Francisco Seixas da Costa
UMA SEGUNDA OPINIÃO
A POLÍTICA EXTERNA E A DIPLOMACIA PORTUGUESA
Prefácio de
Jorge Sampaio
Dom Quixote
ÍNDICE
Prefácio
Nota introdutória
Ainda a Europa
Portugal e a Constituição Europeia
O alargamento e a acção externa da Europa
Portugal e a PESC
O “amigo americano”
A Europa nas Nações Unidas
Multilateralismo e Segurança
A crise do multilateralismo
A OSCE e a segurança internacional
As novas fronteiras da Rússia
Ameaças à segurança
Os argumentos do terrorismo
Diplomacia e Ética
Pela mão de Boaventura
Diplomatas & croquetes
Lugares da Memória
O dia em que se perderam anos
Duas cidades
Um homem para todos os desafios
Com olhos em Gaza
PREFÁCIO
Depois de Diplomacia Europeia, em que Francisco Seixas da Costa reuniu um conjunto de textos publicados entre 1996 e 2002 e no qual o leitor encontra um circunstanciado, rigoroso e completo relato das posições de Portugal na União Europeia, assumidas ao longo dos últimos anos, surge agora Uma Segunda Opinião – A Política Externa e a Diplomacia Portuguesa – cuja leitura conforta plenamente as altas expectativas que o autor e o título da obra de imediato suscitam.
Francisco Seixas da Costa, cuja forte personalidade, brilhante carreira diplomática, experiência política, superiores qualidades profissionais e indiscutível competência são de todos bem conhecidas, coloca agora à consideração do leitor um conjunto de reflexões que a sua vida itinerante de diplomata alimentou e que a sua viva inteligência, espírito crítico e analítico permitiram decantar, oferecendo-nos nesta obra uma espécie de breviário sobre as principais questões e desafios que se colocam actualmente ao Mundo e a Portugal.
Em Uma Segunda Opinião, que renova textos anteriormente publicados, o leitor encontra não só um conspecto da evolução do quadro internacional nas últimas décadas, como uma análise dos principais problemas colocados ao multilateralismo perante a emergência de novas e múltiplas ameaças e a recomposição da ordem internacional na sequência do fim da guerra fria, sem esquecer nunca a questão da posição de Portugal nesse contexto.
Analisando particularmente o caso da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), cuja Presidência em 2002 foi assumida por Portugal e brilhantemente conduzida por si próprio, Seixas da Costa submete-nos um conjunto de elementos e reflexões sobre esta Organização, injustamente desconhecida do grande público e pouco valorada pela Comunidade Internacional, mas cujo papel e potencialidades futuras são claramente evidenciados nesta obra.
Por último, é ainda de referir que Seixas da Costa não só dedica todo um capítulo do seu livro à União Europeia, dissecando as relações com os Estados Unidos na Europa a 25 e debruçando-se sobre a Constituição Europeia, sobretudo na perspectiva nacional, em que denuncia – com enorme oportunidade e pertinência – as limitações que têm marcado o debate interno, como termina com um conjunto de reflexões sobre “Diplomacia e Ética”, em que, concentrando-se sobre o caso português, chama a atenção para o insubstituível papel que os nossos diplomatas têm tido para a projecção externa de Portugal e para a defesa dos nossos interesses, funções que, a seu ver e bem, devem ser pautadas por um rigoroso sentido de Estado, que qualifica de ético.
“Lugares da Memória”, o título do último capítulo de Uma Segunda Opinião, devolve-nos um Seixas da Costa resolutamente autobiográfico, homenageando Nova Iorque, onde residia na data traumática do 11 de Setembro, Vieira de Melo e Arafat que teve o privilégio de conhecer pessoalmente, que admira e estima.
Evocando memórias, Seixas da Costa consegue devolver o presente ao leitor e remetê-lo para o futuro, determinado a agir e dotado de novas pistas e ideias para construir um futuro melhor. É nesta capacidade de criar confiança, construir solidariedades, estimular a reflexão e propor soluções e caminhos de intervenção que, mais uma vez, reconheço o meu amigo Francisco Seixas da Costa.
Jorge Sampaio
NOTA INTRODUTÓRIA
Enquanto houver estrada para andar
a gente vai continuar
enquanto houver estrada para andar
enquanto houver ventos e mar
a gente não vai parar
enquanto houver ventos e mar
Jorge Palma
Em Portugal, a prática diplomática e a reflexão sobre as opções possíveis no quadro da acção externa não andam, necessariamente, de mãos dadas. As exigências do trabalho quotidiano conduzem, muitas vezes, a excessos de pragmatismo, ao refúgio em visões meramente descritivas, à tentação de justificar a posteriori o que foi feito ou dito. Verdade seja que a cultura convencional das Necessidades foi quase sempre algo avara quanto a estimular a propositura de caminhos para a política externa, como que a reservar esta para o domínio exclusivo dos agentes políticos. Assim, não é de estranhar que muitos diplomatas, quando chamados a pronunciar-se sobre cenários de intervenção externa, se refugiem numa mera e cómoda colagem ao ar do tempo, limitando-se a tentar interpretar, com maior ou menor criatividade, o que pressentem que o poder político deseja ouvir ou ler.
Curioso, contudo, será observar que, não obstante todas essas limitações, os frutos de tais trabalhos acabam, não raramente, por se revelar bastante informados e imaginativos, o que prova que o potencial existe, que os profissionais da diplomacia portuguesa têm todas as condições para poderem ir muito mais longe na prestação do seu contributo substantivo para as opções da política externa do país, desde que a tal induzidos. A circunstância de disporem da experiência prática qualifica bastante essas elaborações, em especial face a trabalhos congéneres de think tanks ou de meios académicos, quase sempre situados num universo excessivamente teórico. Além disso, o facto das forças políticas no nosso país produzirem quase sempre muito escassa doutrina criativa sobre política externa, que exceda meras reflexões conjunturais, muitas vezes marcadas pela polémica confrontacional, pode tornar ainda mais interessantes tais contribuições.
Grande parte dos textos que este livro recolhe são o resultado de um esforço de remar um pouco contra esta maré, de tentar assumir, enquanto profissional da diplomacia, uma intervenção regular de avaliação dos caminhos que se oferecem ao país em algumas áreas determinantes para a sua projecção e prestígio externos. Não se trata de contrapor uma linha alternativa às orientações seguidas no passado, quaisquer que elas sejam, até porque, as mais das vezes, essas mesmas orientações mais não foram senão o reflexo de meras rotinas de comportamento e reacção diplomática. Porque reiteradas ao longo do tempo, tais práticas surgem dignificadas como opções de política, constituindo-se como parte do chamado consenso em matéria de política externa, o qual, infelizmente, tem funcionado muitas vezes como factor inibidor da normal diversidade opinativa.
Perante os novos desafios da sociedade internacional, o nosso país tem rapidamente de entender que a simples repetição obsessiva de um paradigma diplomático, por muito coerente que ele se nos apresente, não substitui a importância de saber construir uma política externa pró-activa, que saiba adaptar-se às mudanças no cenário global e que possa, a cada momento, interpretar e reflectir os interesses que compete ao país defender nesse domínio. Não perceber a diferença entre as duas coisas, como frequentemente se vê, é condenar Portugal à irrelevância no quadro internacional ou, pior ainda, à dependência de estratégias alheias, em cuja definição só simbolicamente participamos. O que só contribui para aumentar ilusões e mitos sobre o real papel do nosso país no mundo.
Sendo que a forma é, em si mesma, uma dimensão do conteúdo, assumo que alguns dos textos incluídos neste volume podem ser vistos como saindo um pouco do tom “politicamente correcto” com que alguns dos temas são vulgarmente tratados entre nós, até porque não fogem a tentar avaliar, com frontalidade, certos aspectos tidos por mais polémicos. É nessa perspectiva que se constituem, com gosto, numa “segunda opinião" face à matriz de abordagem prevalecente. Deixo ao leitor a produção do juízo final sobre o eventual sucesso desta tentativa.
Este livro agrega reflexões produzidas ao longo dos últimos anos sobre temas que entendi importantes para o papel de Portugal como actor internacional. Textos com data e que frequentemente reiteram algumas ideias e conceitos, como é da natureza destas coisas. Numa incursão na primeira pessoa, atrevi-me a juntar dois textos polémicos sobre a imagem pública dos diplomatas portugueses e umas memórias sentidas de factos e pessoas marcantes no cenário global recente. Concedo que de todo este conjunto de textos, ligados apenas pela busca de alguma coerência na forma de ver o mundo e o papel de Portugal nele, não resulta nunca um olhar indiferente ou neutral. Mas isso é uma inevitabilidade, porque a visão de cada um constrói-se sempre a partir do lugar onde se está ou em se que foi colocado.
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Termino com um agradecimento a quantos, em particular nos últimos anos, souberam dar-me testemunho permanente da sua lealdade e amizade. Neles ocupa lugar singular a minha Família, a quem dedico este trabalho.
Uma palavra especial para Jorge Sampaio, que teve a disponibilidade amiga para prefaciar este volume. A minha geração fica a dever-lhe um raro legado de ética e integridade política.
Brasília, 31 de Janeiro de 2006
AINDA A EUROPA
PORTUGAL E CONSTITUIÇÃO EUROPEIA
O debate que se instalou em Portugal, a propósito da Constituição Europeia, durante a Convenção e a Conferência Intergovernamental que se lhe seguiu, foi talvez o primeiro grande momento, desde o início da presença portuguesa nas instituições comunitárias, em que se verificou uma efectiva contraposição de argumentos, em termos públicos, sobre a construção europeia e o papel que o nosso país nela desempenha.
Em grande parte suscitado pelos mais críticos ao curso que as discussões institucionais europeias estavam a levar, esse debate nacional teve a virtualidade de trazer a público, com grande franqueza, a avaliação das consequências de determinadas opções, fugindo mesmo ao tom esforçadamente consensual com que estes temas eram muitas vezes tratados no passado. A circunstância de muitos sectores da sociedade se terem sentido motivados para nele participar demonstrou a importância do momento que se atravessava e contribuiu para alargar o campo da polémica a sectores que vulgarmente o não frequentavam.
Julgo, por isso, que poderá ser interessante tentar caracterizar as diversas posições que foram assumidas nesse contexto, porque elas nos permitem avaliar melhor as percepções do projecto europeu que estão fixadas entre nós e que, sem dúvida, se projectarão em debates futuros. Mas antes de entrarmos nessa análise, valerá a pena fazer um breve bosquejo sobre o que se passou em Portugal em anteriores momentos da construção europeia.
A “bondade” da opção europeia
Diferentemente de outros países, Portugal viveu, durante muitos anos, sem levar a cabo uma reflexão profunda sobre o processo da construção europeia e o modo como o país era por ela afectado. A Europa havia sido “vendida” sem grande dificuldade no percurso que conduziu à adesão, porque esta foi sempre vista como uma opção de natureza essencialmente política, destinada a ancorar o nosso jovem regime democrático a um projecto alargado de estabilidade, que o protegesse de indesejáveis regressões. As injecções financeiras davam, além disso, alento aos que entendiam que o saldo da integração sobrelevava os custos que determinados sectores económico-sociais iriam ter de pagar, como efeitos colaterais da adesão. A magnificação desse saldo positivo – que é real – escondeu sempre alguns impactos negativos e, principalmente, evitou uma análise serena do modo como a própria adesão foi negociada. A circunstância de nela terem estado profundamente comprometidos os partidos que, desde há muito, dominam a vida política democrática portuguesa também ajudou a que essa avaliação nunca tivesse sido feita com grande rigor. Algumas surpresas poderiam aparecer, se essa análise tivesse sido desenvolvida, e talvez os portugueses percebessem melhor a razão de ser de algumas das dificuldades com que o país hoje se defronta no plano europeu.
Aparte algumas vozes mais reticentes, tidas como cassandras ou saudosas do tempo da autarcia, a bondade genérica da integração europeia impôs-se à maioria dos portugueses como uma evidência, potenciada pelo efeito miraculoso dos fundos nos bolsos e na paisagem quotidiana. A isso somou-se, no pensamento de alguns, o sentimento implícito de que um país como Portugal só tem vantagens em ser forçado a mudar por pressão exterior, dada a sua atávica dificuldade em se auto-reformar.
A aceitação do princípio de que o que vinha “de Bruxelas” era, à partida, de sinal positivo foi também garantida pelo facto de, no início, haver uma manifesta falta de massa crítica em determinados sectores da Administração Pública, para o escrutínio cuidado das propostas legislativas comunitárias, que repousavam num nível técnico que, por vezes, se situava acima da capacidade nacional para a desmontagem dos respectivos efeitos potenciais.
Acresce que essa mesma Administração Pública, com muito escassas excepções, vivia, de há muito, num confortável registo autista face à sociedade real, tendo sempre as mãos muito livres para interpretar, a seu bel-prazer, o conceito de interesse nacional no quadro das negociações externas. O facto das instituições da nossa sociedade civil serem pouco actuantes e condicionantes, dos partidos políticos serem então um deserto na análise aprofundada e desideologizada dos temas europeus e, em especial, dos agentes económicos e sociais terem uma capacidade muito limitada de influência técnica nas opções que o Estado fazia em Bruxelas levou a que este se comportasse como bem entendia nas opções que tomadas no plano comunitário.
Limitações do debate interno
Neste quadro de responsabilização do Estado perante a sociedade houve duas falhas muito importantes.
A primeira prende-se com os sectores intelectuais e académicos, bem como com a representação de interesses económico-sociais. Portugal deve ser o único país da União Europeia onde não existe um Instituto de Estudos Europeus com uma participação alargada, capaz de ser o lugar de encontro dos sectores relevantes da sociedade civil, do empresariado e da vida universitária. Todo o debate europeu com algum significado e profundidade deslocou-se, no nosso país, para think tanks de carácter generalista em matéria externa ou para eventos temáticos de natureza episódica, grande parte das vezes centrados nas questões da “grande política”, vulgarmente identificadas com a PESC ou com os temas de segurança e defesa. Por seu turno, algumas iniciativas universitárias, ou o aprofundamento temático em revistas especializadas, redundaram, também frequentemente, em debates microscópicos de natureza teórica, quase sempre protagonizados pelos mesmos actores. Com isso diminuíram o seu potencial de impacto no processo decisório oficial, que a Administração Pública, por seu turno, ciosamente cuidava em monopolizar e nunca foi forçada a partilhar.
Esta é uma característica do processo de decisão europeia em Portugal: a dificuldade de interacção criativa entre a Administração Pública e os meios pensantes da coisa europeia, bem como com os sectores representativos de interesses a ter em conta. Há uma evidente falta de estruturas e de cultura política que forcem a uma regular accountability pública por parte dos decisores oficiais, nomeadamente face aos interesses por que tem de cuidar. Por outro lado, no outro lugar do cenário, a escassez do debate estruturado com quem assegura a representação na negociação diplomática também evita que quem pensa teoricamente a Europa se submeta a testes práticos de realismo. São mundos que só episodicamente se encontram, o que conduz a imagens distorcidas e a falsas percepções de comportamento e ideias.
Uma outra falha, que só mais recentemente começou a ser colmatada, prende-se com o acompanhamento parlamentar da acção governativa no plano europeu. Por muito tempo, a Assembleia da República apenas desenvolveu debates de natureza esporádica e fixados em agendas de circunstância, quase sempre com uma abordagem muito impressionista, dependente de deputados supostamente versados em determinadas temáticas, que prevaleciam desmesuradamente no produto final dessa reflexão. O regular acompanhamento dos temas europeus pelo nosso parlamento demorou muito tempo a impor-se, pela resistência das maiorias parlamentares a facilitarem o escrutínio da acção europeia dos seus executivos: quando formalmente se iniciou, demorou muito a ultrapassar a fase do tratamento “pela rama" dos assuntos, pelo que tais exercícios se faziam sem grande exigência para as representações governamentais. O facto dos debates, em plenário ou em comissões, resvalarem frequentemente para polémicas de natureza política, em que o tema europeu era um mero pretexto de agenda, facilitou, como é evidente, a desqualificação dessa abordagem.
A ruptura de Maastricht
Costuma dizer-se que, um pouco por toda a Europa, os passos da integração dados até à conclusão do Tratado de Maastricht foram quase sempre conduzidos à revelia de um escrutínio das opiniões públicas nacionais. Em Portugal também assim foi, mas, no nosso caso, acresceu a circunstância dessas decisões também não terem sofrido, desde o primeiro momento, uma aferição parlamentar atenta, bem como por parte dos grupos de interesses perante os quais os sucessivos governos deveriam ter ajuizado da adequação das suas opções. O Estado esteve, assim, praticamente “à solta” na negociação internacional e, curiosamente, ficou a dever-se à atenção, cada vez mais especializada, de certa comunicação social a necessidade sentida pelos agentes políticos de justificarem certas opções tomadas na área externa. Julgo que o país não tem ainda consciência do que deve aos media nacionais neste domínio.
O tempo de Maastricht foi um acordar colectivo para uma Europa que estava a ser construída com um evidente défice no controlo democrático das decisões. O sobressalto público que então se gerou teve muito a ver com o facto de, pela primeira vez de forma flagrante, algumas das funções tradicionais da soberania terem passado a ser partilhadas, ou encaminhadas para uma partilha futura. As mais importantes reservas soberanistas expressam-se então perante a unificação monetária e a definição de uma linha tendencial em favor de uma política de segurança e de defesa comum. Em contraponto, os federalistas encontraram, nesses tempos, razões de júbilo para alimentarem os seus “amanhãs que cantam”, aberto que foi o caminho, graças ao voluntarismo criativo de Jacques Delors, para um significativo salto qualitativo em matéria de integração.
Em Portugal, a negociação de Maastricht escapou, como era de regra, a qualquer debate público. Com excepção da rede de consultas entre departamentos de Estado, e de alguns tímidos colóquios, não houve lugar a uma avaliação mínima das vontades exteriores, tidas por adquiridas para os benefícios dos avanços a acordar. Esta constatação não é, necessariamente, uma crítica: o Estado responde aos impulsos exteriores e, na ausência destes, substitui-se-lhes.
A atitude negocial portuguesa
Ao olharmos para o posicionamento do nosso país na negociação europeia – e refiro aqui apenas a negociação institucional e das políticas comunitárias – verificamos que há algumas linhas constantes que atravessaram os sucessivos processos, não obstante as adaptações que o tempo e o realismo foi impondo.
Essas linhas partem de Maastricht e vão até ao Tratado Constitucional, passando pelas negociações de Amesterdão e de Nice.
No plano institucional puro, é importante assumir que a doutrina oficial aculturada no Ministério dos Negócios Estrangeiros – que definia o essencial da “linha”, sujeita a afinação por parte dos responsáveis políticos – foi sempre marcada por um arreigado conservadorismo. Nela prevalecia um pensamento favorável à preservação do status quo em grande número de domínios, de que são paradigma as reticências à atribuição de mais poderes ao Parlamento Europeu, bem como aos Comité das Regiões ou ao Comité Económico e Social. A consciência de que Portugal se situa frequentemente à margem de alguns dos interesses médios projectados em Bruxelas tornou o nosso MNE muito resistente à extensão das decisões por maioria qualificada, não optando por uma perspectiva dinâmica. A unanimidade deveria, assim, ser mantida no maior número de áreas possível, orientação que igualmente prevalecia na área da Justiça e Assuntos Internos e, por maioria de razão, em temas de Política Externa e de Segurança Comum (PESC).
Nas políticas comunitárias, prevalecia aquilo que poderíamos designar como um “europeísmo utilitário”. Por regra, Portugal associava-se ao desenvolvimento ou à comunitarização tendencial de políticas que pudessem, directa ou indirectamente, beneficiar o país na distribuição dos pacotes financeiros, o que era confundido, aos olhos de alguns, como uma verdadeira vontade integradora. Essa falsa imagem europeísta, produto de uma miopia de curto prazo, foi igualmente reforçada por uma sistemática colagem à Comissão Europeia e à preservação dos seus poderes, tida, durante muito tempo, como o principal aliado no carrear de vantagens económicas para o país.
Tendo como eixo estas posições-chave, verifica-se, contudo, que a atitude portuguesa se foi adaptando ao longo dos tempos, fosse pela realidade das coisas ou pela imperatividade de pressões externas dominantes, fosse por uma efectiva maturação do debate interno, que conduziu a inflexões e algumas evoluções no nosso discurso europeu. Infelizmente, Portugal acabou muitas vezes por adaptar o seu discurso muito tarde e à contre-coeur, o que não contribuiu para prestigiar a nossa imagem negocial. Digo-o com a consciência de quem também titulou alguns desses erros.
Um ponto interessante na posição portuguesa foi o facto de sempre se ter procurado evitar a sedimentação de factores que pudessem vir a agravar a periferização do país. Isso levou os negociadores a, simultaneamente, tentar limitar ou controlar os riscos das fórmulas de integração diferenciada (ou “cooperações reforçadas”) e a seguir algum voluntarismo centrípeto de adesão aos modelos desse tipo de integração entretanto criados (Schengen, moeda única), nunca arriscando alinhar em sistemas de opt-out.
Com honestidade, há que reconhecer que, na linha orientadora da negociação por parte de Portugal, a assunção de uma postura mais europeísta se fez sempre de uma forma algo subordinada à perspectiva intergovernamental tradicional. E não será novidade se se afirmar que foram os decisores políticos que, quase sempre, tiveram de vencer a considerável resistência da Administração Pública às opções mais integradoras.
Debate sobre a Constituição
Como referido no início deste texto, a discussão sobre o Tratado Constitucional – o que viria a ser a Constituição Europeia - trouxe à evidência um conjunto de posições mais alargado do que aquele que costumava dominar o debate europeu entre nós. Tentar-se-á tipificá-las.
Desde o anúncio da instituição da Convenção Europeia, o campo dos chamados Eurocépticos denunciou aquilo que considerou ser a pretensão de alguns Estados de, com este Tratado, reforçarem o seu poder efectivo no controlo da União Europeia, anulando institucionalmente os efeitos do novo alargamento e liquidando, de caminho, a capacidade de representação dos Estados de menor dimensão.
Tratava-se, assim, e como única solução para pôr cobro a esta deriva, de garantir uma radicalização aberta de posições, forçando um referendo em que a força objectiva daquela denúncia teria forçosamente de conduzir à rejeição do Tratado. Este foi o cenário de crise preferido por forças situadas bastante à direita e à esquerda do espectro político, com algumas nuances que não permitem uma total generalização e identificação de posições.
Um grupo que designaremos por Realistas viria a adoptar uma posição táctica mais moderada ou contemporizadora. Partindo do mesmo princípio que os Eurocépticos – este Tratado consagra a tomada do poder por um “directório”, pelo que o sistema de votação por dupla maioria (população/Estados) é basicamente negativo –, esse grupo cedo entendeu, contudo, que era impossível resistir às tendências que se iam consagrando como maioritárias e que Portugal nunca se poderia dar ao luxo de ficar responsável por uma ruptura negocial. Assim, os cultores dessa orientação limitaram-se a alvitrar soluções de compromisso, destinadas a atenuar alguns dos aspectos mais gravosos do texto do Tratado.
Nesse grupo Realista é possível identificar, por assim dizer, duas correntes: aquela que via na potencial rejeição do Tratado, por falta de ratificações alheias ou pela cumulação de referendos falhados, a solução ideal, o que a aproximou dos Eurocépticos, embora sem querer pagar o preço político de uma atitude singular de aberta rejeição do Tratado por parte de Portugal; e aquela que, encontrando virtualidades em grande parte do texto do Tratado, centrou as suas objecções essencialmente no processo decisório proposto, porque baseado no predomínio do factor demográfico, pelo que se inclinou para soluções que pudessem conduzir à sua atenuação (diferentes limiares na dupla maioria) ou ao recurso, ainda que temporalmente parcial, ao sistema de Nice.
