30 de maio de 2004

O "amigo americano"

Há tempos, ao passear pela ruas de Bratislava com um amigo eslovaco, candidato derrotado às últimas eleições presidenciais, dizia-me ele que, no imaginário dos novos aderentes à União Europeia, a gratidão histórica face aos Estados Unidos, pela liberdade obtida no saldo da Guerra Fria, continua a suplantar, em muito, o entusiasmo pelo projecto europeu de que passaram a fazer parte. A segurança soft que a integração europeia lhes induz está, manifestamente, num patamar de apreço inferior às garantias que a adesão à NATO – isto é, à protecção americana – representa para as actuais gerações desses Estados.

Se isto não é uma novidade, deve, contudo, constituir um elemento para reflexão que pode ajudar-nos a repensar, com muito maior acuidade, a identidade dinâmica desta União Europeia já alargada a 25 países, com alguns outros a baterem à porta, com o caso turco por resolver.

Na diversa relação que cada um dos Estados europeus mantém com os EUA projectaram-se sempre factores vários – laços tradicionais, experiência históricas específicas, comunidades residentes e elementos de natureza conjuntural. O “amigo americano” de cada um é diferente e essa diferença não é apenas a que vai do Eliseu a Downing Street. A questão está em saber se tal diferença tende a funcionar como um eterno factor limitativo da formação da vontade europeia no plano internacional ou se, ao invés, será possível encontrar um meio que permita transformar numa vantagem sinérgica para a União Europeia este complexo, mas rico, tecido de relações transatlânticas. 

É claro que aqui entra o outro lado da questão, que é o saber-se se os próprios EUA jogam, ou não, com a divisão da Europa como factor táctico na sua própria estratégia. As virtualidades pró-americanas da “nova Europa” foram, para muitos, um aviso neste domínio. E as reticências manifestas de alguns desses mesmos países face à densificação de uma política europeia de segurança e defesa, vista como podendo afectar a integridade da NATO, podem revelar que esse “entrismo” americano na União está a produzir os seus efeitos.

A “Carta dos Oito”, durante a crise iraquiana, foi apresentada como o êxito consagrado desta estratégia americana de “dividir para reinar”. Nas reacções a essa declaração, cuja oportunidade foi muito mais polémica que o respectivo conteúdo, assistimos a reacções interessantes, que foram desde genuínas preocupações quanto à integridade da unidade europeia a meras estratégias decorrentes de algumas agendas nacionais muito específicas. É que o sereno julgamento sobre a carta e sobre a responsabilidade histórico-política dos seus subscritores, numa perspectiva europeia, só pode ser feito por quem tenha as “mãos limpas” no tocante à sua fidelidade à vontade comum da União. E nunca por quem seja useiro e vezeiro em tentar usar o label da Europa para a promoção despudorada das suas próprias políticas. E não preciso de ser mais explícito.

Confesso não fazer parte daqueles que entendem que as actuais clivagens na cena internacional, derivadas da tipologia de acção escolhida pelos EUA para ultrapassarem o trauma do 11 de Setembro, criaram feridas irrecuperáveis no relacionamento euro-americano ou, pelo menos, condicionaram o seu futuro em termos muito duradouros. O que vou dizer não é menos respeitoso, mas apenas uma constatação: os senhores Bush, Chirac, Blair ou Schroeder, não sendo simples epifenómenos políticos, são, contudo, actores que é preciso relativizar à luz da sua natureza circunstancial, particularmente se comparados com a força dos grandes interesses e valores que estão subjacentes aos Estados cujas instituições episodicamente titulam.

Quero com isto dizer que a relação privilegiada de alguns países europeus com os Estados Unidos é, e continuará a ser, um fact of life. Não vale a pena iludirmo-nos com a expressão de voluntarismos de fé europeísta: temos que viver com essa realidade, pelo que a Europa comunitária não tem outro caminho que não seja procurar enquadrá-la. E não é solução criar, neste lado do Atlântico, qual espelho caricatural, uma espécie de neo-isolacionismo europeu face à América. Mesmo que isso fosse politicamente interessante – e não o é –, a Europa não tem força política, económica e militar para o sustentar no plano internacional, nem, muito menos, um mínimo de condições para o consagrar como linha comum entre os Estados europeus.  

