A questão de saber-se se a Europa, não sendo ainda um Estado, pode, ou não, ter uma Constituição é um belo debate académico. Mas o que aqui nos ocupa é a dimensão política do problema, o que levou muitos a optarem, com compreensível prudência, pela ambiguidade semântica do conceito de “tratado constitucional”.
A entidade União Europeia, que nasce alguns anos depois da criação das Comunidades Europeias, é o produto de sucessivos Tratados que foram regulando os avanços da integração e, nas entrelinhas, deixando presumidos caminhos para a sua futura evolução. Em pouco mais de 10 anos, a Europa foi servida pelos Tratados de Maastricht, de Amsterdão, de Nice e, agora, pela Constituição Europeia. Só por um milagre, esta obsessão revisionista não criaria, no imaginário público, um sentimento de grande instabilidade institucional, a ideia de que, aprovasse-se o que se aprovasse, vinha logo ali adiante um novo tratado a alterar o anterior.
Para os crentes neste modelo, estávamos perante uma inevitabilidade. Era a teoria da “bicicleta de Delors”, que tinha de continuar em andamento, porque, se parasse, cairia ao solo. A palavra de ordem era ter “ambição” europeia e, dia após dia, conseguir pôr mais uma pedra na construção integradora, alargar as políticas comuns, forçar a aproximação e a tendencial harmonização das restantes áreas cuja coerência se revelasse essencial para a sobrevivência, não apenas do projecto, mas da sua dinâmica. As opiniões públicas mais relutantes acabariam por se render ao imperativo da eficácia, temendo ficar para trás na História. Daí a repetição dos referendos negativos – a bondade estaria, sempre e naturalmente, do lado do sim.
Aqueles que iam afirmando que os novos passos integradores – “mais Europa” – só poderiam ser dados quando os europeus se convencessem da utilidade da Europa que já tinham eram, sistematicamente, apodados de reaccionários e atávicos soberanistas. E alguns assustaram-se e deixaram-se ir no sentido dos ventos que a História parecia soprar.
Neste cenário de fuga em frente, começaram, entretanto, a projectar-se duas nuvens.
A primeira foi a crise endémica da economia europeia num quadro acelerado de globalização, com quebras de produtividade, falências e despedimentos, agravados com os processos de deslocalização produtiva. Tudo isto com impactos na sustentabilidade de um modelo social tributário de outros tempos. Aí, aparece como “benchmark” a economia americana, simultaneamente odiada e invejada, que cumpria a função de lebre do desenvolvimento que queríamos atingir, obviamente evitando pagar o preço social da proeza. A chamada “Estratégia de Lisboa” foi a receita de ocasião, um hábil caldeirão de medidas liberais e sociais, construído para agradar a gregos e a ingleses, no caminho complexo da recuperação da competitividade perdida pela Europa no mercado global.
Depois veio o alargamento, aceite como uma inevitabilidade estratégica. Na sua adopção, na forma que teve, conjugaram-se várias agendas, algumas sérias, outras de proximidade, outras de oportunismos de mercado e, outras ainda, de natureza claramente táctica, mesmo anti-integração. De um processo gradativo, que amadurecesse cada passo e garantisse a digestão de cada nova adesão, rapidamente se passou, pela cumulação de lóbis, a um salto gigantesco e simultâneo, sem que os promotores maiores da ideia acedessem a pagar, coerentemente, o preço pelo feito. A Europa deve ser a única entidade onde ainda se acredita que a cumulação de lógicas egoístas e contraditórias acabará por constituir, mais cedo ou mais tarde, uma vontade política comum.
Mas a Europa do novo alargamento não podia ficar como estava. A eficácia era um argumento onde havia alguma verdade e muita táctica. Nice havia sido a tentativa de alguns para evitar que quem se habituou a dirigir a Europa comunitária, e a pagá-la (o que se diz menos), perdesse excessivo poder por virtude da entrada de novos Estados.