No extremo oposto, encontramos naturalmente os Federalistas, aqueles que continuam a defender a instituição de um modelo federal para a Europa.
Parte desse grupo terá já percebido que o caminho a que a nova Constituição Europeia conduziria aponta para uma via que acaba por ser divergente do modelo federal, em especial pela ausência de uma, agora já irrecuperável, instituição de tipo Senado, com representação equitativa de todos os Estados. No entanto, essa escola de pensamento assume, mesmo assim, uma atitude do tipo “do mal, o menos”, pelo que acha preferível apoiar este passo constitucional, até pelo peso do seu simbolismo, ficando a aguardar melhor ocasião para outros saltos de qualidade no processo europeu.
Ao lado dessa facção, que saiu algo desiludida do resultado final obtido, existia uma outra linha federalista, mais radical e optimista, que achava que nenhum preço era exageradamente alto, desde que se pudessem obter todos os avanços no plano europeu que o Tratado consagra. Para os cultores dessa escola, parecia preferível correr o risco de entrar numa Europa subordinada ao poder objectivo de alguns Estados – e menorizavam os riscos de um “directório” – do que escudar o país atrás de uma perspectiva defensiva e “nacionalista”. Esta escola de pensamento federalista entendia que, a prazo, não haveria qualquer contradição entre quaisquer interesses portugueses e o interesse médio europeu que justificasse a luta pela preservação de uma capacidade decisória nacional significativa no processo europeu.
Finalmente, nesta tipificação de atitudes no debate constitucional europeu, valerá a pena qualificar quantos entenderam que o resultado desta Constituição Europeia não tinha para nós uma relevância que justificasse que o país se empenhasse, com custos políticos elevados, em combater os seus supostos aspectos negativos. Essa escola de atitude, porque não é uma escola de pensamento, privilegiou a “fuga entre as pingas” às complicações de um debate europeu mais profundo. Trata-se da adopção de uma espécie de Situacionismo europeu, de estar com o ar do tempo, à espera que o tempo passe. Tacticamente, foi escolhendo pontos menores como “cavalo de batalha” e, acomodados estes, reclamou vitória. Para quem estava distraído, foram os eternos vitoriosos.
O cruzamento público de todas estas diferentes perspectivas enriqueceu, de forma evidente, o debate europeu em Portugal. Além disso, se atentarmos na evolução da linguagem assumida perante este processo pelas forças políticas que se assumem como alternativas de governo, facilmente concluiremos que o debate constituinte europeu acabou por gerar, no nosso país, uma atitude política, que se afigura maioritária, muito mais aberta às soluções que acabaram por se ver plasmadas no texto da Constituição Europeia. Isso também ficou evidente em sectores importantes da comunicação social, que, em grande parte, foi conquistada para as virtualidades da Constituição e para a irrelevância da maioria das objecções que o mesmo suscitou em certos sectores. Só o futuro da Constituição Europeia, ou do que dela vier a sobrar, se encarregará de demonstrar se essa visão corresponde, ou não, ao interesse de Portugal e dos portugueses no plano europeu.
O ALARGAMENTO E A ACÇÃO EXTERNA DA EUROPA
Na reflexão prospectiva sobre quais poderão vir a ser os efeitos do último alargamento na evolução das diferentes políticas da União Europeia, a Política Externa e de Segurança Comum (PESC) tem sido, curiosamente, das áreas para que converge uma menor atenção. E o mesmo se poderá dizer quanto ao restante quadro de relações externas da União.
A razão parece natural: no plano dos princípios e objectivos, os novos países aderentes deram sempre consistentes sinais de partilharem o sentido das decisões gizadas a Quinze e têm-se mantido na esteira desse mesmo acervo diplomático, em especial pela subscrição regular de declarações PESC nos mais diversos domínios – dando um sinal incontroverso de solidariedade e sintonia com o sentido da expressão externa da União Europeia, seja no seu plano intergovernamental, seja no campo puramente comunitário. Em teoria, as novas adesões poderiam, assim, ser presumidas como um factor neutral nos equilíbrios decisórios a Quinze, aparecendo apenas como um elemento acrescido de reforço da projecção externa da União.
O tema tem, além disso, contornos de alguma delicadeza, que roçam o “politicamente correcto”. A título de exemplo, nunca ninguém suscitou abertamente o receio de que a entrada de alguns dos novos membros na União, com estruturas democráticas recentes, com fragilidades num tecido institucional pouco testado por crises, com uma escassa densidade operativa da sua sociedade civil, pudesse vir a prenunciar uma deriva desfavorável à preservação rigorosa de certos valores da matriz ética gerada na União a Quinze, nomeadamente em matéria de Direitos Humanos, liberdades fundamentais ou preservação de princípios do Estado de Direito. E só alguns ousaram lembrar que a questão da protecção de minorias está hoje ainda longe de ser um tema pacífico, quer no contexto interno de certos candidatos, quer na própria relação bilateral entre alguns deles. Porém, se a observância de tais valores pelos candidatos não é posta em causa, por maioria de razão a respectiva prevalência no quadro das relações externas da União Europeia não deverá constituir um elemento de polémica.
O alinhamento colectivo da maioria dos países candidatos em favor das posições norte-americanas na questão iraquiana veio, contudo, recordar o interesse de uma análise prospectiva dos efeitos da presença dos novos aderentes nos mecanismos decisórios da PESC. A “nova Europa” que tanta esperanças terá criado no senhor Rumsfeld, será ou não, no futuro, uma espécie de “quinta coluna” dos interesses americanos no plano europeu ? Para alguns, terá feito rever, talvez pela primeira vez, o juízo de neutralidade funcional do alargamento na PESC, que nunca haviam contestado.
A nosso ver, este tipo de questões não deve ser dramatizado, quanto mais não seja pelo simples facto de se tratar de uma realidade que hoje é incontornável. Mas a União Europeia nada tem a ganhar em procurar ignorar as potenciais dificuldades que podem surgir no novo processo de integração em curso, até para criar condições para a sua resolução tempestiva. A reunificação política da Europa que o alargamento constitui traz um saldo, em si próprio, tão positivo e promissor para o futuro do continente que sempre superará todos os inevitáveis problemas que lhe possam estar associados. Os quais só há vantagem em identificar com frontalidade, a tempo e horas.
Nesta perspectiva, gostaríamos de colocar cinco ideias em debate.
Alargamento - factor de desequilíbrio ?
A primeira ideia vai no sentido de considerar que os novos países podem vir a funcionar como um elemento de desequilíbrio, e até de potenciação de clivagens, numa Europa em que o papel dos key players ainda não encontra pontos de conjugação perante algumas grandes questões no plano internacional. Quer-se com isto dizer que as áreas em que a PESC “ainda não existe” podem sofrer um cenário de estagnação ou regressão numa Europa alargada. E o papel dos EUA nesse contexto poderá não ser despiciendo, alterando substancialmente os termos de referência do processo decisório a Quinze.
Este cenário é aparentemente realista. Num quadro em que os principais actores diplomáticos europeus não coincidam nas suas propostas, é natural que haja factores de polarização para que alguns dos novos membros possam ser atraídos. Tal pode acontecer por meros alinhamentos geo-estratégicos de proximidade, como pode ocorrer como decorrência indirecta de conjugação de interesses de outra natureza, com reflexos na frente diplomática. Pouco é possível fazer neste quadro: se a União Europeia for incapaz de gerar posições comuns sólidas entre os seus Estados Membros menos poderosos, não se espere que sejam os recentes aderentes a contribuir para colmatar tais brechas. O problema será, então, saber se poderão ou não contribuir para agravar tais divisões.
A “nova Europa” e a solidariedade internacional
A segunda ideia diz respeito ao papel dos novos países face ao actual quadro estabilizado de relações externas da União, quer no plano da articulação diplomática tradicional ao nível do Conselho (acções, posições e estratégias comuns, trabalho do Alto Representante/futuro MNE), quer no tocante à acção externa da Comissão Europeia. A questão está em saber se os países candidatos, nomeadamente no contexto da discussão das “perspectivas financeiras”, convergirão na aceitação pacífica de um acervo histórico-político que não deixará de ter decorrências nas afectações orçamentais para a área externa, com eventual prejuízo dos seus interesses imediatos, nomeadamente nas políticas internas.
Um mínimo de realismo deve levar-nos a pensar que, face ao previsível quadro de restrições orçamentais que a União Europeia vai viver entre 2007 e 2013, os meios postos ao dispor da sua dimensão externa não deixarão de ser afectados. É óbvio que esta indisponibilidade para providenciar fundos para tal fim é contraditória com o interesse, por todos sublinhado, de dar um perfil internacional mais elevado à União, para que a Constituição Europeia claramente aponta. Mas nem sempre o que é óbvio tem condições de ter sucesso.
A União Europeia que aí está criou, nos últimos anos, uma rede de compromissos externos, com elevadas consequências financeiras, de que dificilmente se poderá libertar, se não quiser entrar num curso de incoerência e perder a face perante terceiros. Estamos a falar, por exemplo, dos compromissos no quadro dos Acordos de Estabilização e Associação, da Iniciativa Nova Vizinhança, mas a necessidade de manter a atenção a outras zonas do mundo, nomeadamente no quadro da Convenção de Cotounu, neste caso com a orçamentalização do FED. Em áreas de trabalho novas, a Europa pode ser chamada a colmatar a sua actual debilidade interventiva em espaços como o Afeganistão, o Iraque ou áreas diversas do Médio Oriente, particularmente se uma evolução política positiva vier aí a ter lugar. E não é de excluir que, num quadro de mutação das circunstâncias actuais, a União não venha a ter de desembolsar consideráveis fundos para “recompensar”, de forma mais substancial que o planeado, certas evoluções políticas em determinados países, se razões estratégicas tal justificarem.
Neste exigente contexto, que se coloca num tempo de grandes restrições financeiras, onde se irão situar os novos membros? Naturalmente que, para muitos eles, tributários de um passado de dificuldades e de um presente de muitas incertezas, a sensibilidade face a estes desideratos estratégicos é, por ora, muito limitada. No plano imediato, entendem que o orçamento não é elástico e que o reforço das dimensões externas acabará, muito simplesmente, por funcionar em detrimento das políticas de coesão intracomunitária, onde assentam muitas das suas esperanças a curto prazo, até para melhor justificar a adesão frente às suas opiniões públicas. Acresce que, em muitas dessas políticas voltadas para o espaço exterior da União Europeia, os novos países não deixam de detectar interesses velados dos países europeus mais desenvolvidos, quer pelo prolongamento de laços externos tradicionais, quer como formas de compensação para ganhos noutros tabuleiros, nomeadamente de ordem comercial.
A Rússia e a segurança dos novos aderentes
A terceira tese prende-se com o possível carrear para o seio da União de tensões que alguns desses Estados mantêm com a Rússia, produto conjugado de traumas históricos generalizados com a prevalência de certos conflitos actuais não resolvidos.
A incontestável importância que a estabilidade do relacionamento com a Rússia tem para os Quinze pode, assim, confrontar-se com a emergência de agendas nacionais no relacionamento com Moscovo que não se exclui funcionem como factores de bloqueio, difíceis de superar se apenas projectados no actual quadro decisório da PESC.
A segurança europeia
Uma quarta ideia assenta na importância de se pensar nos possíveis novos alinhamentos na Europa numa lógica que parta da dimensão de segurança e defesa para a dimensão política. A grande maioria dos países candidatos terá, com a sua entrada para a NATO, “queimado etapas” e estará, porventura, mais disponível para partilhar lealdades que directamente se colem às suas compreensíveis preocupações securitárias do que partir de um elaborado programa político-estratégico comum para a construção de mecanismos de segurança e defesa que lhe dêem posterior consistência operativa, nomeadamente no quadro de uma Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD). A questão está em saber se a eventual utilização do mecanismo das cooperações reforçadas nesta última área, não poderá, afinal, vir a funcionar como uma dimensão que “puxará” pela PESC, em lugar da natural evolução em sentido contrário.
A questão institucional
Finalmente, a quinta e última ideia liga-se à necessidade de ponderar se a dimensão dos próximos alargamentos, com a diversidade de culturas políticas que introduz na União Europeia, não terá de conduzir a uma reflexão aprofundada sobre os próprios mecanismos da PESC, na linha de uma sua evolução mais radical para procedimentos decisórios por maioria, embora em modelos diferentes daqueles que são usados tradicionalmente noutras dimensões da União.
Temos, assim, pela nossa frente a necessidade de uma exploração prospectiva dos eventuais efeitos disruptores dos alargamentos no modelo de uma PESC que vinha definindo-se como uma cultura ou jurisprudência diplomática erigida à luz de alguns vectores que, subitamente, vão sofrer novas tensões. E tentar perceber se os principais actores União, bem como os actores externos com capacidade de os influenciar (EUA e Rússia, entre outros com menor peso directo), estão ou não em vias de terem de redefinir o seu tecido de alinhamentos.
Encontrar uma solução de conjunto para a PESC e para o sistema geral de relações externas da União Europeia, que preserve o essencial do respectivo acervo e tenha simultaneamente em conta legítimas expectativas dos novos aderentes, é uma exigência de que todos os Estados membros deverão ter plena consciência. Em causa está, não apenas uma progressão sustentada de tais políticas, mas igualmente a sua credibilidade e aceitabilidade, o mesmo é dizer, a sua afirmação como um elemento constitutivo central da própria UE do futuro.
PORTUGAL E A PESC
A dimensão externa inicial da Europa comunitária, e em nome dessa mesma Europa, surgiu como um imperativo natural à preservação dos seus interesses de natureza económica. A partir do aumento exponencial de questões relativas às Comunidades Europeias que se tornava vital cuidar na ordem internacional, em especial após o surgimento de oportunidades nas relações específicas com alguns espaços colocados no horizonte estratégico europeu, na sua proximidade geográfica ou em áreas de potencial influência, foi-se gerando aquilo que constitui o impressionante tecido de relações externas da actual União Europeia.
Neste quadro evolutivo, aparece em paralelo a Cooperação Política Europeia (CPE), como uma decorrência natural do modo tendencialmente comum de olhar politicamente o exterior à Europa comunitária. De início, foi apenas uma incipiente tentativa de cruzar ou cumular as “boas práticas” diplomáticas dos Estados Membros, a caminho de uma atitude política desejavelmente colectiva perante determinados cenários. Contudo, a “jurisprudência” diplomática que a partir daí se gerou veio a ter muito mais importância para os aparelhos de todos os Estados Membros do que à primeira vista seria expectável.
Com o termo efectivo da Guerra Fria e da polarização Leste-Oeste, uma maior diversidade de perspectivas na abordagem do mundo à volta da Europa comunitária pôde afirmar-se no seu seio, já sem criar riscos maiores de natureza estratégica. Embora com visões diferentes, foi-se fixando a consciência de que a voz de uma Europa-potência, capaz de se recolocar face ao novo fenómeno da hiperpotência americana, embora não necessariamente contrapondo-se-lhe, iria exigiria um salto qualitativo de natureza político-institucional. Para tal, seria importante fazer evoluir o tratamento das questões externas da simples coordenação a que a CPE nos habituara.
Depois de Maastricht
Isso conduziu às várias tentativas de densificação de uma Política Externa e de Segurança Comum, a partir de Maastricht, passando por Amesterdão até ao projecto da Constituição Europeia. Nesse debate estiveram presentes, desde o início, as reticências semânticas que nasceram em torno das perspectivas de evolução em matéria de segurança e defesa. Não obstante os tempos de aproximação de posições, tais dificuldades continuam visíveis no diferenciado modo de abordagem dessa mesma dimensão, hoje em torno da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), parte integrante da PESC.
A PESC que Maastricht começou a consagrar é um salto qualitativo que decorre da consciência que a Europa comunitária assume do seu próprio poder e as suas novas responsabilidades, nestas contando o surgimento da premência de novos alargamentos ao Centro e Leste da Europa e os imperativos, que se revelaram inadiáveis, de gestão de crises em áreas vizinhas ou vitais para a sua segurança. No seio da PESC, a PESD virá a ser o saldo do laborioso consenso, através do qual a força da Europa comunitária se objectiva em termos securitários.
Nos primeiros tempos da PESC articularam-se, numa gestão hábil marcada por muita ambiguidade, alguns princípios com muita realpolitik. A dimensão externa de natureza política das antigas Comunidades Europeias havia começado por assentar na cultura comum de liberdades que a Europa ocidental foi sedimentando na sua oposição ao bloco socialista tutelado pela URSS. Nesse quadro muito genérico, os elementos comuns eram de fácil aceitação e raramente divergiam de forma significativa das leituras que os EUA faziam, salvo nos casos em que a tal realpolitik se impunha. Mas, como referido, as idiossincrasias de alguns Estados Membros cedo encontraram nas dimensões de segurança e defesa, isto é, nas dimensões que se prendem com a NATO de que muitos fazem também parte, o seu espaço privilegiado de expressão. Assim, e por essa via, a importância operativa do laço transatlântico desde logo acabou por prevalecer no seio da PESC.
Hoje, com alguma distância, não deixa de ser de certo modo irónico verificar que, no momento em que a Europa comunitária, pós-Maastricht, começava a encaminhar-se para uma relativa unidade de visões em matéria de política de segurança (com a Irlanda em algum isolamento pela sua política de neutralidade), o alargamento seguinte – de 12 para 15 – tenha acabado por incorporar na União três países que, pela sua singularidade nesse domínio, ajudaram a sedimentar a dificuldade para promover rápidos avanços. Áustria, Finlândia e Suécia vieram reforçar o pólo neutralista e, como se viu nas negociações do Tratado de Amesterdão, contribuíram claramente para travar tal processo.
Anos mais tarde, volta a ser interessante notar como o grande alargamento a 25, com a inclusão de 10 novos Estados, muitos deles com uma história muito específica no seu relacionamento com a antiga URSS, traz para a PESC uma visão muito própria sobre um eventual reforço da identidade europeia de segurança e defesa, tributária de uma gratidão histórica face aos EUA, que veio a ter sensíveis consequências nos equilíbrios internos na nova União. Um teste imediato a esta nova realidade foi a polarização que ocorreu por ocasião da 2ª Guerra do Golfo, em 2003, com a “Carta dos Oito” a dar razão aos que, do outro lado do Atlântico, apostavam nas virtualidades da “nova Europa”, bem como de alguns outros complacentes governos da “velha Europa”, para travar ou atrasar as veleidades de criação de uma dimensão de segurança e defesa europeia não dependente da vontade ou da anuência constante de Washington, bem como dos meios NATO que os EUA controlam.
Por tudo isto, não é de surpreender que a considerável aculturação na gestão da acção diplomática comum, que a PESC foi capaz de gerar, se confronte hoje ainda com muitas dificuldades na definição das linhas de evolução da PESD que nela está inserida.
Prioridades e receios
Portugal entrou na Cooperação Política Europeia e, posteriormente, actuou no quadro da PESC com duas preocupações essenciais.
Uma primeira era de natureza conjuntural e prendia-se com a que era então a tarefa central da diplomacia portuguesa: a preservação da questão de Timor-Leste na agenda internacional, com vista a garantir o direito de autodeterminação do seu povo.
Um certo complexo de culpa histórica face ao modo como Timor-Leste fora degradado no quadro das prioridades portuguesas, no difícil contexto do seu processo de descolonização, que muito facilitou a invasão indonésia, levou a uma mobilização de esforços diplomáticos nacionais, embora com nuances temporais de empenhamento político que uma análise mais fina permite identificar.
Desde os seus primeiros anos dentro da então CEE, Portugal teve de defrontar-se com a frieza estratégica da generalidade dos seus novos parceiros, muito raramente sensibilizados para um obscuro problema que, por culpa portuguesa, colocava uma sombra incómoda sobre as suas rentáveis relações com a Indonésia, que dispunha da solidariedade colectiva da ASEAN. Com notável persistência, Lisboa recusou sempre dar a sua indispensável bênção ao reforço das relações institucionais entre os dois espaços enquanto o problema de Timor se não resolvesse a contento dos princípios do Direito Internacional. Pode dizer-se que o massacre cometido pelos indonésios em Santa Cruz , em Novembro de 1991, foi o ponto de viragem a partir do qual Portugal atenuou a sua solidão internacional neste processo, onde acabou por ter uma vitória moral que muito dignificou o país.
A segunda linha de preocupações tinha a ver com o cuidado de não pôr em causa a preeminência da NATO no seu quadro de segurança e defesa externa.
A partir do século XX, a matriz tradicional de comportamento da diplomacia portuguesa assentou sempre no pressuposto de que o laço transatlântico, e a ligação a quem na Europa melhor permitia preservá-lo, constituía um eixo determinante no posicionamento externo do país. Esta leitura apoiou-se sempre na necessidade de evitar que uma polarização centrípeta continental trouxesse decorrências de fragilização estratégica para o país. Nem a perda das colónias na década de 70, fundamento teórico para muita desta construção, desactivou este tropismo em matéria de alianças.
De sublinhar que este quadro referencial de atitude externa sofreu pouca ou nenhuma mudança nos primeiros anos de presença portuguesa na Europa comunitária. Reino Unido e Países Baixos, tidos com Portugal como os mais Nato-friendly countries, foram os aliados preferenciais nesse esforço para garantir que os passos de definição de uma política europeia de segurança e defesa se não faziam de forma minimamente detrimental para a Aliança.
O entendimento franco-britânico de St. Malo, em Dezembro de 1998, abriu caminho a uma criativa perspectiva de compatibilização entre o reforço do que poderá vir a ser a PESD e a preservação dos compromissos NATO. Atenuados os temores, a posição portuguesa veio a passar por uma sensível evolução, sustentando, a partir de então, um maior e mais construtivo empenhamento nos esforços de articulação continental em matéria de segurança e defesa. Essa posição viria, contudo, a ser seriamente colocada em causa pelo seguidismo acrítico demonstrado por Portugal na crise entre os EUA e o Iraque, em 2003.
No futuro, com uma parte da “nova Europa” pós-alargamento a ecoar reticências ao projecto da PESD dentro da PESC, e tendo como pano de fundo uma crise de inéditas proporções na construção europeia, será interessante vir a observar os próximos passos da atitude oficial de Lisboa neste domínio.
Política externa: portuguesa ou europeia ?
Num quadro de aprofundamento da PESC, de tendencial extensão de uma política de dimensão europeia a áreas tradicionalmente cobertas pela acção diplomática dos Estados Membros, onde ficará, no futuro, a política externa de um país como Portugal? Não tendo o país os mecanismos de afirmação externa - nos planos político, económico e logístico – ao nível do de outros parceiros da União Europeia, que áreas será possível e/ou desejável preservar para uma acção externa tida por autónoma ou específica de Portugal? E, em termos de eficácia objectiva, terá esse tipo de acção algum sentido prático no mundo contemporâneo? Ou será que a afirmação de uma identidade diplomática portuguesa, numa Europa com uma política externa tendencialmente comum, mais não é que um estertor simbólico de um poder diplomático moribundo?
As angústias que se caricaturaram no parágrafo anterior atravessam hoje muitos dos executantes da acção diplomática portuguesa e outros sectores que pensam sobre o tema, embora subsistam dúvidas sobre se elas também se constituem como preocupação central para alguns dos proponentes das orientações de política externa que lhes devem estar a montante, nomeadamente ao nível da reflexão em sede das forças políticas com vocação governativa. A resposta àquelas questões tanto pode ser encontrada numa cómoda e patrioteira reacção anti-europeia, como no assumir do desprezo determinista de quantos acham que a Europa será, inexoravelmente, a cura milagreira para todas as tentações soberanistas.
Como sempre, a verdade deve andar pelo meio dessas duas linhas, mais ou menos radicais.