Assim, e de regresso ao realismo das coisas, importa que saibamos aproveitar as mudanças recentemente sofridas pela própria União Europeia para reavaliar, com serenidade, o peso do factor americano e tirar daí as devidas consequência para a formatação do futuro da nova União.

Desde o início do século passado que todos aprendemos que os EUA, goste-se ou não, são um poder com expressão europeia. São-no na influência directa que têm sobre alguns actores, maiores ou menores, do sistema europeu de poderes mas, igualmente, porque é sobre a Europa que se reflectem inevitavelmente as vicissitudes da relação entre Washington e Moscovo. Para o bem e para o mal. Os EUA “são” a NATO e constituem, com a Rússia, o eixo essencial que se projecta, por exemplo, sobre a OSCE – onde representam os powers that be que funcionam como garantes últimos da estabilidade europeia.

Com a emergência no seio da União alargada de um conjunto de países que demonstram uma atenção particular ao laço transatlântico, não há outra saída que não seja procurar reflectir esse novo elemento nas nossas perspectivas comuns. Isso não significa – sejamos claros! – qualquer tipo de subordinação política face ao ditames de Washington. Os acontecimentos recentes mostraram que não há, na União Europeia, condições políticas para que isso aconteça, mas também é verdade que também há, cada vez menos, condições para impor uma agenda própria que confronte abertamente a agenda americana, por mais absurda que esta possa ser. Daí que estejamos condenados a entender-nos, a curto ou a médio prazos, e, a meu ver, a forma de o fazer com êxito só será possível no âmbito do estabelecimento de uma nova agenda transatlântica.

Estamos hoje a viver num quadro de relacionamento entre os dois espaços perfeitamente datado, fruto do pós-guerra e das adaptações para o termo da Guerra Fria. Nesse contexto, os EUA habituaram-se a lidar com uma Europa que já não existe, isto é, habituaram-se a falar com os poderes mundiais médios que, na Europa, fazem o papel de grandes. Mas os americanos aperceberam-se recentemente que esse panorama, que durou décadas, está a mudar e, curiosamente, deram-se conta disso muito mais rapidamente do que a própria Europa.

Deste lado de cá do Atlântico, dá a sensação de que ainda não interiorizámos a nossa própria mutação interna, a nossa nova natureza. Continuamos a chamar União Europeia a uma realidade muito diferente da que tínhamos há dez anos e continuamos a olhar no espelho apenas a nossa imagem estática, quando os outros já nos vêem como, de facto, somos.

É que a grande ilusão da óptica política europeia recente é julgar que a União Europeia alargada constituiu uma mera extensão da Europa dos Doze ou dos Quinze, é – perdoe-se-me a ousadia – ter a pretensão de que este alargamento vai ser uma espécie de colonização política do Leste. Essa miopia faz com que se tente desesperadamente preservar, numa União a 25, os equilíbrios forjados em anteriores formatos, não percebendo que os novos membros não têm nenhum capitis diminutio e que têm o direito de procurar impor as suas posições, que temos de respeitá-las, pelo menos tanto quanto respeitamos as dos países que já cá estavam. A alternativa será a criação de um ambiente de desconfiança, a instalação de um sentimento crónico de crise. O processo que se viveu em torno da negociação da Constituição Europeia já foi sintomático disso. 

As soluções para ultrapassar esta dificuldade de acerto de posição perante a relação transatlântica não são muitas, e não se esgotam no próprio terreno da União Europeia. Desiludam-se quantos pensam que um reforço formal da PESC ou o avanço voluntarista para uma política europeia de segurança e defesa é a panaceia para superar, na prática, essas divisões. Não o foram no seio da União a Quinze, não o serão mais facilmente na União a 25. É que, por muitos e bons anos, a chave do poder de afirmação da Europa no mundo estará ligada ao modo como souber potenciar a sua relação com os EUA.

Um estadista britânico dizia, em tempos, que “a Inglaterra não tem amigos, tem interesses”. O mesmo é válido para os Estados Unidos, mas eu acrescentaria que, as mais das vezes, os EUA também têm interesse em ter amigos. E, para além da arrogância e presciência bíblica dos arautos do neo-conservadorismo, tudo indica que os EUA estarão a aprender com os factos, muito rapidamente, que os parceiros são essenciais, tanto para a legitimação das situações como para o trabalho efectivo no terreno.