A nova Constituição começou por ser a aliança bizarra dos que não ficaram saciados com a fatia de poder recebida em Nice com quantos pensaram poder aproveitar o ensejo de mais uma revisão dos tratados, para dar um outro salto qualitativo em matéria integradora.
Esta Constituição nasce em dois tempos algo polémicos.
A primeira foi a Convenção Europeia, uns “estados gerais” de composição discutível, que transformaram em consenso a média aritmética do “politicamente correcto” bruxelense, somado à sinonimização de demografia com democracia. Alguns inocentes úteis, com a voz perdida num areópago onde havia, desde o início, uns mais iguais que outros, calaram as suas divergências ou fingiram que as não tinham. Outros, nem sequer isso: fugiram por entre as pingas da negociação e colaram-se, sucessivamente, às diversas propostas sobre a mesa, para se darem ares de utentes automáticos dos saldos do “mainstream”.
A segunda foi uma Conferência Intergovernamental apressada, descuidada e, a meu ver, mal negociada por alguns, por forma a não haver tempo excessivo para reflectir. Em tese, nada obrigava a que o novo texto tivesse de ser concluído na presidência italiana. Na prática, todos se comportaram como se assim tivesse que ser. Para além do procurado dramatismo das negociações até altas horas, a Europa também se faz de mitos que acabam por converter-se em verdades como punhos. E em que todos fingem acreditar.
O resultado aí esta: a Constituição Europeia. Era necessária ? Seguramente não era, em absoluto, indispensável e, diga-se o que se disser, a Europa podia viver, como está a viver, com o Tratado de Nice, mesmo num cenário de alargamento. Convém lembrar – porque alguns procuram fazer esquecer – que, à saída de Nice, todos disseram que esse tratado criava as condições mínimas necessárias para que a entrada de novos países se pudesse fazer sem sobressaltos. Mas se assim não era, por que razão recomendaram aos respectivos parlamentos e opiniões públicas a aprovação de tal tratado ?
Voltando à questão inicial. Uma Constituição Europeia não era indispensável para a Europa funcionar. Mas, independentemente do modo altamente discutível como esta foi gerada, ela não seria, necessariamente, uma má ideia. Como se tornou óbvio durante a Convenção Europeia, esta Constituição é um compromisso baseado em alguns equívocos, provavelmente inevitáveis, no velho conceito da ambiguidade diplomática, que disfarça o presente e adia as dores de cabeça para o futuro.
Os federalistas europeus, cultores de um projecto generoso que assenta na convicção de que a diluição das soberanias europeias é o caminho certo para a criação de um modelo que garanta a paz e a desaparição das tensões intra-nacionais, gerando uma entidade europeia sólida, julgaram ter visto neste exercício o tempo para mais um salto em frente.
O texto consagra, de facto, em vários pontos, o sedimentar das políticas que os anteriores tratados desenvolveram, reforça outras de forma muito interessante e sinaliza áreas periféricas cujo desenvolvimento, em termos comunitários, pode vir a depender da vontade colectiva que em cada tempo se gerar. No tocante às instituições, parece desenhar um papel preponderante das instâncias comuns, o que, sem dúvida, reforça a percepção da deriva federal, também presente na extensão das votações por maioria e no aumento automático de poderes do Parlamento Europeu – uma instituição que os Governos odeiam mas a que prestam regular vassalagem. Se a isto acrescentarmos a importância da inclusão da Carta dos Direitos Fundamentais, um passo decisivo para a consagração da cidadania europeia, teremos construído um interessante passo adiante na construção da Europa federal. Só por isto, gostava de deixar claro, a Constituição – ou o Tratado – valeria a pena.
Mas serão as coisas, de facto, assim ? Por que razão países e governos tão avessos à via federal europeia se mostraram abertos a subscrever a Constituição ? Por inevitabilidade ? Para não ficarem mal na foto ? Por se terem convencido que um referendo alheio acabaria por libertá-los do fardo?
