Naquele 12 de Maio de 1994, no meu gabinete da Embaixada em Londres, procurei prever, para suposto benefício informativo de Lisboa, o futuro da liderança trabalhista. A morte de John Smith, breve herdeiro Neil Kinnock, criara um inesperado vazio na Esquerda britânica.
Tony Blair ou Gordon Brown eram as alternativas óbvias, perante a inevitabilidade de um salto geracional. Estrelas ascendentes no “shadow cabinet”, encarnavam a esperança num Partido Trabalhista que a coragem de Kinnock e a sabedoria de Smith libertara do espartilho do “block vote” sindical, que ameaçava colar o seu destino à derrota cíclica.
Deve andar pelos arquivos do MNE o “bem elaborado telegrama”, como chamamos na “casa” às comunicações que temos por memoráveis, no qual o Encarregado de Negócios português, que eu então era, explicou, com sólido argumentário, que o próximo líder trabalhista iria ser, pela certa, ... Gordon Brown. Enganei-me por 13 anos !
O erro assentou na leitura de que o trabalhismo não estaria preparado para uma liderança liberal como a que Blair prenunciava e que, com maior probabilidade, se inclinaria para uma figura como Gordon Brown, que, não obstante o pendor modernizante, tinha no seu passado a militância esquerdista no “Tribune”.
Tony Blair surgia como um “nice guy” de recorte “kennedyano”, hábil no discurso, um esgar feito sorriso, uma mensagem que me parecia sem grande substância. Pelo contrário, Gordon Brown, num estilo talvez menos burilado e um tanto desajeitado, era produtor de propostas imaginativas, mobilizador de uma equipa que actualizara o programa do partido.
Os responsáveis trabalhistas optaram por Blair e eu tive de recolher-me à humilhação da minha conjuntural incapacidade de previsão, sina das más horas dos diplomatas em posto.
Terá sido principalmente por essa razão que, três anos mais tarde, já noutras funções, observei com particular curiosidade a chegada ao Conselho Europeu de Amesterdão do novo Primeiro-Ministro britânico, Tony Blair, muito recente vencedor das eleições no seu país. Em mangas de camisa e com franco à-vontade, Blair deu uma notável lição de como um sistema político como o britânico sabe preparar os seus líderes para todas as batalhas, mesmo as mais imediatas.
O Reino Unido chegava então ao termo de uma negociação durante a qual assumira uma postura relutante, defensiva mas não tímida, sob uma administração conservadora. Nos debates, Blair não introduziu nenhuma clivagem dramática face à atitude britânica nos dossiês em discussão. Conseguiu, porém, com hábeis “nuances” de forma, ganhar de imediato a boa-vontade de muitos dos seus pares, ansiosos por potenciar qualquer vislumbre neo-europeísta que soasse dos lados de Londres. Tony Blair demonstrou uma grande capacidade de intervenção nessa muito difícil reunião, afirmando uma qualidade política que arquivou, em algumas horas, a equivocada imagem que, quatro anos antes, eu dele havia construído.
Blair teve uma intensa década de poder à frente do governo britânico. Foi criativo no seu turno na “special relationship” com Washington, ao gizar com a França, em St. Malo, uma aliança de poderes militares de 2ª linha que, sem afectar o laço transatlântico e a NATO, colocava o Reino Unido no eixo de Defesa e Segurança de uma Europa à desesperada procura de um papel no mundo. Na passada, instigou rápidos alargamentos da União Europeia e da NATO, imprimindo-lhes um ritmo não inocente, gerando aliados úteis aos EUA, numa “nova Europa” desconfiada, simultaneamente, de Bruxelas e de Moscovo. Fez a reserva da mesa no almoço da “cimeira da paz”, que Portugal serviu nas Lages. Sempre, sempre ao lado do amigo americano, foi para o Iraque sem mandato da ONU, sob o falso alibi da procura das armas de Saddam e sob o real interesse da segurança petrolífera. Saiu-lhe a dura descoberta de um novo e incontrolável desequilíbrio regional, a que o “Foreign Office” percebeu que já não pode imprimir as regras do “Great Game”. Pagou o seu erro com o terror em Londres, onde a herança do império contra-atacou e mostrou ao Reino Unido a bomba eterna com a qual terá que viver.
Na Irlanda, teve a imensa sabedoria de gerir o tempo e aproveitar a exaustão das partes: conseguir sentar Paisley e McGuinness à mesma mesa de poder partilhado deve ter-lhe dado uma satisfação única – e bem merecida.
No plano económico-social e com a ajuda de Gordon Brown, Blair provou que, na Europa, ainda há vida fora do euro. Com a Terceira Via, fez à Esquerda europeia provocações que relevavam mais de um liberalismo “thatcheriano”, ainda que de rosto humano, do que de uma qualquer reedição, se bem que modernizada, da “longest suicide note” que o programa eleitoral de Michael Foot acabara por ser, anos antes, para as esperanças de poder do trabalhismo histórico. Ao estimular, ao lado de Aznar, a Estatégia de Lisboa, criou massa crítica de resistência à tradicional aliança gaullista-socialista, que pretendia congelar o modelo social europeu. Não deixa de ser uma singular ironia que Sarkozy chegue, precisamente, no momento em que Blair parte.
Alguns dizem que Tony Blair foi o primeiro lider pós-moderno da Esquerda europeia. Para outros, mais cínicos, ele terá sido o primeiro líder pós-Esquerda da Europa. A História falará por último.
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