O contexto internacional tem hoje tensões de conjuntura que parece condicionarem todos os exercícios baseados na mobilização de vontades políticas. Mas na velha lógica de que as crises são “parteiras da História”, eu arriscaria dizer que a actual situação mundial, por absurdo que pareça, está a abrir uma luz ao fundo do túnel. Luz essa que pode passar pela reflexão sobre um novo tipo de multilateralismo. Um modelo que, curiosamente, ainda possa “salvar” o Reino Unido e a França, garantindo-lhes uma relegitimação, por via da Europa, da anacrónica posição de que hoje desfrutam no Conselho de Segurança da ONU e que lhes permite alimentar a ficção de que ainda são grandes potências.  Esses países terão já percebido que esse seu estatuto singular terá um destino paralelo ao futuro da própria ONU.

A Europa – com a tal “nova Europa” que os EUA de hoje tanto apreciam – deveria começar por ter a coragem de procurar trazer Washington para uma reflexão de natureza global sobre as instituições em que assenta, no plano de defesa e segurança, o contexto transatlântico e euro-asiático. Isso poderia passar pela abertura a uma releitura profunda do papel e génese da NATO, repensando a Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD) numa lógica bastante mais inclusiva para a Rússia, em termos que atenuem os seus receios e reforcem as legítimas garantias por que reclama, nomeadamente no quadro da observância generalizada do regime sobre o equilíbrio das forças convencionais.

Mas, numa perspectiva de resposta sustentada às novas ameaças, deveríamos ter a coragem de ir muito mais longe. Tal reflexão poderia incluir também propostas sobre a possível evolução da actual OSCE (e do próprio Conselho da Europa) para um pilar euro-atlântico
e euro-asiático de uma ONU renovada, em cuja estrutura viessem a encontrar lugar institucional, pela primeira vez, outras organizações de natureza regional, como a própria União Africana, eventualmente abrindo caminho à responsabilização subsidiária dessas organizações para operações de prevenção de conflitos, de peace-enforcing e de manutenção de paz. Para este exercício, o realismo também recomenda que seja chamada a China, ligando-a de forma cada vez mais integrada ao contexto euro-asiático de segurança.

Dir-se-á que esta é uma agenda muito ambiciosa, com implicações na arquitectura global, que exige o estabelecimento de um ambiente internacional de confiança que está longe de existir. Mas os riscos e as ameaças à segurança global são hoje tantos e tão evidentes que é necessário ter coragem para romper com o status quo. A qualidade da actual liderança europeia ficará bem qualificada, e será julgada, pelo modo como souber, ou não, enfrentar esta conjuntura. E pela forma como, sem subserviências nem complexos, mas também sem arrogâncias ou susceptibilidades, conseguir articular-se com o “amigo americano”. É que é importante nunca esquecer que a América – a América de sempre –  é um dos mais velhos amigos da Europa.  

(Publicado na revista "Egoísta", nº 16, Lisboa, 2004)

5 comentários:

  1. Analise muito interessante que reflete um profundo conhecimento do complexo "enjeu" geopolitico duma "grande" Europa face ao "amigo" Bush que ainda contava com ela na guerra contra o "mal".
    Os EU do amigo Obama não precisam da Europa para coisa nenhuma.
    O G20 de então esta hoje reduzido a um G4 ou mesmo a um G2... A nossa velha Europa esta ultrapassada, dividida e "emptétrée" numa crise profunda. Os EU, que a provocaram, jà estão a sair dela...
    Lembra-se, Senhor Embaixador, do que disse Hubert Védrine na Gulbenkian ha pouco mais de 2 anos?

    Este texto magistral (mais um!) merecia ter tido um numero de leitores mas largo que os "happy few" assinantes da elegante "Egoista". Ainda bem que o publicou aqui.

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    1. Cara Helena: este texto está publicado no meu livro "Uma Segunda Opinião - notas de Política Externa e Diplomacia", editado em 2006 pela Dom Quixote, que terei muito gosto em oferecer-lhe.

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