Ao entrar para a Europa comunitária, Portugal não se condenou à imperatividade de seguir um determinado caminho, nomeadamente em termos de União Política. Mas parece óbvio que, ao colocar-se no seio de uma estrutura cuja dinâmica de mutação só quase simbolicamente controla, Portugal viu-se e continua a ver-se forçado a encaminhar-se na linha de certas opções que, numa decisão totalmente autónoma, não seriam necessariamente as suas. Estamos perante um subliminar processo de condicionamento de decisão que, goste-se ou não, funciona mais em detrimento dos países menos poderosos no seio da União Europeia e, em especial, de quantos se situam um tanto à margem do mainstream dos interesses médios da União.
Mas, em termos práticos, em matéria de política externa comum, será que Portugal está num processo de ruptura com o padrão médio da União Europeia, como sucede em diversas dimensões das áreas económico-sociais da União? A resposta é não: nada indica que o esteja e – o que é mais importante – nada indica que venha a estar.
A área externa europeia é um terreno muito sensível, em que a experiência demonstra que, salvo em matéria de política comercial, muito raramente se assumem posições que abertamente confrontem a vontade ou um interesse tido por essencial de um Estado Membro. Com efeito, a crescente diversidade das perspectivas que hoje, cada vez mais, se projectam sobre a decisão externa no seio da União Europeia é a melhor garantia da dificuldade de ser formarem orientações que se possam assumir como contrastantes face aos nossos principais interesses.
Acresce que Portugal tem, historicamente, uma identidade de expressão externa isenta de tensões potenciais extremas, estando, além disso, inserido num contexto geopolítico onde se não vislumbram cenários confrontacionais. Na hipótese teórica desses cenários virem a afirmar-se no futuro, não há nenhum elemento que leve a configurar a hipótese do país se ver numa posição de isolamento político no seio da União Europeia. E ainda que esse isolamento viesse a verificar-se, não há condições práticas para se formar uma vontade europeia com poder coercivo sobre a vontade nacional portuguesa.
Note-se que estamos a falar de opções de política externa, não estamos a encarar cenários de política de defesa onde as coisas seriam ainda muito mais remotas.
Lições da PESC
Afastados assim cenários extremos, importa olhar para as linhas tendenciais que podem prevalecer. Para tal, temos forçosamente de pensar a experiência passada. E nesta, a nossa avaliação é de que o template europeu que marcou a nossa política externa desde a Adesão, acabou por trazer-nos mais vantagens do que desvantagens. Portugal conseguiu ver contemplados na PESC alguns dos seus principais objectivos e prioridades – em alguns casos menos pelos facto de os ter conseguido impor, mas mais porque eram razoáveis e consonantes com os interesses dos outros, se bem que a diplomacia portuguesa os tivesse habilmente sublinhado como seus.
Porque exemplares, destacaria dois casos, um de natureza geográfica, outro de natureza temática.
No primeiro, incluiria o reforço das relações com a África subsaariana e com a América Latina, vertentes geopolíticas a que Portugal, por óbvias razões, sempre dedicou uma grande atenção e conferiu permanente destaque no seu discurso europeu, quer no tocante ao relacionamento político institucionalizado, quer em termos de apoio a processos de desenvolvimento e incremento do intercâmbio económico.
Face aos problemas que se mantêm na fixação da vontade política para garantir uma articulação eficaz entre a nova União Africana e a União Europeia, bem como as dificuldades de natureza económica que atrasaram o acordo UE-Mercosul, Portugal tem mantido uma permanente e coerente disponibilidade de facilitação e impulso político, bem reconhecida pelos parceiros do Sul.
O segundo caso prende-se com a vertente Direitos Humanos. Cultor tardio do multilateralismo, Portugal desenvolveu, por via do imperativo da questão de Timor-Leste, uma consciência em matéria de Direitos Humanos a que a Europa acabou por ajudar a dar algum espaço de afirmação e afinação. Hoje, o país está muito confortável para se colocar, se assim o entender, na primeira linha de defesa desta vertente no plano europeu e, por seu intermédio, no contexto multilateral mais geral. Importante será não se perder a massa crítica entretanto criada em Portugal na matéria e, em especial, evitar cair na tentação de enveredar por uma política “pragmática”, velho eufemismo para o oportunismo em matéria de política externa.
Em infeliz contraponto, o curso da última década acabou por atenuar a importância que a Europa deu ao processo integrado de cooperação com os países da orla sul mediterrânica, uma das dimensões externas da União onde Portugal melhor soube posicionar-se desde a Adesão, ao colocar-se na vanguarda europeia dos proponentes de políticas muito concretas de apoio a esses Estados, com muitos dos quais já mantinha excelentes relações de natureza bilateral. Qualquer que venha a ser o futuro do modelo de política mediterrânica da União Europeia – e Portugal deveria estar na primeira linha da respectiva protecção –, pode concluir-se que as relações de Portugal com Marrocos, Tunísia, Argélia, Egipto e Líbia (objecto de uma curiosa iniciativa portuguesa na segunda metade de 2005) foram muito potenciadas pela nossa intervenção comunitária.
A perda de relevância da política mediterrânica, somada ao crescente sublinhar em Bruxelas de outras dimensões de vizinhança geopolítica de que estamos mais distantes, torna importante que, também no seio da PESC e políticas externas correlacionadas, saibamos criar e gerir uma hábil política de alianças em favor daquilo que são os nossos “nichos” de prioridades estratégicas.
O desafio da PESD
A nosso ver, para um país como Portugal, o grande desafio do futuro no tocante à PESC situa-se, essencialmente, no âmbito da PESD. As limitadas ambições desta nos tempos actuais têm disfarçado as nossas fragilidades, até agora superadas por um hábil voluntarismo e selectividade de intervenção. Porém, uma PESC muito activa a todos os azimutes no cenário mundial (com mobilização intensa da PESD), particularmente se continuar a assentar numa lógica intergovernamental à la carte, deixará Portugal em algumas dificuldades. Assim, parece ser do nosso interesse favorecer uma comunitarização da PESC/PESD, onde a nossa capacidade de influenciar o processo decisório é maior do que num registo de colheita de vontades e forças para cada caso de intervenção. De igual modo, não parece ser do nosso interesse favorecer a constituição de gendarmeries europeias ou corpos afins, bem como de “cooperações reforçadas” que já não dependem da simples vontade política mas sim de efectivas forças militares e de capacidade financeira a nível nacional para as sustentar, numa deriva dualista europeia. Não apenas porque teríamos escassas hipóteses de controlar tais esforços sectorializados, mas igualmente pela questão de princípio de não devermos favorecer a tendência para que apenas alguns falem e ajam com o label europeu colectivo.
O “AMIGO AMERICANO”
Há tempos, ao passear pela ruas de Bratislava com um amigo eslovaco, candidato derrotado às últimas eleições presidenciais, dizia-me ele que, no imaginário dos novos aderentes à União Europeia, a gratidão histórica face aos Estados Unidos, pela liberdade obtida no saldo da Guerra Fria, continua a suplantar, em muito, o entusiasmo pelo projecto europeu de que passaram a fazer parte. A segurança soft que a integração europeia lhes induz está, manifestamente, num patamar de apreço inferior às garantias que a adesão à NATO – isto é, à protecção americana – representa para as actuais gerações desses Estados.
Se isto não é uma novidade, deve, contudo, constituir um elemento para reflexão que pode ajudar-nos a repensar, com muito maior acuidade, a identidade dinâmica desta União Europeia já alargada a 25 países, com alguns outros a baterem à porta, com o caso turco por resolver.
Na diversa relação que cada um dos Estados europeus mantém com os EUA projectaram-se sempre factores vários – laços tradicionais, experiência históricas específicas, comunidades residentes e elementos de natureza conjuntural. O “amigo americano” de cada um é diferente e essa diferença não é apenas a que vai do Eliseu a Downing Street. A questão está em saber se tal diferença tende a funcionar como um eterno factor limitativo da formação da vontade europeia no plano internacional ou se, ao invés, será possível encontrar um meio que permita transformar numa vantagem sinérgica para a União Europeia este complexo, mas rico, tecido de relações transatlânticas.
É claro que aqui entra o outro lado da questão, que é o saber-se se os próprios EUA jogam, ou não, com a divisão da Europa como factor táctico na sua própria estratégia. As virtualidades pró-americanas da “nova Europa” foram, para muitos, um aviso neste domínio. E as reticências manifestas de alguns desses mesmos países face à densificação de uma política europeia de segurança e defesa, vista como podendo afectar a integridade da NATO, podem revelar que esse “entrismo” americano na União está a produzir os seus efeitos.
A “Carta dos Oito”, durante a crise iraquiana, foi apresentada como o êxito consagrado desta estratégia americana de “dividir para reinar”. Nas reacções a essa declaração, cuja oportunidade foi muito mais polémica que o respectivo conteúdo, assistimos a reacções interessantes, que foram desde genuínas preocupações quanto à integridade da unidade europeia a meras estratégias decorrentes de algumas agendas nacionais muito específicas. É que o sereno julgamento sobre a carta e sobre a responsabilidade histórico-política dos seus subscritores, numa perspectiva europeia, só pode ser feito por quem tenha as “mãos limpas” no tocante à sua fidelidade à vontade comum da União. E nunca por quem seja useiro e vezeiro em tentar usar o label da Europa para a promoção despudorada das suas próprias políticas. E não preciso de ser mais explícito.
Confesso não fazer parte daqueles que entendem que as actuais clivagens na cena internacional, derivadas da tipologia de acção escolhida pelos EUA para ultrapassarem o trauma do 11 de Setembro, criaram feridas irrecuperáveis no relacionamento euro-americano ou, pelo menos, condicionaram o seu futuro em termos muito duradouros. O que vou dizer não é menos respeitoso, mas apenas uma constatação: os senhores Bush, Chirac, Blair ou Schroeder, não sendo simples epifenómenos políticos, são, contudo, actores que é preciso relativizar à luz da sua natureza circunstancial, particularmente se comparados com a força dos grandes interesses e valores que estão subjacentes aos Estados cujas instituições episodicamente titulam.
Quero com isto dizer que a relação privilegiada de alguns países europeus com os Estados Unidos é, e continuará a ser, um fact of life. Não vale a pena iludirmo-nos com a expressão de voluntarismos de fé europeísta: temos que viver com essa realidade, pelo que a Europa comunitária não tem outro caminho que não seja procurar enquadrá-la. E não é solução criar, neste lado do Atlântico, qual espelho caricatural, uma espécie de neo-isolacionismo europeu face à América. Mesmo que isso fosse politicamente interessante – e não o é –, a Europa não tem força política, económica e militar para o sustentar no plano internacional, nem, muito menos, um mínimo de condições para o consagrar como linha comum entre os Estados europeus.
Assim, e de regresso ao realismo das coisas, importa que saibamos aproveitar as mudanças recentemente sofridas pela própria União Europeia para reavaliar, com serenidade, o peso do factor americano e tirar daí as devidas consequência para a formatação do futuro da nova União.
Desde o início do século passado que todos aprendemos que os EUA, goste-se ou não, são um poder com expressão europeia. São-no na influência directa que têm sobre alguns actores, maiores ou menores, do sistema europeu de poderes mas, igualmente, porque é sobre a Europa que se reflectem inevitavelmente as vicissitudes da relação entre Washington e Moscovo. Para o bem e para o mal. Os EUA “são” a NATO e constituem, com a Rússia, o eixo essencial que se projecta, por exemplo, sobre a OSCE – onde representam os powers that be que funcionam como garantes últimos da estabilidade europeia.
Com a emergência no seio da União alargada de um conjunto de países que demonstram uma atenção particular ao laço transatlântico, não há outra saída que não seja procurar reflectir esse novo elemento nas nossas perspectivas comuns. Isso não significa – sejamos claros! – qualquer tipo de subordinação política face aos ditames de Washington. Os acontecimentos recentes mostraram que não há, na União Europeia, condições políticas para que isso aconteça, mas também é verdade que também há, cada vez menos, condições para impor uma agenda própria que confronte abertamente a agenda americana, por mais absurda que esta possa ser. Daí que estejamos condenados a entender-nos, a curto ou a médio prazos, e, a meu ver, a forma de o fazer com êxito só será possível no âmbito do estabelecimento de uma nova agenda transatlântica.
Estamos hoje a viver num quadro de relacionamento entre os dois espaços perfeitamente datado, fruto do pós-guerra e das adaptações para o termo da Guerra Fria. Nesse contexto, os EUA habituaram-se a lidar com uma Europa que já não existe, isto é, habituaram-se a falar com os poderes mundiais médios que, na Europa, fazem o papel de grandes. Mas os americanos aperceberam-se recentemente que esse panorama, que durou décadas, está a mudar e, curiosamente, deram-se conta disso muito mais rapidamente do que a própria Europa.
Deste lado de cá do Atlântico, dá a sensação de que ainda não interiorizámos a nossa própria mutação interna, a nossa nova natureza. Continuamos a chamar União Europeia a uma realidade muito diferente da que tínhamos há dez anos e continuamos a olhar no espelho apenas a nossa imagem estática, quando os outros já nos vêem como, de facto, somos.
É que a grande ilusão da óptica política europeia recente é julgar que a União Europeia alargada constituiu uma mera extensão da Europa dos Doze ou dos Quinze, é – perdoe-se-me a ousadia – ter a pretensão de que este alargamento vai ser uma espécie de colonização política do Leste. Essa miopia faz com que se tente desesperadamente preservar, numa União a 25, os equilíbrios forjados em anteriores formatos, não percebendo que os novos membros não têm nenhum capitis diminutio e que têm o direito de procurar impor as suas posições, que temos de respeitá-las, pelo menos tanto quanto respeitamos as dos países que já cá estavam. A alternativa será a criação de um ambiente de desconfiança, a instalação de um sentimento crónico de crise. O processo que se viveu em torno da negociação da Constituição Europeia já foi sintomático disso.
As soluções para ultrapassar esta dificuldade de acerto de posição perante a relação transatlântica não são muitas, e não se esgotam no próprio terreno da União Europeia. Desiludam-se quantos pensam que um reforço formal da PESC ou o avanço voluntarista para uma política europeia de segurança e defesa é a panaceia para superar, na prática, essas divisões. Não o foram no seio da União a Quinze, não o serão mais facilmente na União a 25. É que, por muitos e bons anos, a chave do poder de afirmação da Europa no mundo estará ligada ao modo como souber potenciar a sua relação com os EUA.
Um estadista britânico dizia, em tempos, que “a Inglaterra não tem amigos, tem interesses”. O mesmo é válido para os Estados Unidos, mas eu acrescentaria que, as mais das vezes, os EUA também têm interesse em ter amigos. E, para além da arrogância e presciência bíblica dos arautos do neo-conservadorismo, tudo indica que os EUA estarão a aprender com os factos, muito rapidamente, que os parceiros são essenciais, tanto para a legitimação das situações como para o trabalho efectivo no terreno.
O contexto internacional tem hoje tensões de conjuntura que parece condicionarem todos os exercícios baseados na mobilização de vontades políticas. Mas na velha lógica de que as crises são “parteiras da História”, eu arriscaria dizer que a actual situação mundial, por absurdo que pareça, está a abrir uma luz ao fundo do túnel. Luz essa que pode passar pela reflexão sobre um novo tipo de multilateralismo. Um modelo que, curiosamente, ainda possa “salvar” o Reino Unido e a França, garantindo-lhes uma relegitimação, por via da Europa, da anacrónica posição de que hoje desfrutam no Conselho de Segurança da ONU e que lhes permite alimentar a ficção de que ainda são grandes potências. Esses países terão já percebido que esse seu estatuto singular terá um destino paralelo ao futuro da própria ONU.
A Europa – com a tal “nova Europa” que os EUA de hoje tanto apreciam – deveria começar por ter a coragem de procurar trazer Washington para uma reflexão de natureza global sobre as instituições em que assenta, no plano de defesa e segurança, o contexto transatlântico e euro-asiático. Isso poderia passar pela abertura a uma releitura profunda do papel e génese da NATO, repensando a Identidade Europeia de Segurança e Defesa (IESD) numa lógica bastante mais inclusiva para a Rússia, em termos que atenuem os seus receios e reforcem as legítimas garantias por que reclama, nomeadamente no quadro da observância generalizada do regime sobre o equilíbrio das forças convencionais.
Mas, numa perspectiva de resposta sustentada às novas ameaças, deveríamos ter a coragem de ir muito mais longe. Tal reflexão poderia incluir também propostas sobre a possível evolução da actual OSCE (e do próprio Conselho da Europa) para um pilar euro-atlântico
e euro-asiático de uma ONU renovada, em cuja estrutura viessem a encontrar lugar institucional, pela primeira vez, outras organizações de natureza regional, como a própria União Africana, eventualmente abrindo caminho à responsabilização subsidiária dessas organizações para operações de prevenção de conflitos, de peace-enforcing e de manutenção de paz. Para este exercício, o realismo também recomenda que seja chamada a China, ligando-a de forma cada vez mais integrada ao contexto euro-asiático de segurança.
Dir-se-á que esta é uma agenda muito ambiciosa, com implicações na arquitectura global, que exige o estabelecimento de um ambiente internacional de confiança que está longe de existir. Mas os riscos e as ameaças à segurança global são hoje tantos e tão evidentes que é necessário ter coragem para romper com o status quo. A qualidade da actual liderança europeia ficará bem qualificada, e será julgada, pelo modo como souber, ou não, enfrentar esta conjuntura. E pela forma como, sem subserviências nem complexos, mas também sem arrogâncias ou susceptibilidades, conseguir articular-se com o “amigo americano”. É que é importante nunca esquecer que a América – a América de sempre – é um dos mais velhos amigos da Europa.
A EUROPA NAS NAÇÕES UNIDAS
O debate em torno da compatibilidade entre a projecção externa da União Europeia e a afirmação individual dos seus Estados nas instituições multilaterais encontra um interessante objecto de análise no caso das Nações Unidas.
Este texto não pretende deter-se sobre como as coisas poderão evoluir no futuro neste domínio, atentas as mutações no perfil institucional da União e a maturação de uma cultura de representação externa comum, mas quer simplesmente registar uma perspectiva sincrónica do modo como as coisas actualmente se passam, daí extraindo algumas ilações.
Igualmente está fora dos nossos objectivos sumariar os interessantes modelos de cooperação institucional em funcionamento entre as Nações Unidas e a União Europeia, numa grande variedade de áreas de trabalho, designadamente no que toca à prevenção de conflitos e às intervenções para manutenção da paz e da segurança internacionais.
Serão, assim, desenvolvidas três perspectivas: o modo de funcionamento interno da União na ONU, o seu posicionamento no quadro das estruturas de representação política regional dentro da Organização e, finalmente, a situação particular que envolve a presença europeia no Conselho de Segurança.
A cultura política comum
Convém começar por constatar que a cultura de coordenação de políticas que é aprofundada, desde há anos, na União Europeia, em Bruxelas, tem uma tradução paralela em Nova Iorque (o que, com adaptações, é válido para as outras instâncias da ONU, em Genebra, Viena ou Nairobi). Os Estados membros da União debruçam-se nas Nações Unidas, através daquela que é já uma complexa rede de formatos funcionais (alguns regulares, outros ad hoc), sobre a esmagadora maioria das matérias que são objecto de discussão na Assembleia Geral ou no quadro do Conselho Económico e Social (ECOSOC) e respectivos órgãos subsidiários. E, em cerca de 90% desses temas, assumem já posições comuns[1].
A linha de abordagem segue o estipulado no Tratado da União Europeia (Artº 19, nº 1), que prevê que “os Estados membros coordenarão a sua acção no âmbito das organizações internacionais e em conferências internacionais”, nas quais “defenderão as posições comuns”.
Mas enquanto que, na lógica de discussão em Bruxelas, há sempre matérias tabu para alguns países – aqueles que são mais ciosos de preservar a sua autonomia intergovernamental nessas áreas –, em Nova Iorque os 25 são forçados a abordar praticamente todas as temáticas, mesmo, por exemplo, a questão das candidaturas nacionais no quadro da ONU, até há poucos anos explicitamente excluída da coordenação comunitária.
Semanalmente, realizam-se dezenas de reuniões de peritos de todas as missões da União Europeia, antecedendo ou acompanhando, numa estrutura paralela de coordenação, a agenda da Organização. Os embaixadores da União Europeia reúnem entre si, pelo menos, uma vez por semana e todos os semestres com os seus interlocutores externos tradicionais (EUA, Rússia, China, Japão, Grupo do Rio, grupo CANZ - Canadá, Austrália e Nova Zelândia, países associados, etc.), bem como com o Secretário-Geral, os seus representantes especiais, as principais figuras do Secretariado e das agências das Nações Unidas.
Dada a predominância na ONU de matérias que estão fora da competência comunitária propriamente dita (i.e., áreas que os Tratados prevêem como relevando da competência comunitária e não já dos seus Estados membros), o papel coordenador das presidências semestrais acaba por ter, neste quadro, um relevo maior face à Comissão Europeia do que aquele que se sente no dia-a-dia em Bruxelas[2]. A Comissão não intervém no Conselho de Segurança, fá-lo apenas informalmente nas Comissões da Assembleia Geral e tem um estatuto muito limitado no ECOSOC, pelo que se limita, as mais das vezes, a tentar fazer garantir que aquilo que é o múnus das suas competências no âmbito dos Tratados se reflecte no modo como os Estados membros geram uma posição comum que represente a União. Fá-lo também a montante, em Bruxelas, no grupo do Conselho que adopta certas posições comuns nas Nações Unidas (CONUN) e procura prolongá-lo em Nova Iorque nas diversas dimensões técnicas em que a União aí se organiza. E, sejamos claros, este é um processo em que se detecta alguma frustração por parte da Comissão, pelo facto de dispor nas Nações Unidas de um estatuto institucional substancialmente mais limitado do que aquele que está habituado a exercer a partir de Bruxelas. De notar que a Comissão procura também, frequentemente, dar relevo ao seu papel nos processos das Nações Unidas através da sua intervenção no financiamento dos programas ou das agências da Organização, de que o PNUD é talvez o exemplo mais evidente[3].
Este processo de afirmação de posições europeias nem sempre é de fácil execução, sendo exigida à Presidência uma grande capacidade de gestão de interesses, tanto mais que a constante necessidade de adaptação face às alterações da situação no terreno (p.e., a evolução da posição de outros grupos regionais) requer uma mobilidade de reacção local em tempo real muito grande, por vezes difícil de compatibilizar com o processo decisório interno de alguns Estados membros.
Também por esse motivo, e no que toca à actuação dos 25 em Nova Iorque, a experiência mostra que as Missões diplomáticas da União Europeia têm vantagem em manter uma massa crítica mínima em cada domínio, por forma a conseguir projectar-se com eficácia na ambição que a União tem de cobrir o essencial das áreas em que as Nações Unidas se desdobram. Essa mesma experiência revela, também, que Missões de países de menor dimensão dentro da União conseguem, por vezes, ultrapassar as limitações da sua própria projecção ao fazerem reflectir, no processo de construção da atitude europeia nas Nações Unidas ou até na intervenção individual em estruturas da Organização (como seja o trabalho das Comissões), uma maior capacidade técnica ou de performance por parte dos seus peritos em determinadas áreas. Verifica-se, aliás, uma tendência crescente para uma espécie de especialização de países da União em certas temáticas da agenda da ONU (no trabalho no seio da União e fora dela), resultante de orientações deliberadas da sua acção externa e, algumas vezes, por virtude de uma eficaz potenciação de modelos privilegiados das suas relações bilaterais ou regionais que transportam para o seio da União.