Pode haver algo de verdade em tudo isso, mas há igualmente a vontade de alguns em aproveitar o pretexto da Constituição para ganharem, uma vez mais, poder. Os mecanismos de gestão da União previstos na Constituição colocam na mão de um núcleo muito restrito de países, por via da determinante demográfica, o poder de facto dentro da União. Ao fazê-lo, cumpre-se uma evolução natural para qualquer entidade federal – no sentido da legitimidade democrática. Só que, nessa mesma lógica federal, a prevalência dessa mesma legitimidade teria sempre de cruzar-se com uma outra, essa derivada da legitimidade nacional, através de uma câmara de representação equitativa, de um senado de Estados. Ele não está presente na Constituição e é altamente duvidoso que os Estados que agora asseguraram o seu desmesurado poder, sem ter de se sujeitar a uma instância onde estariam equiparados a todos os outros de menor dimensão, venham a aceitar, no futuro, um qualquer recuo institucional em detrimento da sua força actual.
Ao não existir este factor de equilíbrio, o futuro da União, no plano institucional, fica nas mãos de um condomínio constituído pelos Estados mais populosos, os quais, com duas excepções (Espanha e Polónia, o que justifica muitas das discussões que envolveram, precisamente, a questão do poder relativo destes dois países) são também dos mais ricos e desenvolvidos.
A objectivação, no dia-a-dia, do poder conjugado desses países depende, contudo, da nem sempre fácil harmonização das respectivas agendas. O agente dessa conjugação eventual de vontades é a mais deletéria figura de toda esta nova construção institucional – o presidente do Conselho Europeu. O aparecimento desta figura constitui a prova mais flagrante de que estamos perante um modelo que mais não é senão um modelo tendencialmente intergovernamental, com o centro do poder bem identificado. De facto, o complexo institucional criado na Constituição funciona, na prática, em objectivo detrimento da instituição cujo reforço significaria a evolução para um modelo federal – a Comissão Europeia. A perversidade do novo sistema institucional instituído vai ao ponto de criar uma conflitualidade quase inevitável entre o presidente do Conselho Europeu e o presidente da Comissão, nomeadamente retirando a este muita da representatividade externa que tinha vindo a obter e que funcionava em favor de um reforço do seu papel. Por outro lado, coloca como vice-presidente da Comissão (mas não dando ao respectivo presidente o direito a nomeá-lo) o MNE da União, cuja acção no domínio externo é flagrantemente concorrencial com a do presidente do Conselho Europeu.
A minha leitura, que reconheço algo conspirativa, é de que este sistema complexo e contraditório foi criado para falhar, para provocar uma tensão interinstitucional que os Estados acabariam por resolver com a atribuição futura de mais poderes ao presidente do Conselho Europeu. O que significaria, leia-se, a perda progressiva da autonomia da Comissão, que o mesmo é dizer, do vector federalista central do sistema. E, assim, a vitória da intergovernamentalidade.
Sendo assim, é esta uma Constituição desejável para a Europa ?
Esta Constituição, não obstante conter características que a poderão definir como tributária de uma indesejável lógica no sentido intergovernamental, a que há que estar muito atento, consagraria avanços em matéria de políticas, bem como de codificação de normas, que apontam para que mereça o benefício da dúvida. Traz melhor Europa na definição das políticas, simplifica alguns procedimentos e sedimenta modelos criativos em áreas fundamentais para atacar, ou vir a atacar, os “medos” que hoje atravessam e regem os povos europeus – a insegurança pública, a insegurança internacional, as disfunções entre os modelos sociais nacionais. E codifica as políticas de acompanhamento do euro, um fantástico sucesso de que já ninguém fala.
Mas, mais do que tudo, esta Constituição Europeia, não obstante todas as sua limitações, permitiria à Europa funcionar em velocidade de cruzeiro, garantiria um quadro orgânico estável para o desenvolvimento do actual tecido de políticas, em moldes compatíveis com a absorção dos alargamentos. Bem explicada e não imposta, esta Constituição não seria nunca um retrocesso para o projecto europeu – e essa é a principal medida pela qual devemos medir as suas vantagens. Para Portugal e para a Europa.
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