Na reflexão prospectiva sobre quais poderão vir a ser os efeitos do último alargamento na evolução das diferentes políticas da União Europeia, a Política Externa e de Segurança Comum (PESC) tem sido, curiosamente, das áreas para que converge uma menor atenção. E o mesmo se poderá dizer quanto ao restante quadro de relações externas da União.
A razão parece natural: no plano dos princípios e objectivos, os novos países aderentes deram sempre consistentes sinais de partilharem o sentido das decisões gizadas a Quinze e têm-se mantido na esteira desse mesmo acervo diplomático, em especial pela subscrição regular de declarações PESC nos mais diversos domínios – dando um sinal incontroverso de solidariedade e sintonia com o sentido da expressão externa da União Europeia, seja no seu plano intergovernamental, seja no campo puramente comunitário. Em teoria, as novas adesões poderiam, assim, ser presumidas como um factor neutral nos equilíbrios decisórios a Quinze, aparecendo apenas como um elemento acrescido de reforço da projecção externa da União.
O tema tem, além disso, contornos de alguma delicadeza, que roçam o “politicamente correcto”. A título de exemplo, nunca ninguém suscitou abertamente o receio de que a entrada de alguns dos novos membros na União, com estruturas democráticas recentes, com fragilidades num tecido institucional pouco testado por crises, com uma escassa densidade operativa da sua sociedade civil, pudesse vir a prenunciar uma deriva desfavorável à preservação rigorosa de certos valores da matriz ética gerada na União a Quinze, nomeadamente em matéria de Direitos Humanos, liberdades fundamentais ou preservação de princípios do Estado de Direito. E só alguns ousaram lembrar que a questão da protecção de minorias está hoje ainda longe de ser um tema pacífico, quer no contexto interno de certos candidatos, quer na própria relação bilateral entre alguns deles. Porém, se a observância de tais valores pelos candidatos não é posta em causa, por maioria de razão a respectiva prevalência no quadro das relações externas da União Europeia não deverá constituir um elemento de polémica.
O alinhamento colectivo da maioria dos países candidatos em favor das posições norte-americanas na questão iraquiana veio, contudo, recordar o interesse de uma análise prospectiva dos efeitos da presença dos novos aderentes nos mecanismos decisórios da PESC. A “nova Europa” que tantas esperanças terá criado no senhor Rumsfeld, será ou não, no futuro, uma espécie de “quinta coluna” dos interesses americanos no plano europeu ? Para alguns, terá feito rever, talvez pela primeira vez, o juízo de neutralidade funcional do alargamento na PESC, que nunca haviam contestado.
A nosso ver, este tipo de questões não deve ser dramatizado, quanto mais não seja pelo simples facto de se tratar de uma realidade que hoje é incontornável. Mas a União Europeia nada tem a ganhar em procurar ignorar as potenciais dificuldades que podem surgir no novo processo de integração em curso, até para criar condições para a sua resolução tempestiva. A reunificação política da Europa que o alargamento constitui traz um saldo, em si próprio, tão positivo e promissor para o futuro do continente que sempre superará todos os inevitáveis problemas que lhe possam estar associados. Os quais só há vantagem em identificar com frontalidade, a tempo e horas.
Nesta perspectiva, gostaríamos de colocar cinco ideias em debate.
Alargamento - factor de desequilíbrio ?
A primeira ideia vai no sentido de considerar que os novos países podem vir a funcionar como um elemento de desequilíbrio, e até de potenciação de clivagens, numa Europa em que o papel dos key players ainda não encontra pontos de conjugação perante algumas grandes questões no plano internacional. Quer-se com isto dizer que as áreas em que a PESC “ainda não existe” podem sofrer um cenário de estagnação ou regressão numa Europa alargada. E o papel dos EUA nesse contexto poderá não ser despiciendo, alterando substancialmente os termos de referência do processo decisório a Quinze.
Este cenário é aparentemente realista. Num quadro em que os principais actores diplomáticos europeus não coincidam nas suas propostas, é natural que haja factores de polarização para que alguns dos novos membros possam ser atraídos. Tal pode acontecer por meros alinhamentos geo-estratégicos de proximidade, como pode ocorrer como decorrência indirecta de conjugação de interesses de outra natureza, com reflexos na frente diplomática. Pouco é possível fazer neste quadro: se a União Europeia for incapaz de gerar posições comuns sólidas entre os seus Estados Membros menos poderosos, não se espere que sejam os recentes aderentes a contribuir para colmatar tais brechas. O problema será, então, saber se poderão ou não contribuir para agravar tais divisões.
A “nova Europa” e a solidariedade internacional
A segunda ideia diz respeito ao papel dos novos países face ao actual quadro estabilizado de relações externas da União, quer no plano da articulação diplomática tradicional ao nível do Conselho (acções, posições e estratégias comuns, trabalho do Alto Representante/futuro MNE), quer no tocante à acção externa da Comissão Europeia. A questão está em saber se os países candidatos, nomeadamente no contexto da discussão das “perspectivas financeiras”, convergirão na aceitação pacífica de um acervo histórico-político que não deixará de ter decorrências nas afectações orçamentais para a área externa, com eventual prejuízo dos seus interesses imediatos, nomeadamente nas políticas internas.