A este propósito, parece ser de relevar que um sábio aproveitamento dessas vantagens comparativas tende a “igualizar” nas Nações Unidas aquilo que em Bruxelas é a flagrante diferença institucional de representação entre os Estados – seja em peso no processo decisório no Conselho, seja em vozes no Parlamento Europeu, seja mesmo na presença desigual no aparelho burocrático. Convém ter presente que, nas matérias que não hajam sido já decididas no CONUN ou em outras instâncias do Conselho, em Bruxelas, os 25 não votam entre si no seio das Nações Unidas para apuramento das suas posições, sendo sempre obrigados a consensualizá-las, pelo que não sofrem da limitação de terem o seu peso diferentemente ponderado. Pode mesmo dizer-se que cada país União continua a ter um verdadeiro direito de veto na formulação da posição colectiva nas Nações Unidas – e este aspecto não deve ser deixado de ponderar no contexto do processo decisório em Bruxelas e do seu futuro. Serve isto para notar que, se excluirmos a força potencial de implementação operativa que sempre credibiliza de forma diferente a posição tomada por cada Estado – como é o caso especial do Conselho de Segurança ou as decisões em que directamente se projectem diferentes potenciais económicos dos Estados membros –, um pequeno país União Europeia, se bem organizado, pode acabar por ter uma influência no processo de formação da posição colectiva da União nas Nações Unidas muito desproporcionada face à sua dimensão decisória formal.
No que toca aos aspectos substantivos da sua intervenção, é patente que a União Europeia tem vindo a afirmar crescentemente uma filosofia de abordagem temática coerente e altamente enriquecedora para o trabalho das Nações Unidas – sendo hoje o principal aliado do Secretariado nas agendas de modernidade que este procura desenvolver. A União é o principal criador e propulsionador de iniciativas com hipóteses de sucesso, pela ausência de radicalismo e pela capacidade de intermediação de que dispõe em vários quadrantes regionais, bem como pela força objectiva do conjunto de Estados que tem por detrás (nomeadamente nos planos político e económico-financeiro), o que confere um grande credibilidade à sua intervenção. Essa credibilidade é ainda reforçada pela circunstância da União, não raramente, assumir temáticas que não derivam directamente de uma afirmação mecânica de interesses próprios dos seus Estados, mas que representam orientações político-culturais que vão no sentido “politicamente correcto” da agenda internacional, muitas das vezes fruto da sua sensibilidade às expressões organizadas das respectivas sociedades civis. Neste domínio, convém lembrar que a União é um interlocutor privilegiado das Organizações Não-Governamentais (ONG), que nela vêm uma via disponível para canalizar muitas das suas preocupações sectoriais.
Note-se, ainda, que a União Europeia fala muitas vezes nas Nações Unidas, não apenas em seu próprio nome, mas também dos seus países associados, bem como, com frequência, de outros países que lhe estão próximos. Essa representação, que chega a agrupar mais de 30 Estados – os quais, recorde-se, representam de longe a maior parcela da riqueza mundial –, confere um peso excepcional à sua voz nas Nações Unidas.
Como é natural, este papel decisivo na fixação do próprio ritmo de trabalho da Organização dá-lhe uma posição central em todos os grandes debates, os quais acaba por influenciar como nenhum outro país ou grupo regional. Aqui se distingue dos EUA, que quase sempre têm uma força de “condicionamento” – uma espécie de “poder negativo” - muito superior à sua capacidade de influência substantiva. Pode, assim, dizer-se que, nas Nações Unidas, a União Europeia existe, de facto, como um poder configurador das agendas da Organização e é por todos percebida como tal.
A Europa e os outros
É obvio que a União tem uma tendência natural, por uma coincidência de padrões culturais e históricos de abordagem, para coordenar as suas posições com outros Estados democráticos com economias de mercado, ocidentais na maioria dos casos – os EUA e os chamados Estados like-minded. A prática demonstra, contudo, que esta agregação de posições funciona numa lógica de “geometrias variáveis”, dependendo das temáticas em causa e sofre regulares distorções derivadas de determinantes geopolíticas ou de outros circunstancialismos.
Vejamos os dois casos.
No caso americano, a lógica da similitude de princípios publicamente assumidos apontaria para uma aliança operativa permanente da União Europeia com os EUA no seio das Nações Unidas. Contudo, como sempre se tem visto, em especial depois da Guerra Fria, nem sempre as coisas correm, na prática, dessa forma. Se em áreas como os Direitos Humanos é possível, frequentemente, encontrar um importante terreno comum a explorar (embora com algumas divergências regulares, em áreas que Washington faz depender de juízos geopolíticos próprios ou de considerações de política interna), tal não sucede numa multiplicidade de outros casos. Por detrás destas dissonâncias está um conjunto variado de razões, que vai desde a singularidade da leitura americana do papel das Nações Unidas na regulação da ordem internacional até a muito distintas filosofias face a importantes temas – como a política de ajuda ao desenvolvimento, as questões ambientais (Protocolo de Quioto), a ordem jurídica internacional (Tribunal Criminal Internacional), a política de testes nucleares (Acordo CTBT), o comércio internacional (conflitos na OMC), as políticas de desminagem, entre muitas outras áreas. Numa leitura caricatural e forçosamente redutora, dir-se-ia que à concepção instrumental e supletiva que Washington tem da ONU, opõe a União Europeia uma filosofia de constante afirmação da preeminência da organização como principal regulador político da ordem internacional, nas diversas facetas do actual processo de globalização, e de espaço privilegiado para a fixação e monitorização de cumprimento dos compromissos colectivos na ordem internacional.
A particular conflitualidade surgida em torno do caso da intervenção no Iraque, a partir de 2003, configurou um tempo muito específico no relacionamento entre os EUA e a União Europeia no seio da ONU. Porém, no saldo dessa crise, não se viu nenhum país europeu tentado a subscrever a leitura reducionista americana do papel da ONU no mundo contemporâneo, como Washington talvez desejasse. Essa é, talvez, a marca distintiva essencial da posição europeia.
Um segundo caso de relacionamento da União é representado por outros Estados, no essencial tidos por like-minded, mas cujo grau de desenvolvimento, especificidades económicas e políticas conduzem a uma abordagem por vezes diferenciada de certos temas. Estão neste particular alguns países associados e os membros do Grupo do Rio, que reúne Estados latino-americanos[4]. Constata-se, por exemplo, que em políticas como o “Financiamento para o Desenvolvimento”, que esteve em discussão na cimeira de Monterrey (2001), se verificam maiores identidades tácticas de alguns desses mesmos Estados com posições do chamado G-77 (que hoje agrupa mais de 130 países ditos “do Sul” ou equiparados). Similares divergências também se registam, a título de exemplo, quanto às grandes opções em matéria de política agrícola, onde o Grupo de Cairns[5] – com muitos dos seus membros a partilharem uma cultura de valores próxima da União – se afirma frequentemente em campos opostos. E, finalmente, note-se que a posição da União Europeia em matérias de natureza orçamental conflitua muitas vezes com a natural atitude de países que se situam noutras áreas da escala de contribuições.
Significa isto que a União está orgulhosamente só nas Nações Unidas? Não, mas serve para dizer que, não obstante manter com alguns países like-minded uma estreita coordenação em muitas áreas do trabalho, a União sofre hoje de uma singularidade que a identifica bem como uma unidade autónoma no contexto da Organização. Dessa identificação ressalta uma lógica de valores perceptível e coerente, que conduz a uma previsibilidade de atitude e de reacção (o que é próprio de um poder diplomático coerente), bem como uma matriz de interesses muito transparente (fruto da acomodação negociada da sua própria diversidade). Tudo isto, a somar ao seu peso real, converte a União num broker essencial no processo de obtenção de compromissos dentro das Nações Unidas.
Neste contexto, a União é frequentemente – e pode-se dizer, crescentemente – o construtor das “pontes” entre algum radicalismo que emerge do G-77 (onde a acomodação de interesses tem outra lógica de resultados) e a proverbial intransigência (em versão benévola, escassa flexibilidade) dos EUA. Daqui resulta para a Europa um papel de grande relevo na formatação da maioria das resoluções e, como é óbvio, no diálogo constante com o Secretariado.
Há, contudo, que ter consciência que este peso da União Europeia começa a ser visto com alguma preocupação por parte, quer dos EUA, quer de outros grupos regionais. Independentemente da bondade das opções doutrinárias que afirma, à União começa a ser assacada uma suspeita de deriva algo hegemónica no tratamento e na concretização operativa de alguns temas em análise na Assembleia Geral ou no ECOSOC (como sejam as questões de desenvolvimento, de Direitos Humanos, de género, etc.). O alargamento da União – que em Nova Iorque foi prenunciado pela subscrição das posições europeias, de forma quase sempre passiva, nos anos anteriores à adesão – foi lido por alguns como tendo constituído um factor de agravamento do actual cenário. Daí que a evolução da União Europeia leve a que se comece a falar na importância de ser repensado o próprio quadro quase-formal de arrumação regional em que as Nações Unidas têm vivido até agora.
A questão do Conselho de Segurança
Das três perspectivas de abordagem propostas, resta a mais complexa: o Conselho de Segurança.
Dão-se por conhecidas as razões que conduziram ao actual modelo do Conselho de Segurança, nomeadamente no que toca aos seus cinco membros permanentes. E também se assume como adquirido que, para uma esmagadora maioria dos observadores, tal modelo está flagrantemente desajustado das realidades do mundo contemporâneo, sofrendo de um evidente “défice democrático”, o mesmo é dizer, de uma assumida crise de legitimidade que tem conduzido, desde há mais de dez anos, a debates recorrentes com vista a tentar descortinar uma saída consensual para a reforma do Conselho, de que as propostas apresentadas pelo Secretário-Geral, em inícios de 2005, são um corolário. A este respeito, basta notar aquilo que hoje é a anacrónica ausência de Estados derrotados na Segunda Guerra Mundial (como a Alemanha ou o Japão) ou de áreas do mundo ou grupos de países com relevo incontestado na cena mundial (como a África, a América Latina ou os países árabes). A actual situação é, em si mesma, tão irracional que quase parece já não ser passível de resolução por via racional… e quem dela usufrui agarra-se ao status quo na razão directa da sua própria fragilidade.
Dito isto, para bom entendedor, vejamos como funcionam as coisas entre a União Europeia e os seus membros presentes no Conselho de Segurança, começando por notar o que o Tratado da União Europeia prevê neste âmbito no seu Artº 19º, nº 2: “Os Estados membros que sejam igualmente membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas concertar-se-ão e manterão os outros Estados membros plenamente informados. Os Estados membros que são membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas defenderão, no exercício das suas funções, as posições e os interesses da União, sem prejuízo das responsabilidades que lhes incumbem por força da Carta das Nações Unidas”.
Registe-se, desde já, que a União tem sempre um ou dois Estados, no Conselho de Segurança, a título de membros não-permanentes. Isto significa que a União Europeia dispõe, quase sempre, de quatro vozes no Conselho, o que constitui uma expressão importante naquele contexto. Porém, as novas realidades decorrentes do alargamento da União vieram demonstrar que essa cumulação de posições não se traduz, automaticamente, numa voz comum constante, em especial em debates onde a posição americana esteja muito polarizada.
Para além disso, a leitura do que o nº 2 do Art. 19º prevê, em termos de colaboração dentro da União no quadro das Nações Unidas, para efeitos da PESC, está longe de ser unívoca. Com alguma justiça, há que reconhecer que o Reino Unido e a França transportam para o Conselho de Segurança o essencial da vontade colectiva afirmada no quadro da PESC. Ambos os países partilham, além disso, informação daquilo que o restrito clube dos membros permanentes discute e prepara e, quase sempre, mostram-se razoavelmente disponíveis para colaborarem em alguma reflexão prospectiva. Porém – e aqui reside a grande diferença no tocante à implementação da PESC noutras instâncias – ambos recusam explicitamente aparecer como meros intérpretes ou mandatários da vontade colectiva dos 25, nomeadamente em tudo quanto possa configurar actos de decisão operativa do Conselho. Sempre que pressionados a este respeito, ambos respondem que a força operativa da Europa acaba por sair reforçada pelo facto de ter duas vozes permanentes que, de forma diferente mas no essencial articulada, expressam posições que têm atrás de si dois países com relevância própria no plano mundial. E ambos os Estados fazem um permanente desafio: digam-nos (a posteriori, claro) quando as nossas posições ferirem a vontade acordada na PESC.
O modo de gestão das especificidades dos membros permanentes europeus no funcionamento do Conselho seria, em si mesmo, tema para uma longa tese. Diga-se apenas que, registado o argumento do peso cumulativo que esses países invocam, resta a realidade de a Europa funcionar nesse contexto a várias vozes. E isto representa, queira-se ou não, um factor de fragilização da imagem da União no plano internacional.
Essa fragilização é tanto mais evidente quanto esses mesmos dois membros permanentes, à parte a circunstância de comungarem na defesa da sua presença individual, são frequentemente polarizados em sentidos contrários, por virtude da sua relação diferenciada com os EUA – como o caso do Iraque provou à saciedade. Mas, curiosamente, são eles próprios os primeiros a tentar seduzir os outros membros europeus não permanentes para as suas duas leituras diversas, o que torna a posição europeia refém, para além dessas idiossincrasias, de alguns equilíbrios cíclicos imprevisíveis.
Aqui se abre também a famosa questão de um “lugar único” (inaceitável para Paris e Londres) ou de um “novo lugar” para a União Europeia no Conselho de Segurança. Se o primeiro modelo parece inviável, já o segundo pode abrir algumas perspectivas operativas – muito embora se veja por enquanto difícil conciliar ambições diferenciadas de países como a Alemanha ou a Itália e Espanha.
A questão, contudo, também se liga com o futuro da PESC e ao papel do seu Alto-Representante nas instituições multilaterais ou, no futuro, do Ministro dos Negócios Estrangeiros da União. Reino Unido e França – o primeiro mais do que o segundo, reconheça-se – têm assumido uma atitude no sentido de evitar que as intervenções do actual Alto Representante no Conselho de Segurança se possam confundir com a “voz da Europa”. Uma evolução desta situação só parece ter condições de ter lugar se um modelo de representação “aristocrática” (ou de “directório”, se quisermos ser menos subtis) puder proporcionar àqueles dois países, em eventual associação estreita com a Alemanha e em coordenação com alguns outros Estados, a garantia de que o AR/MNE funciona como “fiel administrador” dos seus interesses comuns. Mas esta é uma questão para o futuro e não cabe no objectivo deste texto trabalhar em cenários de projecção - onde também teríamos de considerar a questão já não da PESC mas da PESD e, nesse contexto, especular sobre como resolver a conflitualidade paralisante entre as diferentes culturas de segurança que nela se revelam.
Estes problemas não evitam uma conclusão optimista: a União Europeia constitui nas Nações Unidas uma realidade com crescente pujança e é vista com esperança por outras zonas do mundo, não apenas como um elemento fautor de equilíbrio, de concretização de compromissos essenciais à paz e ao desenvolvimento, mas também como um impulsor fundamental para as finalidades da Organização. Mais do que isso, é vista como uma aposta clara, assumida por uma unidade político-económica com uma intervenção ímpar nas mais diversas áreas do cenário internacional, nas virtualidades e na preeminência do sistema multilateral. Só temos que esperar que a Europa (n)os não desiluda.
MULTILATERALISMO E SEGURANÇA COLECTIVA
A CRISE DO MULTILATERALISMO
A evolução do quadro internacional, nas últimas décadas, foi marcada por um indiscutível movimento de reforço de regras de observância colectiva, que estruturaram uma tendencial ordem política e jurídica de natureza multilateral, que se foi impondo como um facto quase natural na comunidade mundial.
Foi uma luta complexa, por se ter disputado num terreno marcado pela presença predominante de Estados soberanos, que suportam agendas de interesses nacionais frequentemente conflituais entre si. Além disso, tal esforço situou-se sempre, de forma mais ou menos aberta, em contracorrente com a afirmação de poderes de diferente natureza (políticos, económico-financeiros, militares ou demográficos), tentados a conseguir fazer prevalecer, em cada um dos subsistemas multilaterais entretanto emergentes, uma leitura própria da hierarquia desejável desses mesmos interesses. A competição entre sistemas ideológicos esteve também presente nesta conflitualidade.
A consciência pública de uma crescente interdependência dos Estados, associada à socialização de um difuso desejo de paz, justiça social, harmonia e bem-estar na ordem internacional, assumido como o único pano de fundo eticamente justificável para qualquer sistema colectivo, criou novas condições para o florescimento do multilateralismo, o qual, apesar disso, teve sempre de conviver com o escasso progresso obtido em áreas sectoriais que se revelaram menos passíveis de harmonização de agendas. O refúgio no particularismo continuou a afirmar-se um importante factor limitador e divisor na sociedade internacional.
Mas estamos a falar de uma ordem transnacional que tem como pretensão última abranger a comunidade geral dos Estados e projectar-se sobre eles de forma idêntica. As excepções impostas a essa ordem, em nome da não adesão, da expressão da força ou de uma mera assunção de realpolitik, não ousaram nunca alicerçar-se numa “teoria da excepção”, ou seja, numa tentativa de legitimação da inobservância, assente numa lógica rival de valores. Os comportamentos marginais a essa ordem, por mais passivamente aceites que hajam sido (e a essa aceitação variou, quase sempre, na razão directa do poder de quem os assumiu), nunca deixaram de ser julgados como marginais e desviantes.
O sistema foi criando um corpo institucional cada vez mais denso na substância e abrangente na adesão, tendo as Nações Unidas surgido como o principal centro natural de tutela e legitimação. Mas à medida que as Nações Unidas colocam mais dimensões multilaterais sob o seu “chapéu”, maior é a exigência de resultados e maiores as frustrações quando eles teimam em não aparecer. E estas últimas fazem, por vezes, esquecer a importância do que, entretanto, já se conseguiu.
O recurso a soluções de força, a imposição de regimes de sanções ou a simples condenação política foram, por ordem decrescente, modelos de constrangimento que a comunidade internacional assumiu, quando acordou sancionar a opção pelas vias exteriores às regras. O seu efeito variou, neste caso, na razão inversa da força do prevaricador.
Por outro lado, a circunstância do tecido multilateral se interligar de forma crescente, criou práticas de dependência e influência entre instituições que acabaram por se revelar como um factor de mútuo reforço (os regimes de condicionalidade em matéria de princípios democráticos e de Direitos Humanos são disso um bom exemplo).
O multilateralismo foi, assim, sobrevivendo com algum sucesso aos desafios com que se confrontou e foi adequando no tempo mecanismos de defesa – políticos, jurídicos e filosóficos – para suportar as tensões que sobre ele se faziam sentir.
De uma ordem política, para-jurídica e jurídica voltada essencialmente para o enquadramento de conflitos de poder inter-estatal e seus agentes, o sistema multilateral evoluiu, nas últimas décadas, para a tentativa de regulação transnacional de uma multiplicidade de áreas de actividade, muitas vezes abrangendo actores não-estatais, justificadas pela crescente interdependência que, num tempo mais recente, se corporizou na globalização. O reconhecimento da fragilidade da regulação bilateral, e mesmo regional, a isso obrigou e deu origem a um tecido cada vez mais complexo de instrumentos que tudo apontava serem a estrada óbvia do futuro das relações internacionais.
A ruptura
As tendências que se evidenciam nos últimos tempos – e que, convém lembrar, são já anteriores aos acontecimentos de Setembro de 2001 nos EUA – prefiguram, contudo, a emergência de uma nova ordem de valores no plano internacional. O que é novo nesse comportamento desviante não é tanto a circunstância dele ser assumido pela única potência global do tempo presente (os EUA sempre primaram pelo cultivo das “excepções” nas últimas décadas) mas é o facto desse mesmo comportamento se pretender constitutivo de uma nova filosofia das relações internacionais - ou melhor, do regresso à velha filosofia da preeminência absoluta da força na ordem global.
A grande questão estará em saber se se pretende criar fórmulas que façam, por quaisquer artes, com que essa filosofia seja compatível com os modelos institucionais internacionais vigentes (e com o princípio da igualdade soberana dos Estados em que eles se apoiam) ou se há a intenção de retirar consequências institucionais radicais da nova realidade.
No primeiro caso, estaremos perante a necessidade de readaptações estruturais para reforço da legitimidade dos formatos institucionais existentes – e a reforma da ONU e do respectivo Conselho de Segurança seriam das primeiras dessas tarefas. Sendo que os EUA sempre serão instrumentais para a viabilização de tal reforma, fica por apurar se vêm vantagens na respectiva concretização. É que se torna evidente que, se essa reforma vier a ter lugar, a legitimidade, a democraticidade e a consequente credibilidade do CSNU sairão reforçadas. Isso interessa aos EUA, sem a mudança prévia de alguns dos pressupostos em que assenta o funcionamento do Conselho de Segurança e da própria ONU ?
No segundo caso, estaremos em face de uma tentativa de uma inédita consagração institucional da singularidade da única verdadeira potência, com a aceitação da sua isenção das regras de observância comum (o caso do Tribunal Penal Internacional é o exemplo mais flagrante) ou da legitimação de algumas práticas (como a guerra preventiva que não decorra da legítima defesa). A prevalecer uma tentativa de imposição desta última opção, o risco de crise grave nas relações internacionais não é, por ora, mensurável, mas é francamente previsível.
Resta o status quo. Ele pressupõe que os países que aderem ao actual sistema multilateral continuem a tentar mantê-lo a todo o preço, mesmo que esse preço seja o progressivo distanciamento por parte de Washington. Os EUA serão, neste cenário, tentados a modelos de opt out e à promoção de acordos bilaterais que os excluam dos efeitos dos instrumentos colectivos. A degradação do ambiente de relações internacionais e a fragilização das instituições multilaterais (em especial a ONU) é, neste caso, uma possibilidade que terá de ser considerada seriamente.
Fora destas opções, ficam as soluções de compromisso.
Reino Unido – a “chave” do compromisso ?
No momento actual, o Reino Unido dispõe de uma posição internacional única: um perfil diplomático de cariz global, formalmente apoiado no usufruto da sua posição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (e de potência nuclear) somado, num importante plano prático que a História recente reforçou, à ancoragem transatlântica preferencial (a consabida special relationship). Sendo óbvio o interesse britânico em prolongar no tempo esta sua singularidade, importa saber que meios Londres tem ao seu dispor para a preservar.
A relação particular com os EUA é um dado de facto, que se revela estruturante enquanto fonte geradora de poder derivado no plano internacional, embora também criadora de uma inevitável dependência, o que induz alguma ambivalência na imagem do Reino Unido, em especial no plano europeu. Se essa relação é, sem dúvida, fautora de alguma influência, o mesmo se não pode dizer no tocante à sua tradução em termos de legitimidade política da acção do país no quadro mundial, quando esta última se afasta ou conflitua abertamente com aspectos essenciais do sistema multilateral – em especial com a ONU.
De facto, Londres não tem condições de assumir, como sua, a racionalidade afirmativa, sem limites aparentes, que os EUA parecem ultimamente tentados a retirar da sua “solidão” como única potência. Não o pode fazer, não apenas porque não é a detentora da força originária, mas também porque tem dificuldades em assumir doutrinariamente tal posição, dado que tal se confrontaria de forma chocante com a cultura de relações internacionais que alimentou e promoveu nas últimas décadas e à qual se vinculou noutras instâncias, como é o caso da União Europeia.
Assim, parece ser do interesse objectivo britânico tentar descortinar hipóteses de promover uma adaptação diacrónica do actual sistema multilateral internacional, que evite a respectiva ruptura e que, simultaneamente, (1) não aliene o seu relacionamento privilegiado com Washington, (2) relegitime a posição formal de que dispõe no contexto multilateral global (máxime no Conselho de Segurança), (3) sirva de factor potenciador da sua influência nacional em contextos regionais (União Europeia) e em quadros bilaterais que cuida em cultivar e, finalmente, (4) que preserve a preeminência formal do sistema multilateral, embora em moldes porventura adaptados.
Três questões ficam por esclarecer.
