sustentar os interesses portugueses em Bruxelas, com tudo o que isso tinha de humilhante para a imagem do país.

Recordo-me de, na altura, ter tido a percepção de que a atitude de Gomes da Silva era de uma genuinidade premonitória, anunciando o que poderia vir por aí se o processo decisório europeu evoluísse em moldes que marginalizassem, de forma decisiva, interesses de relevância nacional.

O resultado da Convenção Europeia, que a Conferência Intergovernamental (CIG) analisa, propõe um modelo de tomada de decisões que consagra a prevalência de uma Europa desenvolvida, uma Europa de que Portugal só marginalmente faz parte. É um modelo que pretende tornar “neutro” o efeito do futuro alargamento na contabilidade dos interesses europeus ou, para ser mais claro, destinado a garantir que quem paga a factura orçamental é quem continua a mandar.

O Tratado de Nice desenhou uma Comissão Europeia onde o conjunto dos comissários oriundos dos países menos desenvolvidos Europa (pequenos e grandes, porque esta é uma divisão artificial e meramente simbólica) se equiparava aos dos países mais ricos. Sendo a Comissão a única instituição com poder de iniciativa legislativa, e a quem cabe o desenho orçamental, que dentro de si vota por maioria simples, estavam criadas as condições para uma “subversão” dos actuais equilíbrios após o alargamento.

Mas a Comissão não é uma instituição independente ? Não, não é. Os comissários, não sendo representantes dos Estados não deixam de reflectir no quotidiano os interesses de quem os nomeou ou, pelo menos, opõem-se a que eles saiam prejudicados. Além disso, os países mais desenvolvidos da Europa enxamearam a Comissão de directores-gerais, chefes de gabinete e outras figuras de proa que condicionam a sua agenda. Na impossibilidade de “tomar” essa máquina burocrática, a Europa menos desenvolvida só podia apostar em “controlar” o colégio dos Comissários. Foi essa a sua vitória em Nice, onde as maiores economias europeias (RFA, Reino Unido, França, Itália, Espanha) foram privadas do seu segundo comissário.

Como compensação pela perda desse mesmo comissário, Nice concedeu aos países mais populosos maior poder na instância de avaliação das propostas apresentadas pela Comissão – o Conselho de Ministros. A circunstância da Espanha e da Polónia apanharem este “comboio” por via demográfica fazia parte da nossa estratégia, dado que estes dois países, com algumas excepções pontuais no primeiro caso, se situam claramente no padrão médio de interesses da Europa menos desenvolvida. Para garantir uma rede complementar de segurança, exigimos ainda que qualquer decisão só fosse válida com o acordo de uma maioria de Estados.

O equilíbrio de Nice, um tratado há poucos meses em vigor e cujas disposições em matéria de exercício de poder ainda não estão em funcionamento, desagradou sempre à Europa mais rica. Daí a Convenção Europeia, com novas e radicais propostas para tornar sinónimos “democracia” e “demografia”.

A confirmar-se que a UE caminha para tornar irrelevante a voz dos seus países mais pobres, nomeadamente os novos aderentes, outros ministros podem vir a ter a tentação, embora talvez não a coragem, de aparecer nas ruas das suas capitais a manifestar-se contra as decisões europeias, conscientes de que passa a ser irrelevante deslocarem-se ou não a Bruxelas, dado que já não têm poder formal para alterar uma decisão cujo sentido está definido a priori, pela simples soma das populações dos Estados que as impõem. O que isso irá significar para a legitimidade interna dos respectivos Governos, e para a sobrevivência da própria imagem da Europa nesses países, isso já será outra história.

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