Um mínimo de realismo deve levar-nos a pensar que, face ao previsível quadro de restrições orçamentais que a União Europeia vai viver entre 2007 e 2013, os meios postos ao dispor da sua dimensão externa não deixarão de ser afectados. É óbvio que esta indisponibilidade para alocar fundos para tal fim é contraditória com o interesse, por todos sublinhado, de dar um perfil internacional mais elevado à União, para que a Constituição Europeia claramente aponta. Mas nem sempre o que é óbvio tem condições de ter sucesso.
A União Europeia que aí está criou, nos últimos anos, uma rede de compromissos externos, com elevadas consequências financeiras, de que dificilmente se poderá libertar, se não quiser entrar num curso de incoerência e perder a face perante terceiros. Estamos a falar, por exemplo, dos compromissos no quadro dos Acordos de Estabilização e Associação, da Iniciativa Nova Vizinhança, mas a necessidade de manter a atenção a outras zonas do mundo, nomeadamente no quadro da Convenção de Cotounu, neste caso com a orçamentalização do FED. Em áreas de trabalho novas, a Europa pode ser chamada a colmatar a sua actual debilidade interventiva em espaços como o Afeganistão, o Iraque ou áreas diversas do Médio Oriente, particularmente se uma evolução política positiva vier aí a ter lugar. E não é de excluir que, num quadro de mutação das circunstâncias actuais, a União não venha a ter de desembolsar consideráveis fundos para “recompensar”, de forma mais substancial que o planeado, certas evoluções políticas em determinados países, se razões estratégicas tal justificarem.
Neste exigente contexto, que se coloca num tempo de grandes restrições financeiras, onde se irão situar os novos membros? Naturalmente que, para muitos eles, tributários de um passado de dificuldades e de um presente de muitas incertezas, a sensibilidade face a estes desideratos estratégicos é, por ora, muito limitada. No plano imediato, entendem que o orçamento não é elástico e que o reforço das dimensões externas acabará, muito simplesmente, por funcionar em detrimento das políticas de coesão intracomunitária, onde assentam muitas das suas esperanças a curto prazo, até para melhor justificar a adesão frente às suas opiniões públicas. Acresce que, em muitas dessas políticas voltadas para o espaço exterior da União Europeia, os novos países não deixam de detectar interesses velados dos países europeus mais desenvolvidos, quer pelo prolongamento de laços externos tradicionais, quer como formas de compensação para ganhos noutros tabuleiros, nomeadamente de ordem comercial.
A Rússia e a segurança dos novos aderentes
A terceira tese prende-se com o possível carrear para o seio da União de tensões que alguns desses Estados mantêm com a Rússia, produto conjugado de traumas históricos generalizados com a prevalência de certos conflitos actuais não resolvidos.
A incontestável importância que a estabilidade do relacionamento com a Rússia tem para os Quinze pode, assim, confrontar-se com a emergência de agendas nacionais no relacionamento com Moscovo que não se exclui funcionem como factores de bloqueio, difíceis de superar se apenas projectados no actual quadro decisório da PESC.
Uma quarta ideia assenta na importância de se pensar nos possíveis novos alinhamentos na Europa numa lógica que parta da dimensão de segurança e defesa para a dimensão política. A grande maioria dos países candidatos terá, com a sua entrada para a NATO, “queimado etapas” e estará, porventura, mais disponível para partilhar lealdades que directamente se colem às suas compreensíveis preocupações securitárias do que partir de um elaborado programa político-estratégico comum para a construção de mecanismos de segurança e defesa que lhe dêem posterior consistência operativa, nomeadamente no quadro de uma Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). A questão está em saber se a eventual utilização do mecanismo das cooperações reforçadas nesta última área, não poderá, afinal, vir a funcionar como uma dimensão que “puxará” pela PESC, em lugar da natural evolução em sentido contrário.
A questão institucional
Finalmente, a quinta e última ideia liga-se à necessidade de ponderar se a dimensão dos próximos alargamentos, com a diversidade de culturas políticas que introduz na União Europeia, não terá de conduzir a uma reflexão aprofundada sobre os próprios mecanismos da PESC, na linha de uma sua evolução mais radical para procedimentos decisórios por maioria, embora em modelos diferentes daqueles que são usados tradicionalmente noutras dimensões da União.
Temos, assim, pela nossa frente a necessidade de uma exploração prospectiva dos eventuais efeitos disruptores dos próximos alargamentos no modelo de uma PESC que vinha definindo-se como uma cultura ou jurisprudência diplomática erigida à luz de alguns vectores que, subitamente, vão sofrer novas tensões. E tentar perceber se os principais actores União, bem como os actores externos com capacidade de os influenciar (EUA e Rússia, entre outros com menor peso directo), estão ou não em vias de terem de redefinir o seu tecido de alinhamentos.
Encontrar uma solução de conjunto para a PESC e para o sistema geral de relações externas da União Europeia, que preserve o essencial do respectivo acervo e tenha simultaneamente em conta legítimas expectativas dos novos aderentes, é uma exigência de que todos os Estados membros deverão ter plena consciência. Em causa está, não apenas uma progressão sustentada de tais políticas, mas igualmente a sua credibilidade e aceitabilidade, o mesmo é dizer, a sua afirmação como um elemento constitutivo central da própria UE do futuro.
(Publicado na revista "Europa - novas fronteiras", nº 15, Lisboa, 2004)
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