A primeira prende-se com a disponibilidade de Washington para vir a conceder ao seu parceiro preferido deste lado do Atlântico a margem mínima de manobra que lhe possibilite ser a alavanca para um modelo multilateral adaptado, embora preservado nas suas características essenciais.
Uma absoluta intransigência americana deixaria o Reino Unido numa situação dilemática terrível. Num registo oposto, se os EUA se associarem a alguma qualquer flexibilidade criativa proposta por Londres e passível de aceitação por terceiros (por impotência, realismo ou calculismo), o Reino Unido passaria a dispor de uma oportunidade soberana para reforçar a sua influência mundial – em particular, numa União Europeia onde vai passar a poder contar novos aliados na simpatia perante Washington – e, eventualmente, ajudar a “salvar” o essencial do sistema multilateral, tal como o conhecemos. Neste caso, que fique claro, não há uma terceira via.
A segunda questão, também vital, tem a ver com o modelo concreto de compromisso possível neste esforço de compatibilização de agendas aparentemente ainda muito distantes. Excluída, por absurda, a hipótese radical da consagração institucional formal do poder americano no contexto multilateral, a única via que parece explorável vai na linha de definição de alguns modelos derrogatórios de “auto-exclusão”. Trata-se, sem dúvida, fórmulas diluidoras do tecido multilateral, mas, paradoxalmente, são talvez as únicas que o podem fazer sobreviver limitadamente no actual contexto. Mas não se pode ignorar que têm como indesejável efeito colateral funcionarem como “caixa de Pandora” para as tentações de opting-out de outros, podendo representar um retrocesso considerável ao acervo da comunidade internacional.
E é neste último aspecto que se coloca a importante questão da aceitabilidade de um modelo deste tipo por parte de outros actores internacionais. Para além dos paladinos dos princípios e dos sofredores naturais das suas consequências, haverá que ter em primeira conta os Estados cujo poder formal pode ser afectado por este rearranjo. Estão neste caso a Rússia e a China, sendo que os acontecimentos dos últimos tempos não devem levar-nos a excluir que possam estar interessados, por pragmatismo, a querer também beneficiar de alguma flexibilidade de regras mundiais, particularmente se acompanhadas de algum direito informal de tutela de influência privilegiada sobre áreas que se situam nos seus cenários geo-estratégicos de proximidade. Esse pode ser também, curiosamente, o caso da França, tradicional jocker neste contexto, mas que poderá continuar a sua óbvia “aliança” com Londres na preservação da posição formal de que dispõe no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O que sempre terá de se fazer em detrimento da União Europeia, como resulta óbvio.
O lugar de Portugal
Portugal é um país tardiamente convertido ao multilateralismo. Adoptou-o em vários contextos não excessivamente constrangentes (EFTA) ou de oportunidade (NATO), mas, durante muito tempo, beneficiou menos do que sofreu dos respectivos efeitos (sob o fogo da vaga anti-colonial na ONU e suas agências).
Após 1974, Portugal entendeu que a assunção de uma política de valores nas suas relações externas absolveria historicamente o país e ajudaria a corporizar legitimidade na imagem do novo regime democrático. O mea culpa face a Timor-Leste acabou por dar à diplomacia de Lisboa uma causa em matéria de Direitos Humanos, que teve efeitos sensíveis sobre a matriz global da sua cultura de relações externas. Algumas hesitações pontuais, com laivos de realpolitik face a práticas de poder em alguns PALOP, não chegaram para pôr em causa a prevalência desta atitude. Verdade seja que não ter interesses económicos relevantes na ordem externa representa sempre um contexto confortável para a afirmação de uma coerência de princípios.
A experiência de integração europeia, que sublinhou as vantagens da protecção de Bruxelas (o resultado final do Uruguay Round do GATT foi positivo) face aos efeitos negativos colaterais de alguns conflitos inter-regionais (as retaliações comerciais americanas face à União Europeia e alguns acordos comerciais inter-regionais também sob tutela da União penalizaram Portugal), provou sobejamente que o terreno multilateral é e será o principal espaço de defesa de um país que tem escassos argumentos de afirmação autónoma de poder no plano internacional. A circunstância de interesses portugueses estarem, por vezes, em contra-ciclo com as tendências maioritárias no seio de algumas estruturas multilaterais continua a representar um risco que não se pode ignorar mas, ao mesmo tempo, acaba por constituir um desafio para “puxar” pelo país, forçando-o a uma agenda de modernidade (as políticas de ambiente e de consumidores são disso bons exemplos).
Por outro lado, a consciência da crescente dificuldade em potenciar interesses próprios em contextos bilaterais mais relevantes (relações com a Espanha), por ausência de temas de contrapartida negocial significativa, e as experiências negativas vividas na exposição do país ao peso de poderes nacionais (negociações institucionais europeias), tudo isso vocaciona Portugal para se acolher à sombra do multilateralismo, regulado por terceiras entidades que são supostas velar por regras comuns e com mecanismos de tendencial equidade internacional.
O interesse português parece ir, assim, no sentido de reforçar e diversificar o actual sistema multilateral e de acompanhar em pleno as tendências que venham a gerar-se, nomeadamente no âmbito da UE, para o proteger no essencial da sua integridade.
Mas a fragilidade objectiva do país, até na leitura simbólica que cultiva do seu próprio lugar no mundo, também aponta – e seria ingenuidade escondê-lo – para que venha a acomodar-se, sem reacção significativa, se acaso a ordem internacional acabar por consagrar alguma “domesticação” do multilateralismo pela preeminência da razão da força.
A OSCE E A SEGURANÇA INTERNACIONAL
A Organização para a Segurança e para a Cooperação na Europa (OSCE) é hoje vista como o parente pobre das organizações multilaterais de segurança. E, no entanto, será justo creditar-lhe historicamente um papel central na paz e na estabilidade que hoje se vive no continente europeu e, mesmo, no espaço euro-asiático.
Para um observador exterior, menos atento aos meandros políticos subjacentes ao projecto da OSCE, a fragilidade institucional da organização é a primeira grande surpresa com que se defronta. A ausência das estruturas que normalmente caracterizam modelos internacionais comparáveis, bem como a inédita flexibilidade/adaptabilidade dos respectivos instrumentos, tornam a OSCE muito menos uma organização internacional de tipo tradicional e, muito mais, uma espécie de sedimentação relutante da antiga Conferência para a Segurança e Cooperação na Europa (CSCE). E escrevemos “relutante” porque alguns parecem continuar a preferir a subsistência no tempo do modelo de conferência em detrimento do reforço da instituição.
A Conferência sobre Segurança e Cooperação na Europa (CSCE) foi estabelecida através do Acto Final de Helsínquia, assinado em 1 de Agosto de 1975, que lançou as bases para a chamada nova arquitectura de segurança europeia. Correspondeu ao culminar de um processo negocial de dois anos, que a Ostpolitik e a détente do início dos anos 70 tornaram possível. A Conferência tinha como objectivo ser um fórum multilateral de diálogo e de negociação entre o Ocidente e o Leste europeus, área onde o papel da URSS era então predominante. A assinatura, em Novembro de 1990, da Carta de Paris para uma Nova Europa, que consagrou o final da Guerra Fria, conferiu outro vigor à CSCE, a qual, na Cimeira de Budapeste, em 1994, se converteu finalmente na OSCE.
Para melhor se interpretar a OSCE e as suas limitações actuais é, assim, essencial começar por entender que esta sua “desestruturação” foi, desde o início, uma opção deliberada de alguns. Hoje, ela prolonga-se pela prevalência de uma cultura funcional onde se projectam, com um singular efeito conjugado na inércia reformadora, as diferentes filosofias de abordagem da organização mantidas pelos seus parceiros centrais – os EUA e a Rússia.
As estruturas permanentes da OSCE assentam num Secretariado com escasso poder de iniciativa, vocacionado para a gestão administrativa e para a montagem logística de operações de limitada dimensão e, no plano político, totalmente subordinado à orientação das Presidências anuais. Existem, além disso, três instituições - o Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos, o Alto Comissário para as Minorias Nacionais e o Representante para a Liberdade dos Media - dotadas de estatutos diferenciados e com uma autonomia operacional que não facilita uma coerência global de acção. A organização dispõe ainda de 18 Missões operando em vários dos seus Estados participantes, dotadas de diferentes mandatos e designações, correspondentes a objectivos operacionais diversos.
A Presidência anual da OSCE, como cúpula de toda esta estrutura heterogénea, aparece aos olhos exteriores como uma realidade que dispõe de um considerável poder formal, que assume a organização por inteiro, define as respectivas linhas de orientação e marca o ritmo da sua agenda. O Presidente em Exercício, que é o Ministro dos Negócios Estrangeiros do país que exerce a presidência, é o porta-voz político da organização e, nessa qualidade, pronuncia-se regularmente sobre os acontecimentos internacionais relevantes em matéria de segurança, na respectiva esfera geopolítica de responsabilidade. Para tal, é dotado de alguma autonomia decisória e de autoridade opinativa, sem prejuízo de estar sujeito a um controlo a posteriori, pela leitura pública que venha a fazer da vontade política da OSCE. Dispõe, além disso, de uma certa margem de liberdade na selecção de altos funcionários da organização.
No quotidiano do trabalho em Viena, a OSCE é dirigida por um Conselho Permanente, que reúne os representantes diplomáticos em Viena dos Estados participantes e que é presidido pelo Representante Permanente do país que exerce a Presidência.
Mas serão as Presidências anuais efectivamente poderosas? A nosso ver, a realidade difere bastante da teoria. Na boa tradição das conferências internacionais, a OSCE tem a regra do consenso como elemento basilar do seu funcionamento, o que implica a consonância de todos os seus membros com as decisões tomadas no seu seio. Mas, por outro lado, a indispensabilidade de tal consenso baixa, de forma por vezes dramática, a força e a relevância política das decisões, por ser fruto de laboriosos compromissos, muitas vezes assentes numa inescapável ambiguidade. Isso é agravado pelo facto de, contrariamente a outras organizações internacionais, que têm na base sólidas culturas políticas comuns, a OSCE sofrer ainda da sua principal virtualidade – a imensa diversidade dos 55 Estados que a compõem[6], que vão desde estáveis e prósperas democracias a Estados que acumulam tensões, subdesenvolvimento e regimes cuja solidez democrática é muito incipiente, ou melhor, em que os modelos autoritários são ainda o padrão predominante. Se pensarmos que se trata de uma organização focada na área da segurança, matéria que se liga ao âmago da soberania dos Estados, e se reflectirmos na multiplicidade e, por vezes, na conflitualidade de agendas geopolíticas entre os seus membros, fácil será presumir os bloqueios e os impasses que regularmente se registam no seu seio.
Neste contexto, o maior erro que uma Presidência da OSCE pode cometer é levar à letra o seu poder formal, ter a tentação de o explorar de forma desmesurada, tornando-se autista e julgando que pode avançar contando apenas consigo própria, para a formulação das decisões, mesmo que estas teoricamente lhe compitam em absoluto. Qualquer Presidência cedo tem de entender que, nas orientações que projecte em nome da organização, deve garantir um apoio muito alargado, em especial por parte dos Estados tidos como mais influentes.
Uma sabedoria consuetudinária dentro da organização institucionalizou, aliás, dois modelos para atenuar o risco das Presidências serem tentadas a uma deriva autónoma muito radical.
O primeiro, de natureza mais formal, é a Troika. Trata-se de um mecanismo de consulta da Presidência em Exercício, envolvendo o anterior e o futuro titulares da presidência, e que esta pode utilizar para alargar a potencial aceitabilidade das propostas que faz à organização.
O segundo é o mecanismo regular de consultas com os mais importantes parceiros – política e financeiramente. Uma boa gestão deste mecanismo, que funciona exclusivamente a nível dos Representantes Permanentes em Viena, permite assegurar um ritmo de trabalho seguro a qualquer Presidência, que nele deve também saber jogar com a potencial conflitualidade de interesses que, por vezes, se regista entre os parceiros mais influentes.
Se a Troika existe como um filtro de teste e legitimação de iniciativas, as consultas são um reflexo de bom-senso e de realpolitik. E as propostas acolhidas favoravelmente pela Troika antecipam muitas vezes a sua aceitação nas consultas, que o mesmo é dizer, abrem caminho a uma sua aprovação pela generalidade dos membros da organização. É um mecanismo delicado, de gestão à vista, cujo sucesso está também muito dependente da natureza e relevância das crises eventualmente emergentes.
A questão do poder na OSCE
Mas, na realidade, onde se situa o poder dentro da OSCE?
Embora possa não ser politicamente correcto escrevê-lo, é forçoso reconhecer que a OSCE constitui uma espécie de “condomínio” onde prevalecem, em primeiro lugar, os EUA e a Rússia – sem cujo acordo conjunto, implícito ou explícito, nada de significativamente importante avança. Esta é uma realidade que tem as suas origens históricas no processo que levou à criação da CSCE e de que a OSCE se não libertou. Segue-se, na hierarquia dos poderes fácticos, um grupo relativamente homogéneo de países ocidentais (Alemanha, França e Reino Unido), os quais, pelo seu peso individual, compensam a fragilidade afirmativa da União Europeia, enquanto entidade política. Pode dizer-se que estes cinco países acabam por constituir um “directório” informal que marca o ritmo da organização, pela sua expressão orçamental e peso diplomático, bem como pela sua contribuição para os recursos humanos da estrutura da OSCE[7]. O sentimento emergente deste “directório” informal tem de ser levado em permanente conta por qualquer Presidência, se pretender garantir um mínimo de eficácia nas suas iniciativas. Alguma capacidade de manobra das Presidências reside, precisamente, na habilidade em explorar, com efeitos no reforço do seu próprio poder, as eventuais contradições emergentes no seio do “directório” - normalmente entre a Rússia e os membros ocidentais, mas que igualmente ocorrem entre estes últimos.
Importante se torna, também, assegurar uma consulta permanente a alguns outros países que conseguiram granjear algum peso específico no seio da organização – tais como os chamados like-minded (de que fazem parte Estados com o Canadá, a Noruega e a Suíça) e a Turquia. No primeiro caso, por virtude das respectivas contribuições financeiras e/ou expressão diplomática, e no último caso, por se tratar de um país com laços importante a áreas mais a Leste da organização, além de relevante membro da NATO.
Todas estas peculiaridades dão à OSCE uma natureza muito especial e justificam uma gestão cuidadosa pelas Presidências das suas diversas estruturas, implicando um respeito permanente pela cultura organizativa dominante – a qual é, à partida, muito conservadora e refractária à mudança, pelo temor de afectar os delicados equilíbrios em que a organização assenta. Tentar afrontar abertamente tal cultura com propostas muito ousadas, centrar a gestão de iniciativas da Presidência à luz de uma ostensiva agenda nacional de interesses, em especial se não testada de forma alargada, torna-se a receita mais fácil para o desastre. Tais crises pagam-se, em especial, no termo do exercício anual – altura em que tem lugar o Conselho Ministerial, por cujos resultados acaba quase sempre por ser medido, às vezes um tanto injustamente, o exercício global de cada Presidência.
Há que notar que, para uma estrutura marcada por uma debilidade institucional tão evidente, a OSCE se comporta surpreendentemente bem no plano operacional, em particular se atendermos à exiguidade do seu orçamento, recursos humanos e estruturas permanentes. A sua flexibilidade institucional, que é uma das suas debilidades, acaba, curiosamente, por lhe conferir a possibilidade de se mobilizar com alguma rapidez para acções no terreno, desde que uma decisão política para tal seja tomada.
A experiência mostra que a OSCE desenvolve hoje algumas capacidades operativas com prestígio nos cenários em que actua, embora muitas vezes com a discrição própria das intervenções em matéria de diplomacia preventiva. A circunstância de ser uma organização com um espectro alargado de membros, originários e pertencentes a culturas políticas e geo-estratégicas muito diferenciadas, confere à sua actividade, um pouco à imagem das Nações Unidas, um carácter relativamente mais neutral, que se repercute positivamente na sua aceitabilidade, em contraste com o modo como as intervenções da NATO ou da União Europeia são, por vezes, vistas por terceiros.
A maior fragilidade da OSCE residirá, porventura, no facto de, por si só, não ter mecanismos práticos, para além dos meios declaratórios, de constrangimento ou de “recompensa” perante quantos são objecto das suas acções ou das suas recomendações. Daí a crescente importância da organização continuar a estabelecer ligações estreitas a outras estruturas – como a União Europeia, o Conselho da Europa, o FMI, o Banco Mundial, o PNUD, o BERD –, das quais possa transparecer que, para esses actores internacionais, os pareceres da OSCE constituem sempre elementos condicionantes para as suas próprias decisões, das quais o quotidiano ou as expectativas de muitos países dependem. No êxito desta acção conjugada poderá estar muito do futuro das Missões que a OSCE tem actualmente no terreno.
Dimensões sem equilíbrio
Como é sabido, a intervenção da OSCE objectiva-se através das suas chamadas três Dimensões: Político-Militar, Económico-Ambiental e Humana. Trata-se, de certo modo, da institucionalização dos baskets em que o funcionamento da sua antecessora CSCE assentava.
Com o termo da Guerra Fria e com as vicissitudes que o Tratado CFE[8] entretanto sofreu, a Dimensão Político-Militar da OSCE entrou num regime de rotina operativa. As estruturas da OSCE que foram criadas neste domínio, se bem que numerosas e muito especializadas, não são, em geral, sede de regular conflitualidade entre os Estados participantes. O regime de normalidade a que se chegou nesta Dimensão deve ser lido, precisamente, como um atestado positivo sobre a sua própria eficácia.
A implementação das medidas criadoras de confiança nas áreas militares e de segurança[9] faz-se hoje com toda a regularidade e pode dizer-se que a OSCE tem a seu cargo a gestão de um modelo normativo e regulador que emerge de uma cultura de segurança que está já socializada no seu seio e que é um dos seus mais respeitáveis patrimónios. Alguns poderão objectar que a emergência dessa cultura mais não é que o produto da diluição das tensões no pós-Guerra Fria. A assim ser, há que responder que a CSCE tem também um crédito a reivindicar na origem da situação que hoje lhe cumpre controlar.
A principal Dimensão que hoje ocupa a OSCE é, sem dúvida, a Dimensão Humana – que engloba os mecanismos de observação do respeito pelos direitos humanos, pelo Estado de direito, pela liberdade de organização da sociedade civil, pela observância de práticas eleitorais correctas, direitos das minorias nacionais e liberdade dos meios de comunicação social. No âmbito desta Dimensão, avulta o trabalho do Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos (ODIHR), sedeado em Varsóvia, que um papel activo na área da monitorização e supervisão eleitoral, na formação e promoção de direitos humanos, no desenvolvimento da sociedade civil, no reforço das instituições democráticas, na promoção das actividades das Organizações Não-Governamentais e da sociedade civil, na formação da comunicação social, em questões relacionadas com as comunidades ciganas (Roma/Sinti), etc.
Neste domínio, o dia-a-dia da OSCE aparece cada vez mais marcado por aquilo que alguns chamam as “duas OSCE” - os países “a Oeste de Viena” e os países “a Leste de Viena” - com os primeiros muitas vezes a assumir-se como zeladores pela observância pelos segundos das regras por todos subscritas. Mais adiante avaliaremos as consequências deste confronto no funcionamento e nas perspectivas de futuro da organização.
Note-se que foi o desenvolvimento da Dimensão Humana que, nos anos 90, levou à criação das Missões da OSCE no terreno e que, no essencial, ainda hoje justifica a respectiva manutenção. Por muito que se pretenda conferir um carácter apelativo, para os Estados em que se situam, ao trabalho das Missões OSCE, há que reconhecer que, sem excepção, elas continuam a ser vistas pelos países que as hospedam como uma espécie de “nódoa” perante a comunidade internacional. O que não deixa de ter alguma justificação, porquanto a sua própria manutenção reflecte o reconhecimento da existência de problemas importantes que o país tem a resolver e que os respectivos governos tendem frequentemente a não querer ver sublinhados. Essa é, aliás, a razão pela qual quase todos os Estados onde há Missões OSCE tentam evitar a sua eternização, através da procura da sua limitação no tempo, e tentam uma progressiva diluição do conteúdo substantivo dos respectivos mandatos.
Perante a rotina que hoje marca a Dimensão Político-Militar, e como forma de contrabalançar o peso desproporcionado da Dimensão Humana no âmbito da organização, tem havido tentativas para procurar desenvolver o restante “braço” de intervenção da OSCE – a Dimensão Económico-Ambiental. É importante perceber que a activação desta Dimensão deve assentar em projectos que, directa ou indirectamente, tenham a ver com as questões de segurança para as quais a organização está vocacionada, pelo que, frequentemente, é necessário adoptar uma interpretação muito extensiva de tal conceito para poder comportá-los nesse âmbito. A mobilização da cooperação regional ou sub-regional, que poderia favorecer o lançamento de projectos de natureza económico-ambiental com alguns ganhos de escala, é frequentemente dificultada pela persistência de conflitos ou tensões nesses mesmos quadros regionais. Além disso, o escasso orçamento da OSCE leva, frequentemente, a que tais projectos só possam ser executados com recurso a contribuições de natureza voluntária, bastante mais difíceis de mobilizar. Tudo isto conduz a que a Dimensão Económico-Ambiental seja hoje o “parente pobre” da OSCE e não se consiga assumir como uma expressão suficientemente equilibradora do carácter mais intrusivo da Dimensão Humana.
Este flagrante desequilíbrio entre as três Dimensões constitui uma dificuldade com que todas as Presidências têm que conviver. E a efectiva desigualdade de expressão das Dimensões dificulta, muitas vezes, a aceitação do trabalho das Missões no terreno. Começa a ser cada vez mais difícil conseguir persuadir certos Estados do argumento de que essas mesmas Missões podem funcionar como factores de credibilitação, aferidores da evolução dos respectivos sistemas políticos na sua aproximação ao padrões internacionalmente tidos como mais adequados. Essa avaliação pode ter repercussões favoráveis, se tal evolução for, de facto, positiva, em especial nas pretensões de alguns em virem a integrar estruturas euro-atlânticas e, noutros casos, em obterem facilidades junto de instituições financeiras internacionais, que mantêm alguns critérios de condicionalidade em matéria de direitos humanos e princípios democráticos. Mas pode ter um efeito inverso, se e quando tal evolução não se processar ou se a situação interna dos países regredir. É que as Missões OSCE lá estarão, em ambos os casos, a servir de amplificadores da realidade dos factos.
EUA e Rússia – a paridade desigual
Como atrás ficou implícito, os EUA e a Rússia funcionam como uma espécie de “membros permanentes” de um “Conselho de Segurança” que, efectivamente, condiciona fortemente o dia-a-dia da OSCE. São eles que têm, na prática, um implícito direito de veto em todas as matérias da organização, mesmo a montante da respectiva apresentação formal, pelo que é necessário com eles testar sempre qualquer iniciativa que se pretenda propor. Que fique claro, porém, que esse estatuto de aparente equiparação não os transforma, necessariamente, em parceiros iguais na organização.
Se, durante a Guerra Fria, russos e americanos se equilibravam no seio da CSCE, constituindo-se como um verdadeiro duopólio, ainda que conflitual, a posterior evolução em sentidos opostos do poder relativo de cada país no plano mundial acabou por se repercutir, como não podia deixar de ser, no seu posicionamento relativo no quadro da própria organização. Embora se situe na OSCE, muito provavelmente, o terreno multilateral em que a ficção de um equilíbrio formal de poderes mais sobreviveu. O que, num juízo cínico, pode também ser lido como um reconhecimento implícito da falta de importância da própria OSCE, ao prolongar no tempo uma realidade que só os livros de História hoje acolhem.
Verdade seja que Washington tem sempre um cuidado muito particular em respeitar o estatuto especial da Rússia, mesmo em face de parceiros e aliados ocidentais com os quais tem uma proximidade de cultura política mais evidente. Os EUA pressentem que, estando a OSCE crescentemente centrada em áreas que fazem parte da herança estratégica da antiga URSS, não podem deixar de manter com a Rússia um diálogo preferencial no âmbito da organização, particularmente num momento em que as suas mais perigosas tensões no plano bilateral estão, de certo modo, atenuadas. Naturalmente que os acontecimentos de Setembro de 2001, com o subsequente maior envolvimento dos EUA na Ásia Central e no Cáucaso, veio potenciar esta necessidade de entendimento Washington-Moscovo num palco estratégico como a OSCE.
Importa agora reflectir um pouco sobre o modo como EUA e Rússia se comportam hoje perante a organização.
Na observância de uma filosofia de sempre, os EUA continuam a insistir numa linha tendente a manter a OSCE como organização “desestruturada”[10]. Tal reflexo vem do tempo em que a então URSS queria reforçar institucionalmente a CSCE, com vista a atribuir-lhe um estatuto internacional elevado, aproveitando então a considerável influência de que dispunha no Centro e Leste europeus. Para o interesse americano, a estrutura actual da OSCE continua a ser a mais conveniente: influencia a organização no seu quotidiano, através do trabalho junto das Presidências, garante uma presença estratégica por via da participação activa nas Missões no terreno, onde coloca pessoal de perfil diverso e controla e selecciona as actividades extra-orçamentais que mais lhe interessam. Desta forma, os EUA pretendem impedir que um excessivo reforço institucional da organização possa conduzir a que ela se converta num instrumento passível de escapar ao seu controlo. A nosso ver, as lições aprendidas noutros fora não estão ausentes da opção por esta linha de comportamento.
Não obstante esta insistência na precariedade institucional da OSCE, os EUA mantêm alguma atenção à actividade de uma organização que lhes continua a permitir legitimar um papel central, por via multilateral, numa área geográfica que tem a importância de ser, simultaneamente, a fronteira circundante da Rússia e uma área estratégica, política e economicamente, de que um poder global se não pode desinteressar, em especial depois dos desenvolvimentos ocorridos nos últimos anos e da liberdade de acção que entretanto conseguiram garantir nesse contexto.
Para a Rússia, esta ficção de poder equiparado também traz algumas vantagens. Por um lado, no tocante ao seu prestígio internacional - o que não deixa de ter consequências no modo como a liderança russa apresenta internamente a imagem do país, em especial como factor de apaziguamento de certas tendências nacionalistas que, ciclicamente, exploram o declínio efectivo do seu poderio. Num plano mais prático, a nova situação estratégica criada com o ambiente posterior a Setembro de 2001 como que atenuou alguma pressão crítica por parte dos EUA em termos de Direitos Humanos, que passaram a privilegiar o papel da Rússia como parceiro importante na luta anti-terrorista, numa opção de realpolitik que sobreleva certos pruridos ético-políticos. Neste domínio, Moscovo procurou habilmente retirar das conjunturais prioridades americanas algum abrandar temporário da pressão para o cumprimento dos “Compromissos de Istambul”[11]. Noutra vertente, a Rússia conseguiu, em 2002, dar por encerrada a missão da OSCE na Chechénia[12], sem ter com isso pago um preço político internacional de monta, que lhe teria sido difícil evitar noutras circunstâncias. Restará saber por quanto tempo esse ambiente se manterá e se a Rússia poderá preservar a liberdade de acção que o ambiente da luta anti-terrorista lhe proporcionou.
Em todo este complexo contexto, Moscovo parece alimentar hoje mais dúvidas do que certezas sobre o modo como se comportar perante a organização, sendo claro que muito do futuro desta passará também pelo resultado dessa mesma avaliação. Desaparecidas as vantagens realmente paritárias da CSCE, ultrapassado que foi o período de ilusória “lua-de-mel” Leste-Oeste, no período imediatamente pós-Guerra Fria, a Rússia confronta-se hoje com uma organização que já não domina, embora possa condicionar ou bloquear, e onde prevalece uma cultura política que entende afectar os seus interesses imediatos. Os alargamentos da União Europeia e da NATO, com tensões não resolvidas com alguns países bálticos, e as incursões petro-estratégicas dos EUA no seu espaço tradicional de influência – Cáucaso e Ásia Central - não podem deixar de causar perplexidade num poder que, historicamente, sempre confundiu estabilidade na sua vizinhança com controlo político-militar dos vizinhos, numa cultura obcecada de segurança. Neste contexto, a OSCE não resolve hoje nenhuma das preocupações de Moscovo, antes lhe acrescenta algumas mais.
Na estreita margem de manobra de que dispõe, a Rússia está, contudo, a tentar explorar na OSCE uma virtualidade estratégica marginal. Tendo em atenção a contínua atenção dos países ocidentais face às deficiências na evolução político-institucional dos países saídos do desmantelamento da URSS, a Rússia começa a detectar as vantagens de poder, regularmente, dar a mão no seio da OSCE às actuais lideranças de muitos desses países, ajudando-as a resistir às pressões ocidentais para cumprirem os compromissos de evolução político-institucional que subscreveram ao integrarem a organização. Por essa via, Moscovo procura recuperar alguma influência perdida, tenta restaurar feridas do passado recente e, o que não é despiciendo no caso de alguns países da Ásia Central, procura evitar alguma atracção desses mesmos Estados por parte da China[13].
Como se disse, a Rússia parece hoje hesitante sobre como actuar no seio da OSCE. Descontente com a liberdade que as “contribuições voluntárias” e os regimes de secondment de pessoal facultam aos países ocidentais, Moscovo deixou de pugnar por um reforço institucional que, seguramente, lhe viria a exigir responsabilidades orçamentais impossíveis de comportar, no que acaba por coincidir com os EUA, em detrimento da estruturação progressiva da organização. Nesta indecisão, a Rússia espera para ver e mantém uma atitude de muita prudência, pontuada por uma política de obstrução selectiva.
Finalmente, e numa apenas aparente contradição, a Rússia revela-se como o grande promotor do esforço de reflexão sobre a reforma da organização. Mas a sua agenda neste domínio é relativamente simples: Moscovo quer provocar um debate sobre a necessidade de uma maior transparência no funcionamento da OSCE, quer sublinhar a importância de um maior rigor na observância de regras e procedimentos, em suma, pretende controlar o uso mais eficaz que outros fazem hoje da organização. E procura utilizar tal debate para colocar sobre a mesa outra questão, para ela muito importante: a avaliação das consequências político-estratégicas dos alargamentos da NATO e da União Europeia nos equilíbrios internos dentro da OSCE.
A ausência da União Europeia
Se a Política Externa e de Segurança Comum existisse, a OSCE poderia vir a ser um importante instrumento a utilizar na afirmação estratégica da União Europeia, nomeadamente junto dos países saídos da implosão da URSS. Não sendo esse o caso, e talvez por isso mesmo, a presença da União no seio da OSCE aparece hoje como uma dispersão pouco coerente de iniciativas, as mais das vezes impulsionadas, de forma não totalmente coordenada, pelo Reino Unido, pela França ou pela Alemanha. A acção da União Europeia na OSCE é, quase sempre, reactiva e casuística, muitas vezes meramente declaratória e só episodicamente utilizando o seu potencial económico – nomeadamente a acção externa da Comissão Europeia – como instrumento efectivo de influência.
A União parece não se dar conta que, se se quer afirmar como um poder mundial, não pode descurar uma estratégia clara que atenue o potencial de tensões na sua nova fronteira a Leste (Bielorrússia, Ucrânia e Moldávia), que influencie activamente a resolução das crises no Cáucaso (Geórgia e Arménia/Azerbaijão) e possa projectar o seu peso na Ásia Central, passando a ser actor relevante nesse mercado estratégico-energético. A Europa, enquanto unidade política, parece não se ter ainda apercebido que essa área pode ser-lhe cada vez mais vital, particularmente se se tiver em conta a crescente expressão americana no Golfo e nas zonas adjacentes na Ásia Central e do Sul. Sem uma relação activa com os Estados dessas áreas, a União Europeia não conseguirá garantir, em tempo útil, uma influência relevante no processo de evolução do espaço euro-asiático da OSCE. Infelizmente, a União parece incapaz de entender que a OSCE poderia ser por ela utilizada de forma muito mais eficaz neste domínio.
Convém deixar claro que o problema da melhoria da eficácia da acção da União Europeia no seio da OSCE não se situa predominantemente em Viena. Nesta cidade apenas se sentem os efeitos secundários da leitura feita em Bruxelas, não apenas em termos da colocação dos temas OSCE na hierarquia de prioridades da acção externa da União, mas igualmente os bloqueamentos entre os Estados membros que resultam em certos impasses.
No primeiro caso, constata-se que Bruxelas tem vindo, com alguma lentidão, a absorver as mensagens que a sua antena no seio da OSCE lhe envia. Essa mensagem é relativamente simples: torna-se necessário que a União Europeia, que tem hoje quase metade dos Estados OSCE, alguns deles com uma grande proximidade geográfica das questões mais conflituais que ocupam a organização, e que paga uma fatia considerável do orçamento, se concentre em acordar numa massa crítica de jurisprudência diplomática, não apenas face aos temas actualmente mais apelativos para a PESC, mas igualmente nas áreas do Cáucaso e Ásia Central, por onde passa muito do futuro dos interesses europeus. É forçoso, neste contexto, que a União se ponha de acordo – e, neste caso, a Alemanha, a França e o Reino Unido, em especial – se está ou não disposta a afirmar uma política autónoma para essas regiões, eventualmente arriscando pontuais conflitualidades com os EUA, quando a estratégia deste possa contrapor-se aos seus interesses. A sensação prevalecente é que a Europa dá a Washington o direito de estabelecer em tais áreas a linha prioritária de acção, ficando a actuar apenas nas margens desta e, por essa razão, aparecendo sempre como um poder subsidiário, o que afecta a sua própria relevância no diálogo com a Rússia.
Uma segunda linha de preocupações prende-se com algumas questões de princípio e com a evolução de certas dimensões da acção externa da União Europeia, no período subsequente ao último alargamento. Estamos a referir-nos aos temas ligados às tensões traumáticas que alguns dos novos aderentes, em especial os Estados bálticos, mantêm com Moscovo e ao modo como tal se repercute na formulação de algumas linhas de intervenção substantiva da União no seio da OSCE – de que o tratamento das minorias nacionais é o exemplo mais evidente. Mas isso é igualmente válido nas questões como o tratamento das matérias ligadas ao combate à intolerância e à autonomia a dar às diversas componentes de tal conceito. Se a União Europeia não conseguir ultrapassar, a muito curto prazo, o bloqueamento que obriga a solidariedades que se situam acima dos princípios que deve observar, não nos deveremos admirar que tal possa ter repercussões sérias, em especial no equilíbrio da nossa relação com a Rússia. No seio da OSCE, a União sempre deu a entender que tinha uma diplomacia de valores e que, muitas vezes, esse era o elemento distintivo face a certos jogos de realpolitik que enfraqueciam a credibilidade de outros parceiros. Se a dinâmica do seu processo interno de decisão vier a ficar congelada pela fragilidade na afirmação dessa dimensão ética, a Europa passará a ser vista dentro da OSCE como adoptando o mesmo cinismo táctico que, por vezes, identifica negativamente nos outros.
Mas importa dizer que magnificar a influência da União Europeia na OSCE não pode constituir um fim em si mesmo, mas apenas um meio para utilizar os instrumentos ao dispor da organização para as finalidades da PESC. Para tal, impõe-se que todos os actores relevantes na União – Estados membros, Comissão, Policy Unit PESC, PSC, COSCE - se articulem com vista a aproveitar as eventuais contribuições e meios da OSCE para objectivos comuns da União Europeia, em cada país ou sub-região, que não será possível, ou será muito mais difícil, desenvolver fora deste quadro multilateral. Será pela cumulação criativa dos diversos instrumentos que a União e os seus Estados membros têm na sua mão, em Bruxelas e nas capitais, que vai ser possível conferir credibilidade ao processo declaratório que se desenvolve em Viena. Meios financeiros, instrumentos de política comercial, política de sanções, influência junto de outras instituições multilaterais – estes são alguns de entre muitos instrumentos que a União Europeia (com a Comissão Europeia a ter um papel relevante) e os seus Estados membros têm ao seu dispor e que devem utilizar em pleno.
A ligação entre as delegações da Comissão Europeia e as Missões OSCE são, neste domínio, um elemento da maior importância. A União, além disso, tem de saber trabalhar muito melhor a montante da gestão quotidiana definida no quadro do Conselho Permanente, influenciando as agendas e as prioridades da OSCE, nomeadamente através do desenho do seu orçamento anual e da planificação capaz das suas decisões substantivas, com carácter estratégico, que são aprovadas nos Conselhos Ministeriais anuais. Finalmente, torna-se vital que os Estados Membros que têm agendas nacionais muito vincadas em alguns países da área OSCE, onde a União tem um défice de influência enquanto entidade colectiva, consigam trabalhar de forma coordenada e coerente, numa lógica interventiva europeia. Isto passa, nomeadamente, pelo diálogo no desenho dos projectos com financiamentos nacionais e pela política de candidaturas para os postos OSCE.
No imediato, o empate de vontades que se detecta na União Europeia conduz a que as suas intervenções na OSCE acabem por ser uma manancial de platitudes, a expressão de uma diplomacia de lugares comuns, que contrasta flagrantemente com a importância potencial de representar politicamente 25 Estados num contexto de 55[14]. Se assim continuarmos, não apenas enfraqueceremos a nossa imagem na OSCE como contribuiremos para enfraquecer a própria organização.
As dúvidas existenciais
Embora oficialmente assuma um discurso auto-congratulatório sobre a preservação das virtualidades da sua acção e sobre a subsistência de um espaço próprio no mercado das organizações de segurança, é patente que o ambiente que se vive na OSCE está longe de ser de extrema confiança quanto ao respectivo futuro. Muito pelo contrário, há uma constante interrogação sobre o modo como a organização se deve situar na arquitectura de segurança europeia, depois da evolução de outras entidades que, em certa medida, podem conflituar com a preservação do seu domínio específico de intervenção.
Na prática, a evolução da filosofia que hoje enforma a NATO, o vasto alargamento desta organização e, em especial, o modelo de articulação que ela já conseguiu com a Rússia, vieram renovar as dúvidas que existiam sobre o espaço de afirmação futura para a OSCE na área da segurança. Se a organização surgiu no passado como terreno privilegiado para gerir o diálogo com a URSS, a verdade é que a Rússia dispõe hoje de quadros próprios muito mais eficazes, não apenas para sustentar o seu entendimento com os EUA, mas igualmente para organizar o seu relacionamento directo com a NATO. Naturalmente que passam pela OSCE algumas questões residuais em matéria de controlo dos processo de desarmamento convencional, a que se ligam mecanismos de transparência para assegurar as medidas geradoras de confiança em matérias de segurança. Mas, como atrás se assinalou, estamos já muito mais no domínio da gestão das rotinas e, muito menos, num terreno que pressuponha um nível de intervenção negocial em que a OSCE venha a ser instrumental.
Por outro lado, o último alargamento da União Europeia também não resulta neutral para a OSCE, tendo particularmente em conta que vai de paralelo com o reforço de uma dimensão própria de segurança, a qual, assuma-se ou não, conflitua, de certo modo, com o terreno tradicionalmente ocupado pela organização. Um exemplo bem evidente é o papel crescente da União nos Balcãs, num modelo de intervenção que claramente se substitui – e vai mesmo muito para além – àquele que a OSCE está em condições de oferecer. Além disso, e uma vez mais, a Rússia não necessita da mediação da OSCE para dialogar com a União Europeia: fá-lo em quadros que configuram o caminho para uma parceria estratégica perfeitamente autónoma. Diríamos mesmo que importará à União no seio da OSCE evitar que os temas mais problemáticos na sua agenda acabem por prejudicar este mesmo entendimento, em lugar de o reforçar.
Embora ninguém o afirme abertamente, é também evidente existir uma subterrânea competição entre a OSCE e as estruturas do Conselho da Europa, nomeadamente nas áreas da Dimensão Humana, se bem que, neste último caso, a OSCE possa reivindicar ter no seu seio os países da Ásia Central que não fazem parte da instituição de Estrasburgo, para além de parceiros do outro lado do Atlântico com estatuto pleno. A questão estará em saber-se se, numa lógica de economias políticas de escala, a comunidade internacional pode continuar a dar-se ao luxo de manter separadas organizações que se cruzam no mesmo plano de actividades, apenas por uma espécie de luta pela sobrevivência assente em lógicas corporativas e de inércia reformista.
Voltando à OSCE, parece importante que seja feito um inventário sereno das suas virtualidades como organização, do seu acervo institucional e normativo, da utilidade dos instrumentos ao seu dispor e do valor acrescentado que a massa crítica que conseguiu gerar pode dar para os esforços internacionais de segurança. A estes pontos deve somar-se uma análise prospectiva sobre novas áreas temáticas a que poderá dedicar atenção.
Não está nos objectivos deste texto entrar em tal exercício, mas sempre diremos que a preservação integral dos instrumentos que consagram os compromissos assumidos pelos Estados participantes da OSCE deve estar no centro das preocupações de qualquer reflexão sobre o futuro da organização. Por outro lado, não vemos como dispensável o papel extremamente relevante que a rede das Missões OSCE hoje representa, como factor de monitorização e pressão para a evolução de certas sociedades em transição. Finalmente, cremos que questões como o combate ao Tráfico de Seres Humanos, a gestão de fronteiras e a formação de polícia, a par de outras dimensões de natureza horizontal, constituem hoje um espaço de crescimento potencial da organização.
Talvez uma reflexão alargada sobre a divisão internacional de trabalho em matéria de segurança internacional pudesse ser desenvolvida com alguma vantagem, mas temos dúvidas que tal se possa fazer apenas no contexto euro-atlântico-asiático, como aquele em que a OSCE se projecta. A nosso ver, só como resultante de uma evolução das Nações Unidas, com a atribuição de responsabilidades subsidiárias a organizações de natureza regional ou sub-regional, é que o futuro da OSCE poderia ser assegurado em plenitude. Mas esse é outro debate que não cabe neste texto.
Finalmente, a ideia de alguns Estados no sentido de, a prazo curto, ser promovida uma Cimeira de chefes de Estado e de Governo dos países OSCE continua a ser tema de análise recorrente na organização[15]. Confessamos o nosso cepticismo sobre o interesse e oportunidade de levar a cabo, no imediato, tal exercício. Não apenas porque tememos que ele possa ser escassamente mobilizador, espelhando ainda mais o desinteresse actual que os Estados participantes mantêm pela organização, mas igualmente porque ele poderia contribuir para o relevar de algumas clivagens, por ser impensável que alguns sectores dentro da organização se não sentissem tentados a expressar as suas preocupações fundamentais num debate a nível tão elevado. E, neste caso, o exercício acabaria por ser contraproducente e reforçar as perplexidades que, em princípio, tinha como objectivo superar.
A Presidência Portuguesa
A Presidência portuguesa da OSCE[16] foi, desde o primeiro momento, assumida como “uma oportunidade única para que Portugal possa continuar a dar expressão ao seu apego a uma política de direitos humanos, de enraizamento da democracia e da promoção da paz, da estabilidade e da prosperidade no mundo e em particular no continente europeu”[17]. O objectivo era utilizar o palco da OSCE para reforçar a nova visibilidade externa que se pretendia para o país, nomeadamente através de uma activa participação no quadro europeu e na crescente afirmação de uma diplomacia de valores.
Para tal, Portugal definiu, durante 2001, um completo programa de trabalho onde ressaltava alguma ambição de tocar, com eficácia e sentido prospectivo, nos principais vectores operacionais da OSCE, nomeadamente através de um maior equilíbrio das respectivas Dimensões, de um impulsionar de linhas internas de reforma e de uma procura de sinergias com outras organizações internacionais e regionais, no quadro do conceito da Plataforma para uma Segurança Cooperativa[18], lançado na Cimeira de Lisboa, em 1996, e consagrado em Istambul, três anos mais tarde.
De registar que os três temas de natureza regional, ligados aos chamados frozen conflicts que subsistem no seio da OSCE, também mereceram a atenção da Presidência portuguesa: Transnístria, Nagorno-Karabakh e Ossétia do Sul.
Valerá fazer referência breve a cada um deles, pois constituem o cerne das preocupações da organização e, na realidade, configuram situações de tensão, restos da Guerra Fria, que não podem deixar de colocar ameaças constantes à estabilidade.
Na região moldava da Transnístria, na fronteira com a Ucrânia, mantém-se uma administração separatista que não aceita o governo central moldavo, expressando uma vontade política que hesita entre o secessionismo e modelos de grande autonomia. Embora não haja um reconhecimento formal de tal administração por parte de qualquer país, a circunstância das autoridades transnístrias de facto dificultarem a destruição e remoção de armas e munições de uma antiga base russa aí localizada traz consequências sérias para o cumprimento por Moscovo de parte dos já referidos “Compromissos de Istambul”. O problema transnístrio apresenta, assim, duas vertentes, que regularmente se conjugam no plano político: o desmantelamento do arsenal militar russo e o processo negocial para o estabelecimento de um acordo político-constitucional com as autoridades legítimas da Moldova. O ano de 2002 trouxe alguns avanços nas duas frentes, embora sem uma solução necessariamente à vista em ambas. Em 2003, a Rússia tentou promover um plano próprio para a resolução do diferendo, que contou com a oposição do governo moldavo e um idêntico cepticismo por parte da comunidade internacional ocidental.
A OSCE, através do chamado “Grupo de Minsk” (co-presidido pelos EUA, Rússia e França), tem, na última década, tentado mediar o conflito provocado pela ocupação pela Arménia de cerca de 16% do território do Azerbaijão, a região do Nagorno-Karabakh, onde reside uma população de etnia arménia. Desde o cessar-fogo obtido em 1994, que culminou um sangrento conflito iniciado em 1988, que a situação se tem mantido sob elevada tensão, com incidentes regulares, embora com uma intensidade baixa de conflito nos últimos anos. Os esforços das diversas Presidências OSCE para promover um diálogo com efeitos práticos na definição do estatuto futuro daquele território têm sido totalmente infrutíferos.
Finalmente, o território da Ossétia do Sul mantém um conflito com as autoridades da Geórgia, que recusam conceder o estatuto de ligação à Rússia que reclama. Trata-se de um problema que a OSCE trata desde há vários anos, com sucesso muito limitado, mas com regular promoção de diálogo entre as partes. De paralelo com a questão do território da Abcásia, que está a cargo das Nações Unidas, a questão da Ossétia do Sul constitui uma das heranças da presença russa na Geórgia.
Porém, todos os esforços de Portugal nestes domínios, se bem que reconhecidos e saudados no seio da organização, tiveram um sucesso semelhante aos que haviam sido levados a cabo por anteriores Presidências. A prevalência de tensões locais muito fortes e a incapacidade ou indisponibilidade de outros actores internacionais de forçarem soluções levou, em todos os casos, a um prolongamento prático do status quo. Vale a pena registar que as Presidências posteriores foram, até ao momento, igualmente incapazes de dar qualquer salto qualitativo nestas mesmas questões.
Terrorismo – desafio e oportunidade
Numa perspectiva mais geral, é importante notar que, sem ter perdido de vista alguns dos principais objectivos do seu programa, a Presidência portuguesa se viu forçada, desde o primeiro momento, a proceder a uma readequação parcelar do mesmo à luz das exigências da nova situação criada pelos acontecimentos de Setembro de 2001. Assim, constituiu preocupação central do nosso exercício potenciar a visibilidade e a utilidade efectiva da organização no esforço colectivo, liderado pela ONU, e assumido como linha comum por toda a comunidade internacional, de luta contra o terrorismo. Tratava-se, neste caso, de prosseguir e complementar o inteligente e oportuno esforço feito pela anterior Presidência romena nos seus últimos meses, onde havia consagrado, neste domínio específico, o Plano de Acção de Bucareste e o Programa de Acção de Bisqueque – que passaram a constituir-se eixos importantes no esforço de visibilidade da OSCE no campo da luta anti-terrorista.
Se bem que ninguém duvidasse da importância de que se revestia uma organização de segurança como a OSCE afirmar a sua disponibilidade para colaborar na luta internacional anti-terrorista, muitos se interrogaram, desde o início, sobre qual seria o valor acrescentado que ela poderia dar a tal esforço. O que ficara definido em Bucareste e Bisqueque era, sem dúvida, importante, mas estava por demonstrar o papel operativo particular que a OSCE poderia vir a desempenhar neste âmbito. Alguns viram mesmo, nesse movimento de colagem à agenda de oportunidade, um ensejo para consolidar o futuro da organização – certos cínicos afirmaram então que talvez o terrorismo pudesse vir a fazer mais pelo futuro da OSCE do que a OSCE pelo combate ao terrorismo…
A Presidência portuguesa procurou, desde o primeiro momento, assumir uma posição realista. Sem tentar magnificar as potencialidades da organização neste domínio, colocou-se a si própria três objectivos paralelos.
O primeiro consistia em dar sequência aos esforços muito positivos da Presidência romena, garantindo que, durante 2002, seriam avaliados os progressos e as boas práticas entretanto desenvolvidas pelos Estados no combate ao terrorismo, estruturando algumas linhas para exercícios similares no futuro, a aprovar no Conselho Ministerial do Porto, em Dezembro desse ano.
O segundo seria a possibilidade de elevar a visibilidade da acção da organização no contexto internacional, utilizando para tal os instrumentos da Plataforma para uma Segurança Cooperativa. Desde o início da nossa Presidência, havia sido planeada a realização, em Lisboa, de uma reunião com os Secretários-Gerais e/ou altos representantes da ONU e das organizações regionais relevantes, que viria a ter lugar em Junho de 2002.
Finalmente, um terceiro objectivo, a que cedo atribuímos grande importância, foi o de procurar fixar, num único instrumento escrito, as bases de uma aproximação política comum dos Estados OSCE no quadro da luta anti-terrorista. A ideia de conferir a tal documento o título de “Carta” foi recorrentemente mencionada como um dos objectivos para o Conselho Ministerial do Porto.
O risco deste último objectivo – e que acabaria por ser a nossa mais original contribuição neste domínio – era reconhecidamente elevado. A crescente simplificação de tratamento do tema, pela situação traumática que o relançara e pelo pragmatismo das acções que a ONU concentrava, deixava escasso espaço para um esforço de abordagem mais conceptual. Esse esforço tanto se poderia perder em generalidades inconsequentes como cair no terreno perigoso de definições muito elaboradas ou restritivas, as quais, neste último caso, iriam em contra-ciclo com a maré política do tempo. Acrescia que a diversidade de culturas políticas que compõem a OSCE facilmente faria resvalar tal tarefa para uma colagem às clivagens tradicionais no seio da organização, como já se começara a verificar em Bucareste.
Cedo se verificou que todas estas preocupações tinham fundamento. Depois de um ensaio do exercício, antes do Verão de 2002, em moldes que a comunidade OSCE não acolheu com grande entusiasmo, viríamos, nos últimos meses, a reverter em Viena o processo através de um modelo que se revelou mais consensual, embora curiosamente mais imaginativo e criativo. Dele viria a resultar, por aproximações sucessivas, a Carta de Prevenção e Combate ao Terrorismo, que seria aprovada no Conselho Ministerial do Porto, em Dezembro de 2002. As discussões em Viena foram muito difíceis, a própria utilidade do exercício chegou a estar em dúvida, o conceito de “Carta” só muito tardiamente foi aceite por todos e, mesmo assim, apenas depois de um delicado trabalho de convicção individualizada dos Estados mais relutantes, com o recurso a complexos trade-off com outros dossiês. Pelo percurso ficaram dificuldades de wording ligadas a problemas específicos de alguns países e um esforço para uma orientação pragmática e, tanto quanto possível, isenta de ambiguidade.
No Porto viríamos também a aprovar uma Decisão, sob impulso dos EUA, relativa aos compromissos e actividades da OSCE no combate ao terrorismo – precisamente na linha de fixação do quadro de monitorização futura que sempre pretendêramos. A assunção, por parte da Presidência, desta ideia americana, que sempre procurámos que não afectasse substantivamente a integridade e a própria identidade conceptual da Carta, acabaria por ser garantida como contrapartida do apoio activo de Washington, nomeadamente junto de terceiros Estados, a outros documentos que pretendíamos incluir no “pacote” que viria a ser aprovado no termo do Conselho Ministerial do Porto.
Neste domínio politicamente tenso e propenso à simplificação caricatural que é o combate ao terrorismo, a Presidência portuguesa terá conseguido, através de um empenhamento e determinação constante, assegurar um dos principais sucessos do seu exercício, o que foi por todos reconhecido[19].
Algumas iniciativas singulares
Não tendo este trabalho uma vocação de inventário de resultados, entendemos, contudo, importante apontar algumas iniciativas que marcaram muito positivamente a nossa Presidência e deixaram uma marca substantiva que, estamos certos, se reflectirá no futuro da organização.
A Declaração sobre Tráfico de Seres Humanos[20] aprovada no Porto é, neste domínio, um caso exemplar. Pela primeira vez a OSCE conseguiu assumir colectivamente um conjunto de princípios num tema que tem crescente actualidade em toda a área geográfica da organização, suscitando dada vez maior atenção e preocupação da opinião pública e dos responsáveis políticos. Fê-lo através da difícil fixação de linhas de abordagem que vão para além, não apenas da retórica declarativa, mas igualmente de perspectivas teóricas tradicionais, por envolverem simultaneamente os países de origem e as fontes de procura que originam e estimulam o tráfico. Com esta Declaração, a OSCE abriu caminho a um papel central num domínio que hoje é reconhecido como da maior importância no contexto europeu. A estrutura específica que, em 2004, acabou por ser criada no organograma da OSCE para a questão do Tráfico de Seres Humanos é o resultado concreto deste esforço português e a prova da sua pertinência.
Ainda no capítulo da Dimensão Humana, julgamos de interesse relevar a Decisão aprovada sobre Tolerância e Não Discriminação. Fruto de uma negociação complexa e laboriosa, que evidenciou as conflitualidades de interesses que o tema acolhe, foram lançadas importantes bases para um domínio que se revela central nas modernas questões de segurança. A realização, em 2003 e 2004, de duas importantes iniciativas neste âmbito, que decorrem directamente desta Decisão, comprova a importância do que no Porto aprovámos. Diga-se que, quando este tema surgiu na mesa negocial da nossa presidência, muitos poucos estavam convencidos da possibilidade de aprovação de algo de substantivo.
Finalmente, sublinharíamos duas Decisões que podem ter um impacto decisivo sobre o futuro da organização.
A primeira tem uma natureza conceptual e prende-se, indissoluvelmente, com o próprio futuro da OSCE enquanto instituição. Tratou-se do lançamento da ideia do estabelecimento de uma comprehensive Estratégia da OSCE para enfrentar as Ameaças à Segurança e à Estabilidade no Século XXI, nomeadamente analisando a respectiva mudança de natureza e principais causas, o papel e a adaptação de toda a rede institucional e operativa da organização em função dessas mesmas ameaças, a avaliação de eventuais novos meios de acção e a ligação prática às acções nacionais e de estruturas regionais ou internacionais relevantes. Na sequência da Declaração ministerial acordada em Bucareste, a Presidência portuguesa em Viena tomou a iniciativa de solicitar aos EUA e à Rússia, no primeiro semestre de 2002, uma contribuição conjunta neste domínio. Com base nela, foi feita uma fixação detalhada deste ambicioso programa de acção, o qual constitui, porventura, uma das contribuições mais relevantes e originais que a Presidência portuguesa prestou à OSCE, “obrigando-a” a repensar-se à luz de uma abordagem muito extensa do novo ambiente de segurança em que se move[21].
Uma segunda Decisão, que julgamos dever também notar, dotada de uma natureza operativa muito evidente, tinha a ver com a proposta de realização de uma “Conferência Anual de Revisão da Segurança”, que se pretendia o fórum para uma avaliação, conjunta e coordenada, do trabalho anual da organização em todas as dimensões da segurança, desde a resposta às novas ameaças, à verificação da implementação das medidas de combate ao terrorismo, aos aspectos político-militares da segurança, às actividades de alerta precoce, prevenção de conflitos, gestão de crises e reabilitação pós-conflito, às questões de polícia, à acção das instituições e das Missões no terreno, etc. Trata-se de uma iniciativa de grande alcance, que se colocou de imediato no centro das prioridades da Presidência que nos sucedeu, e que representa um modelo integrado sem precedentes na história da OSCE[22].
A actividade de uma Presidência não se esgota nos textos aprovados no seu termo, mas estes revelam muito do trabalho desenvolvido. O facto da Presidência holandesa que nos sucedeu ter como programa, praticamente, o desenvolvimento do tasking que fizemos aprovar no Porto dá uma ideia da relevância do nosso contributo.
Mas é evidente que o trabalho de uma Presidência é constituído, também, pela gestão diária de uma complexa organização como é a OSCE, pela capacidade de promover a orientação regular à actividade do Secretariado, de procurar dar coerência à acção das diversas instituições e, muito em especial, pelo modo como se afirma na coordenação diária do trabalho das Missões no terreno, nomeadamente com vista a ajudá-las a superar os seus problemas, de natureza substantiva ou operacional.
Essa acção de rotina está maioritariamente assente na Representação Permanente da Presidência em Viena e é julgada, no dia-a-dia, pelo conjunto da organização, dela resultando a imagem que a Presidência cria e que é a sua marca distintiva.
Neste contexto apreciativo, sobressai também a forma, mais ou menos eficaz, como as Presidências conseguem articular o binómio capital/Viena. A complementaridade ou as tensões que sempre marcam esta dualidade resultam perfeitamente visíveis aos olhos dos observadores, a começar nos Estados participantes e a acabar no Secretariado. No caso da Presidência portuguesa da OSCE, em 2002, valerá a pena afirmar que o modelo de funcionamento do binómio capital/Viena foi um factor muito notório na nossa actividade, durante grande parte do ano, salientando-se em termos públicos em moldes que permanecem muito vivos na memória da organização.
As crises de percurso
A Presidência portuguesa teve de enfrentar, nos primeiros meses da sua gestão da organização, a difícil situação decorrente de não ter sido aprovado, até ao termo de 2001, o orçamento da OSCE para o ano seguinte. Um trabalho aturado de diálogo e persuasão foi levado a cabo com uma eficácia técnica que assegurou o primeiro sucesso da nossa Presidência, garantindo tempestivamente os meios para o funcionamento regular da organização. Valerá a pena notar que, no termo da sua própria Presidência, Portugal conseguiu deixar finalizado, a tempo e horas, o orçamento para 2003.
Uma segunda crise de percurso foi gerada pela decisão da Bielorússia de, progressivamente, deixar de renovar a acreditação diplomática dos membros estrangeiros da Missão OSCE em Minsk, como protesto pelo alegado comportamento da chefia dessa mesma Missão face à situação interna no país, em especial aquando das eleições presidenciais de 2001. O trabalho do pessoal da OSCE foi visto pelas autoridades bielorussas como tendo favorecido abertamente as forças da oposição. Como reacção às dificuldades criadas à Missão em Minsk, a Assembleia Parlamentar da OSCE viria a suspender, em Julho de 2002, a participação de deputados bielorussos nos seus trabalhos. Em resultado da atitude bielorussa, a Missão da OSCE em Minsk deixou, no final de Outubro de 2002, de poder contar com qualquer funcionário internacional e, na prática, cessou todas as suas actividades, já muito reduzidas desde há vários meses.
Perante a degradação crescente dos laços entre a Bielorrússia e a OSCE, a Presidência portuguesa procurou, desde muito cedo, encetar um diálogo com as respectivas autoridades, para estudar em conjunto o modo como a presença futura da organização no território poderia vir a ser mantida. As autoridades bielorussas furtaram-se a esse diálogo até à cessação, de facto, do trabalho da Missão em Minsk. Entretanto, no seio da União Europeia, e na sequência da recusa checa em permitir a deslocação do Presidente bielorusso à Cimeira da NATO em Praga, em Novembro, gerou-se e acabou por prevalecer uma linha maioritária no sentido de impor medidas restritivas em matéria de vistos de viagem a oito dirigentes bielorussos, incluindo o Presidente e o Ministro dos Negócios Estrangeiros. Portugal entendeu não dever associar-se a esta medida restritiva e isso permitiu que o MNE bielorusso se deslocasse à reunião ministerial do Porto, o que, na prática, facilitou o início do regresso da Bielorússia à mesa de negociações. Mais de duas semanas de intensas negociações em Viena, sob a exclusiva e autónoma responsabilidade da Presidência portuguesa do Conselho Permanente, permitiram fixar as bases de um novo mandato, que viria a assegurar a reabertura formal de um novo escritório da OSCE em Minsk, a partir de 1 de Janeiro de 2003.
Este significativo êxito da Presidência portuguesa, no tocante à preservação da presença da OSCE em Minsk, não teve paralelo na questão da continuidade da presença da Missão da OSCE na Chechénia a partir de 31 de Dezembro de 2002. Os dois processos têm, contudo, contornos bastante diferentes. Aquando da renovação do mandato daquela Missão, no termo de 2001, a Rússia deixara já entender que 2002 seria o último ano em que a presença da OSCE em Grozny se manteria aberta, à luz do mandato existente. Após o Conselho Ministerial do Porto, em Dezembro de 2002, a Rússia apresentou à Presidência portuguesa um projecto de novo mandato para 2003, que permitia a continuação de uma Missão no terreno. Porém, tal texto diluía grande parte da substância política do anterior mandato e, na prática, transformava um futura presença da OSCE numa mera estrutura de cooperação técnica com as autoridades russas, sem real consistência com os objectivos que a organização pretendia desenvolver no território, nomeadamente na área dos direitos humanos. Intensas rondas de contactos com os parceiros em Viena vieram a resultar na rejeição liminar da proposta russa. Sucessivos projectos alternativos de texto para o futuro mandato, preparados e propostos pela Presidência portuguesa, tendentes a fazer a ponte entre os interesses russos e as pretensões dos principais parceiros ocidentais, nunca conseguiram gerar um mínimo de consenso entre as partes, até ao final do ano, data limite de vigência do anterior mandato e em que a Missão encerrou as suas actividades.
Que razões terão conduzido a este impasse? A nosso ver, a Rússia cedo terá percebido que o preço político a pagar pela decisão de forçar o encerramento da Missão OSCE em Grozny acabaria por não ser muito elevado, num tempo subsequente ao atentado checheno no teatro de Moscovo e em que a prevalência de um ambiente securitário no plano internacional funcionava em seu favor. A Rússia, de facto, não estava enganada.
Uma outra crise que muito marcou a Presidência portuguesa da OSCE respeitou à substituição do director do Escritório para as Instituições Democráticas e Direitos Humanos (ODIHR), a importante instituição da OSCE sedeada em Varsóvia, dedicada à observância dos direitos humanos. O processo de selecção de candidatos teve início antes do Verão e viria a ficar marcado por vários incidentes de percurso, com tensões entre candidaturas e questões de natureza processual em que – há que assumi-lo – a gestão da Presidência poderá ser vista como não estando totalmente isenta de culpas. Perante o evidente bloqueio criado entre as candidaturas apresentadas até ao Verão, a Presidência portuguesa em Viena viria a lançar, em Setembro, um novo processo, desta vez apoiado num grupo de wise persons, que acabou por apontar para uma solução em torno de um único nome. O nome proposto pela Presidência portuguesa em Viena, com base nesse novo modelo selecção, viria a merecer o consenso dos 55. Mas tal só acabou por ocorrer em início de Janeiro de 2003, já sob Presidência holandesa, pela peculiar insistência de um Estado participante nosso vizinho em não desistir da sua candidatura enquanto a Presidência portuguesa estivesse em funções, descontente da forma como Lisboa gerira a questão. Cosas de la vida…
Outro domínio em que se verificaram alguns problemas foi o da nomeação de personalidades para a chefia ou lugares de relevo em Missões da OSCE, decisões que dependiam essencialmente da Presidência portuguesa e que eram da exclusiva responsabilidade da chefia política em Lisboa. Esta é uma área em que, tradicionalmente, surgem questões e tensões, em especial porque toca de perto as ambições de certos Estados participantes na assunção ou preservação da titularidade de alguns postos. É também um domínio em que o Estado que exerce a Presidência procura garantir alguma autonomia decisória, às vezes para gerir equilíbrios no seu quadro de relações bilaterais, e onde também frequentemente se confronta com a opinião do Estado receptor. Em perspectiva, diríamos que Portugal fez uma gestão deste dossiês que ganharia em ter sido muito mais transparente, célere e, em alguns casos, mais apoiada em critérios de competência objectiva. Assim teria sido evitada a fixação de uma desnecessária imagem de hesitação e de desleixo temporal.
Finalmente, uma nota sobre as relações entre o Conselho Permanente e a Assembleia Parlamentar da OSCE[23]. Depois de um período inicial da nossa Presidência em que, a exemplo de anos anteriores, se tentou trabalhar no estabelecimento de um “Memorando de Entendimento”, com vista a fixar a articulação funcional entre as duas estruturas, que cedo se verificou ter difíceis condições de aceitabilidade entre os 55 Estados participantes, entrou-se, na segunda metade do ano, num período de alguma tensão interinstitucional, com a Assembleia a apresentar pretensões que a Presidência em Viena verificou que não tinha condições de fazer aceitar pelos parceiros. Através de um diálogo directo entre o Presidente do Conselho Permanente e o Presidente da Assembleia Parlamentar, Portugal acabou por definir, por decisão tomada em Viena, um modelo pragmático de ligação entre a nova representação da Assembleia e as diversas instâncias do Conselho Permanente, para o que contou com a útil colaboração da futura Presidência holandesa, com vista a assegurar a sobrevivência no tempo de tal gentlemen’s agreement. Desta forma, as tensões diluíram-se e foi possível entrar em 2003 com uma fórmula de intervenção da Assembleia Parlamentar nos trabalhos do Conselho Permanente que já não suscita susceptibilidades de maior. Julgamos ser justo creditar também este resultado no saldo da nossa Presidência.
Os problemas fazem parte da vida das organizações e a OSCE, bem como as respectivas Presidências, não fogem a esta regra. Olhando para trás, sem complexos, para as dificuldades enfrentadas e para os erros cometidos, vemos que outras soluções poderiam ter sido seguidas e que disso teria beneficiado a imagem da nossa Presidência. Numa análise temporalmente distanciada, o autor deste texto assume que, atentas certas condicionantes e aspectos conjunturais menos favoráveis, nos planos interno e externo, Portugal pode dar-se por muito satisfeito com o saldo geral do seu exercício de 2002. Esta perspectiva ganha mais evidência se pensarmos no que poderia ter acontecido se os funcionários do Estado português, nomeadamente os que estiveram colocados em Viena, se tivessem deixado absorver por situações e atitudes que, no limite, os poderiam ter desincentivado de prosseguirem com entusiasmo o seu trabalho. Felizmente assim não aconteceu porque sempre prevaleceu, do seu lado, a vontade em salvaguardar os interesses do país.
Pistas de reflexão
Chegados a este ponto, parece-nos útil procurar tirar algumas breves conclusões sobre o futuro da organização, nomeadamente no tocante às possíveis adaptações a introduzir na sua estrutura, como forma de melhor responder ao seu novo posicionamento no contexto da arquitectura de segurança europeia, num momento de acelerada instabilidade internacional, cuja resultante final não é por ora visível. Do mesmo modo, importa também reflectir sobre qual poderá ser o papel de Portugal no futuro da organização e o modo como a poderá utilizar no quadro da sua acção externa.
Como se assinalou, a OSCE vive num impasse difícil de superar, no que toca às suas estruturas. Por um lado, é óbvio que a organização retiraria vantagens de um reforço institucional, de uma maior operacionalidade e autonomia funcional do trabalho do Secretariado e, em especial, da possibilidade do Secretário-Geral dispor de algum poder político de iniciativa, nomeadamente na área da prevenção de conflitos e da gestão de crises.
Tendo em atenção o actual momento de algum bloqueio que atravessa a organização, julgamos irrealista poder apontar para que seja possível fazer aprovar uma reforma institucional profunda, que reformule todo o actual organograma, dando-lhe maior coerência e alterando a relação funcional e hierárquica prevalecente. No imediato, somos da opinião de que só um esforço reformista de adaptação, de natureza política, pilotado pelas próximas Presidências[24], poderá ter condições de sucesso. Esse esforço poderia passar por uma progressiva delegação de competências de representação política no Secretário-Geral, o qual, para ter condições para exercer em pleno tais funções complementares, deveria passar a ser coadjuvado por um Secretário-Geral Adjunto, que teria a seu cargo as questões de natureza administrativa[25]. Assim, as próximas Presidências deveriam ser persuadidas a fazer um esforço de auto-limitação da sua própria autoridade, em favor do Secretário-Geral, aproveitando a circunstância de uma nova figura dever vir a ser designada para este cargo em 2005. Tratar-se-ia de uma progressiva responsabilização dos factores de continuidade, dentro de uma organização que vive sem uma sólida memória que faça a ligação entre as Presidências e permita garantir uma coerente evolução do acervo político da sua intervenção. Esta evolução não deveria, em nenhuma circunstância, subverter a relação de subordinação política entre a Presidência e o Secretário-Geral, tal como actualmente existe, mas apenas reforçaria a capacidade de representação política deste último, em nome da Presidência, na ordem externa e na sua capacidade de gestão interna.
Neste último domínio, seria do maior interesse poder dar ao Secretário-Geral a possibilidade de ser o principal veículo de orientação das Missões no terreno. Tal pressuporia um reforço do actual Centro de Prevenção de Conflitos (CPC), que deveria ser dotado de uma “célula de análise e prospectiva” e de uma “unidade de planeamento de intervenção”, esta última englobando as actuais actividades na área da gestão de fronteiras e acções de polícia e a progressiva criação de uma massa crítica própria em matéria de peacekeeping e acções pós-conflito, em articulação com outros actores internacionais.
Ao Secretariado, e dentro dele ao CPC, deveria ser conferida uma autoridade exclusiva na gestão das Missões no terreno, hoje objecto de instruções directas da Presidência, de orientações que dimanam dos debates no Conselho Permanente, das intervenções ad hoc dos Enviados ou Representantes da Presidência e da acção autónoma das diversas instituições. O CPC deveria passar a ser o único veículo de transmissão de orientações políticas e operacionais às missões no terreno, garantindo a coerência global da acção destas, nomeadamente nas actuações de natureza regional. Repete-se: tal não implicaria que o Secretário-Geral ficasse isento de responder perante a Presidência.
Ainda no tocante às Missões, o cenário ideal apontaria para o aumento dos postos de pessoal contratado, em progressiva substituição do actual regime de secondment, que tem fortes desvantagens pela dependência que cria face aos países que designam o pessoal e pela rotação excessiva que introduz, com instabilização constante das estruturas. Não sendo possível, realisticamente, enveredar por essa via no actual quadro de disponibilidades orçamentais, importaria, contudo, que as Presidências pudessem vir a conferir ao Secretariado um papel decisivo na selecção desses mesmos quadros. Esta questão prende-se, em especial, com as chefias e as subchefias das Missões, que deveriam passar a ser feitas através de uma comissão independente, dirigida pela Presidência e integrada pelo Secretariado, este com direito de veto, e por personalidades indicadas pelo Conselho Permanente. Assim se garantiria uma maior transparência a tais processos de selecção, que deveriam ser marcados por critérios de gestão profissional, com provas rigorosas de selecção. Alguns desastres cometidos neste tipo de selecção, inclusive durante a nossa Presidência, aí estão para demonstrar a fragilidade do actual método, baseado em avaliações impressionistas e meras apresentações curriculares.
Não ignoramos que a eventual adopção deste novo modelo contrariaria as vantagens que alguns países retiram da prática actual. Para além das Presidências irem perder, nesse caso, parte da influência autónoma de que hoje dispõem, também os países que hoje providenciam pessoal em regime de secondment ficariam afectados no poder de efectivo controlo que hoje têm – o qual, curiosamente, também se objectiva em detrimento do poder da Presidência. Do que não duvidamos é que tal resultaria em favor de um acrescido reforço da organização.
Em termos gerais, a experiência aponta para a necessidade absoluta de garantir um reforço das estruturas de continuidade no seio da OSCE – o que só pode significar um reforço do papel do Secretariado. A menos que houvesse uma improvável vontade política para caminhar no sentido de uma ambiciosa reforma global – o que poderia ser dinamizado por um “Grupo de Sábios” mandatado a nível ministerial, como o fez há anos o Conselho da Europa –, quaisquer passos eficazes e realistas naquele sentido só podem ter sucesso se houver uma disponibilidade de delegação de poder por parte das futuras Presidências.
Portugal e a OSCE – o futuro
A Cimeira de Lisboa de 1996 deu a Portugal uma imagem de um país capaz de mobilizar meios e vontades para ajudar a redireccionar o rumo da OSCE, num momento decisivo do respectivo percurso. A Cimeira de Lisboa continua a ser considerada um evento da maior importância na história da organização, pelo aprofundamento aí feito do papel chave da OSCE no processo de segurança e estabilidade, através das suas três Dimensões. Foi em Lisboa que se lançaram os fundamentos daquilo que viria a constituir a Carta para a Segurança Europeia, que viria a ser aprovada em Istambul, em 1999. Mais tarde, o modo sério e responsável como planeámos e definimos as linhas orientadoras para a presidência 2002, a acção relevante que desenvolvemos na Troika durante 2001 (nomeadamente na gestão da questão transnístria) e a capacidade com que soubemos adequar o nosso programa de acção às novas realidades subsequentes a Setembro de 2001 – tudo isso nos garantiu o crédito de confiança com que iniciámos o exercício da Presidência.
Já atrás fizemos o balanço possível da Presidência de 2002. Resta sublinhar que nela veio a somar-se o efeito conjugado de dois factores: um externo e um interno.
O primeiro prende-se com as próprias interrogações existenciais que hoje em dia marcam a organização, neste tempo novo de transição no cenário geo-estratégico mundial. Os consequentes bloqueios das estruturas da OSCE, bem como o deslocar das agendas de prioridades de alguns parceiros para outros quadros institucionais tidos por mais operativos perante os desafios da conjuntura, conduziram àquilo que foi a média de vontades entre [i]os Estados participantes que serviu de pano de fundo à implementação do nosso programa.
O segundo liga-se às inevitáveis consequências induzidas pelas alterações de titularidade ocorridas durante o curso da Presidência, no tocante aos três actores principais envolvidos na respectiva gestão – Presidente em Exercício, Presidente do Conselho Permanente e Coordenador OSCE em Lisboa. Note-se que nenhuma outra presidência anterior sofreu uma tão profunda convulsão no seu curso de trabalho. Qualquer que seja a leitura que se faça da resultante prática de cada uma dessas mudanças para o curso da nossa Presidência, há que convir que apenas por um grande acaso, que não se verificou, essas alterações poderiam resultar neutrais para os equilíbrios de que dependia o êxito do exercício. E, independentemente do auto-retrato que procuremos dele fixar, a imagem que ficou nos outros prevalecerá como aquilo que fizemos, ou deixámos de fazer, na OSCE durante 2002. Cada um de nós.
Dito isto, onde está hoje, e onde deve estar no futuro, Portugal na OSCE ?
Fora de contextos muito particulares (cimeiras, presidências, Troikas) que se não repetirão, a relevância de Portugal na OSCE acompanha o normal padrão da afirmação da nossa política externa no plano mundial. O que significa que, se quisermos ir para além desse padrão, temos de estar dispostos a adoptar políticas voluntaristas, algumas das quais passam pela elevação do perfil com que encaramos algumas das nossas responsabilidades no plano externo. Atentas as limitações financeiras que vulgarmente aparecem associadas a tais esforços, facilmente se concluirá que o nosso país só tem condições para apoiar tal acção através do reforço de uma diplomacia de valores.
A situação do nosso país numa organização em que os principais problemas se situam em áreas geográficas muito distantes das nossas fronteiras políticas – que não das nossas fronteiras de segurança - dá-nos um óptimo ensejo para nos afastarmos, no quadro da OSCE, de juízos de alguma realpolitik, quase sempre inibidores de uma total coerência. Isso permite-nos uma maior isenção face a determinados cenários, que outros vivem sob reflexos de maior proximidade geopolítica ou de cargas históricas muito particulares.
A OSCE deve ser, assim, para nós, um terreno de afirmação dos princípios com que fomos aculturando a nossa expressão externa nas últimas décadas, nomeadamente no tocante à estrita observância das regras democráticas, à preservação dos valores do Estado de direito, bem como a uma política activa de promoção dos Direitos Humanos, nas suas várias dimensões. Daí decorre o interesse em aproveitarmos o subgrupo da União Europeia como espaço privilegiado para consagrarmos, no dia-a-dia da OSCE, essa mesma linha de orientação. Torna-se importante que continuemos a dar de Portugal, também no contexto específico da OSCE, a imagem de um país “previsível” e responsável nos seus reflexos externos, elemento essencial à nossa credibilidade como actor internacional, que ainda dispõe de uma apreciável projecção em vários cenários geopolíticos.
Complementarmente, a OSCE pode ser, também, um espaço interessante para alimentarmos e completarmos o nosso tecido de relações bilaterais, nomeadamente em áreas do mundo não cobertas por uma presença física permanente da nossa rede diplomática e consular, como é o caso do Cáucaso e da Ásia Central. A nossa Presidência da organização poderia ter constituído, aliás, um momento importante para esse trabalho de fixação e cultivo de uma imagem de um país com uma política externa não subordinada a agendas de oportunidade e com uma vocação tradicional para manter a concertação como prática determinante em todas as situações, em especial no quadro de crises de conjuntura.
O trabalho junto dos países “a Leste de Viena” é, neste domínio, um caminho interessante que entendemos que o nosso país deveria dedicar-se a explorar no quadro OSCE, se nele soubermos projectar, simultaneamente, uma imagem de rigor e exigência na observância dos princípios e uma predisposição constante para o diálogo. Em especial, Portugal deve situar-se na primeira linha dos países que, no seio da OSCE, entendem essencial não deixar deteriorar o acervo da parceria estratégica construída entre a União Europeia e a Rússia, elemento vital para a estabilidade e segurança na Europa. Sem o menor prejuízo para as nossas alianças preferenciais e para as nossas afinidades naturais, deveremos ter a sabedoria, e a coragem política, de não nos deixarmos enlear em alguns jogos conjunturais, susceptíveis de virem a contribuir para minar o valor essencial em que assenta a OSCE: a confiança.
AS NOVAS FRONTEIRAS DA RÚSSIA
As mudanças políticas que ocorreram na Geórgia no final de 2003 vieram chamar, uma vez mais, a atenção para um mundo muito vasto, constituído pelos Estados que resultaram do desmantelamento da União Soviética. Dos países bálticos à Ásia Central, da Bielorússia ao Cáucaso, os últimos anos converteram a periferia da Rússia numa área política algo heterogénea, onde se cruzam interesses económicos e estratégicos, cuja evolução dá sinais de perturbar frequentemente o poder político em Moscovo.
Terá a Rússia razões fundamentadas para temer um surto induzido de instabilidade nas suas cercanias, com implicações efectivas na sua segurança futura? Ou estará Moscovo a reagir de forma desproporcionada à constatação da dificuldade de controlar os processos políticos gerados à sua volta? E que condições terá para promover uma reacção eficaz, em moldes que preservem a sua imagem e credenciais internacionais como poder democrático?
A vizinhança imediata
O processo que levou Moscovo, no auge da implosão da URSS, a ter de conceder plena soberania a vários dos seus Estados integrantes, pondo fim a uma União que havia sido preservada em torno de um modelo político em colapso, acabou por dar origem a realidades nacionais diversas, mas, em grande parte, assentes em regimes de matriz algo autoritária, embora com fórmulas constitucionais teoricamente democráticas. Com excepção dos Estados bálticos, na maioria desses países sobreviveu uma cultura política que, curiosamente, passou a ter mais a ver com a herança dos tempos soviéticos do que com a situação entretanto instalada na própria Rússia contemporânea.
Aos primeiros tempos dessa fragmentação sucederam-se tentativas de retomada centrípeta de alguma coordenação de políticas, de que a CEI (Comunidade dos Estados Independentes) foi o exemplo mais patente. Mas a desconfiança histórica e os ciclos de instabilidade nos diversos Estados afectaram sempre os fundamentos de tais estruturas de cooperação intergovernamental, a que a crise económica quase generalizada afectou a eficácia funcional. Além disso, alguma flutuação na afirmação externa das novas lideranças russas, fruto de razões internas e da evolução da conjuntura internacional, deu origem a etapas também diversas no seu relacionamento com o near abroad, não obstante a permanência de algumas constantes.
Esta nova realidade circundante trouxe a Moscovo, talvez mais do que a nostalgia de um poder perdido, a necessidade de convivência com a proliferação de entidades políticas autónomas, com dinâmicas próprias, quase sempre marcadas pelo sinal de uma potencial instabilidade política, fruto das suas crises de legitimidade. Aquela que sempre foi a matriz da preocupação histórica de Moscovo – a segurança no seu cenário estratégico de proximidade – converteu-se numa crescente obsessão, em particular para um poder militar que cedo entendeu que tinha de se contentar com um futuro sofrível de afirmação tecnológica, com tudo o que isso implica em termos operacionais, além do mais num quadro constrangente de colocação de forças convencionais. A falta de meios económicos para apoiar qualquer actividade significativa sustentada fora da sua área geográfica continua hoje a limitar a possibilidade da Rússia servir como pólo de atracção para os seus vizinhos, com excepção dos casos em que algum recurso a Moscovo se mostra como escapatória para afrontar crises internas ou a proteger tais regimes no quadro de pressões internacionais. Em qualquer dos casos, as limitações com que a Rússia se defronta são óbvias: a sua credibilidade internacional não lhe permite arriscar ultrapassar, sem custos sérios, a red line da ingerência interna e, por outro lado, algum nacionalismo estruturante da identidade dos Estados que se destacaram da URSS constitui-se quase sempre como uma limitação a uma excessiva promiscuidade política com Moscovo. Se a nostalgia da “doutrina Brejnev” subsiste ainda na mentalidade de alguns, o realismo político deve já ter interiorizado a noção de que as aventuras têm um preço internacional muito elevado.
Um caso interessante continua a ser a relação de Moscovo com os países da Ásia Central, onde o padrão autocrático assume modelos diversos, que nalguns casos reproduzem mimeticamente a liturgia soviética[26]. Face às singularidades destes regimes, a Rússia assume uma atitude de compreensão, alegando o respectivo estádio de transição e procurando demonstrar, contra o seu próprio exemplo, que não é prudente queimar etapas, apenas para impor um modelo democrático. Tem vindo a ser interessante observar o modo como a Rússia procura explorar alguma “solidão” internacional de alguns desses Estados, estendendo-lhes sempre a mão política, num esforço que deve ser também lido como de recuperação de alguma influência. Uma influência que tem como limite as próprias condições económicas da Rússia, que lhe não permitem assumir-se como sólida alternativa no plano da ajuda internacional.
O fim da buffer zone
O precipitar dos antigos países socialistas do Centro e Leste do continente para os braços da União Europeia não foi uma surpresa para a Rússia. A Europa comunitária garantia um modelo de estabilização democrática e uma promessa de ajuda ao desenvolvimento económico-social que ia na linha óbvia do projecto das classes políticas emergentes naqueles Estados, quase sempre tributária de uma cultura marcada por forte desconfiança face a Moscovo. A adesão representava, além disso, uma rede subliminar de segurança. Com efeito, esses países entenderam que a simples entrada no clube dos potenciais candidatos à adesão os punha praticamente ao abrigo de uma qualquer, embora improvável, atitude adversa por parte da Rússia, situação bem patente no caso dos três Estados bálticos. Moscovo cedo entendeu que tal movimento era inevitável, tendo talvez contado, erradamente, com a ausência de vontade e de capacidade da União Europeia em avançar com determinação para um processo de tal amplitude.
Com reticências iniciais, em especial ligadas à crescente vocação para uma política de segurança colectiva da União Europeia e à sensível questão báltica, Moscovo conformou-se assim com o alargamento, embora preserve ainda claras reservas à sua extensão sem limites, como haverá oportunidades para confirmar no futuro. Além disso, não deixa de recear, não sem alguma razão, que a estabilidade da relação criada com Bruxelas venha ser posta em causa por eventuais tensões induzidas na PESC pelos novos aderentes, muitas vezes com evidente apetência para explorarem traumas ou contenciosos históricos, ou ainda pendentes, com Moscovo – dado que a nova Rússia continua a ser vista por muitos como um mero sucedâneo da URSS. Neste caso, apenas pode confiar em que a densidade dos interesses da União Europeia sobre si projectados, económicos e de outra natureza, venham a ser um factor de peso para limitar tal deriva.
Mas as objecções essenciais da Rússia quanto ao posicionamento internacional desses países situavam-se noutra dimensão: o alargamento da NATO. Não obstante a Aliança Atlântica ter entretanto elaborado um apreciável quadro formal de cooperação com a Rússia, tendente a gerar confiança e a atenuar tensões, a entrada na NATO de um número significativo de países da Europa Central e Oriental é vista como uma dulcificada “provocação”, que coloca as fronteiras da organização a escassas centenas de quilómetros de Moscovo. A alegada mudança de natureza da organização é um argumento interessante mas demasiado sofisticado para uma cultura político-militar pouco dada a nuances de conjuntura. A circunstância do Ocidente continuar a ligar a ratificação do Tratado CFE Adaptado (que regula a dimensão e colocação das forças convencionais na Europa), bem como a adesão a este Tratado dos países bálticos, à observância pela Rússia dos “Compromissos” firmados em 1999, na cimeira da OSCE em Istambul (retirada de forças e material da Moldova e Geórgia), contribui para potenciar os receios de Moscovo. As fundadas esperanças colocadas pelos EUA no papel da “nova Europa” são um factor acrescido nesta perturbação instalada.
Um alibi de oportunidade
As ondas de choque do 11 de Setembro transportaram a Rússia para uma nova realidade, feita de oportunidades acompanhadas de receios. Por um lado, o seu alinhamento na luta anti-terrorista lançada pelos EUA, com o consequente fechar de olhos circunstancial às suas práticas de imposição político-militar na Chechénia, deram a Moscovo um ensejo para fazer, sem grandes sobressaltos internacionais, aquilo que em circunstâncias normais teria gerado, no mínimo, clamores de condenação. Se a movimentação do nacionalismo checheno não tivesse enveredado pelo desespero como arma política, talvez Moscovo tivesse mesmo conseguido uma solução, neste tempo que lhe foi concedido pela realpolitik.
Mas a queda das Twin Towers trouxe também uma nova – e, aos olhos russos, preocupante – situação na sua fronteira sul. Com a bênção internacional e com um alibi irrecusável, os EUA avançaram pelas Ásias Meridional e Central com uma displicência que a Rússia não pôde disputar, por se tratar do combate a um inimigo que Moscovo definira como comum. Mas entre o Afeganistão e o Iraque alguma água passou sob a ponte. Embora os EUA mantenham a Rússia como parceiro formal de um diálogo ao mais alto nível, vão apresentando como factos consumados aquilo que Moscovo apreciaria fosse produto de uma regulação negociada.
A actividade dos EUA no Cáucaso era, de há muito, um dado adquirido nos equilíbrios da região. Com um pouco discreto apoio à liderança familiar do Azerbaijão e um compromisso com a política de equilíbrio de sobrevivência de Chevardnadze, Washington tinha já conseguido assegurar, sem preocupações de maior, a sustentação do seu projecto petro-político na região. O pouco discreto apoio de Washington à eclosão vitoriosa da nova liderança geórgia obrigou Moscovo a mostrar as últimas cartas de desagrado: reforço da determinação secessionista da Abcásia e da Ossétia do Sul, com a Ajária como jogada intermédia, e uma inesperada recusa, na reunião ministerial da OSCE, em Dezembro de 2003, em Maastricht, de renovar, embora em moldes que o Ocidente queria novos, os “Compromissos” que havia feito em Istambul. Recorde-se que parte desses mesmos compromissos se prende precisamente com a manutenção de três bases russas na Geórgia, contra vontade do governo local.[27]
Mas os restantes compromissos, desta vez relativos à Moldova, originaram também uma outra crise. Quase em simultâneo com o eclodir da revolta geórgia, a Rússia apresenta um hábil plano federal para a Moldova, assente no reconhecimento explícito da autonomia da Transnístria, a região secessionista em que Moscovo mantém tropas e material, que se comprometeu, em 1999, respectivamente a retirar e a destruir. A principal “habilidade” deste plano, rejeitado pelo governo moldavo sob o que a Rússia considera ter sido uma pressão ocidental, previa a continuação por um longo tempo das tropas russas, que mudariam o seu estatuto para “forças de manutenção de paz”, desta vez legitimadas pela comunidade internacional. O fracasso desta iniciativa constituiu um golpe humilhante para Vladimir Putin.
Os próximos anos dar-nos-ão resposta a questões que só agora têm condições para ser postas, até porque os respectivos termos de referência estão em constante mudança. Os EUA começam a dar mostras de não ter pejo em forçar alguma tensão com Moscovo, sempre que tal seja compatível com um universo de cumplicidade objectiva de onde continuam a retirar evidentes vantagens. Por outro lado, a renovada legitimidade interna do Presidente Putin permite-lhe, quando oportuno, afirmar agendas de prestígio nacionalista, com o tema da segurança a servir de alavanca instrumental. Estaremos a caminho de um novo, embora diferente, modelo de Guerra Fria?
AMEAÇAS À SEGURANÇA
Os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001 e o conjunto das suas decorrências, que são hoje objecto de grande exposição mediática diária, deram origem à criação de um sentimento generalizado de insegurança à escala mundial. Com variações de continente para continente, e de país para país, todos temos hoje a sensação de que estamos potencialmente mais expostos a ameaças imprevisíveis, de uma natureza difusa. Este sentimento é ainda mais vivo porque está também criada a ideia de que não dispomos de um antídoto ou de uma defesa minimamente eficaz para contrariar tais riscos.
Os Estados, tradicionais protectores da segurança dos cidadãos, confessam-se incapazes, por si só, de darem resposta efectiva às ameaças que impendem sobre quantos deles dependem. Estas ameaças aparecem hoje como de natureza global e transnacional, mas as opiniões públicas dos diversos países mantêm uma evidente desconfiança quanto à capacidade das estruturas internacionais existentes em garantir a sua adequada defesa.
A segurança converteu-se, assim, numa obsessão à escala internacional e, como seria de esperar, arrastou consigo outras consequências de natureza política, até na vida interna de vários Estados. O resultado das últimas eleições legislativas em Espanha ou o ambiente em que decorreu a campanha eleitoral americana são a prova evidente dessa realidade.
O impacto deste conjunto de problemas foi de tal ordem que, pela primeira vez desde há mais de meio século, foram criadas sombras muito sérias sobre a estabilidade do relacionamento transatlântico, em moldes que afectaram mesmo a integridade dos automatismos de resposta da NATO. Por essa via, suscitaram-se dificuldades no seio da própria União Europeia, precisamente no momento em que se pretendia assegurar o reforço da sua dimensão de segurança colectiva, com a inclusão de 10 novos países que cobrem um cenário estratégico da maior importância.
Estamos, portanto, numa crise de segurança de elevadas proporções, embora nem todos tenhamos necessariamente a mesma percepção do conjunto das ameaças e dos riscos. Se essa percepção varia de país para país, há, contudo, uma constatação a que todos temos a obrigação de chegar: é que o mundo pós-Guerra Fria é muito menos previsível e controlável do que à partida se supunha e, principalmente, que esta é uma realidade que veio para ficar.
O fim ou a atenuação das fronteiras, a globalização da economia e dos circuitos de informação, trouxe algumas dimensões novas a riscos que já eram conhecidos, trouxe mais prosperidade e democracia a alguns, mas trouxe também maior insegurança a outros. E trouxe – e esta é talvez a novidade mais marcante – um papel novo, à escala internacional, para os “actores não-estatais”, os grupos mais ou menos organizados da sociedade civil que escapam ao controlo directo dos Estados e que começam a revelar-se cada vez mais relevantes na esfera internacional. Tais grupos tanto podem fazer-se notar pelo carácter positivo das suas intervenções transnacionais como pela natureza altamente perversa dos seus objectivos.
Voltando ao tempo que decorreu desde o termo da Guerra Fria, vale a pena constatar que, desde então, o mundo revela sinais muito preocupantes. Por exemplo, estatísticas da União Europeia indicam que, nos últimos 15 anos, morreram já cerca de 4 milhões de pessoas em guerras, 90% das quais cidadãos civis. Em todo o mundo, estima-se que cerca de 18 milhões de pessoas foram obrigadas, no mesmo período, a abandonar as suas casas por motivo de conflitos armados.
No plano económico, quase 3 biliões de pessoas, o que representa quase metade da população mundial, vivem com menos de 2 euros por dia. A África ao Sul do Saara está mais pobre agora do que estava há dez anos, fruto conjugado de estratégias erradas de desenvolvimento, de problemas políticos e de conflitos violentos. 45 milhões de pessoas (4 vezes e meia a população de Portugal), morrem todos os anos de fome ou de má nutrição.
O SIDA converteu-se numa das mais devastadoras pandemias de todos os tempos, ameaçando países de extinção e a facilidade de circulação das pessoas revela-se hoje um factor potenciador de novas doenças, como se é o caso do SARS e suas derivantes.
Estes elementos estatísticos têm como objectivo sublinhar que existe uma ligação íntima entre segurança e desenvolvimento. Os conflitos político-militares não destroem apenas as infraestruturas materiais (campos, fábricas, circuitos de comercialização, estruturas de transportes, etc.) ou as infraestruturas sociais e humanas. Eles encorajam a criminalidade, travam o investimento e obrigam os países a cair no ciclo infernal conflito - insegurança - pobreza.
As dimensões da segurança
As ameaças que hoje afectam a nossa segurança colectiva não são novas. Mas há hoje um conjunto de circunstâncias que faz com que algumas delas tenham emergido de forma muito mais intensa nos últimos anos, aparecendo englobadas num novo pacote potenciado de riscos.
Nesta lógica, há que ter a frieza para reconhecer que o 11 de Setembro foi apenas uma manifestação, embora muito dolorosa, de uma realidade que preexistia. Todas as tensões que deram origem ao 11 de Setembro estavam já connosco.
O mundo, provavelmente, é que necessitou daquele choque para poder reflectir na resposta a dar à manifestação dessas tensões. Resta, contudo, saber se o está a fazer com a necessária profundidade.
Para se perceber melhor o que está em causa, tentar-se-á inventariar as várias dimensões em que é possível dividir a segurança internacional e as ameaças que sobre ela impendem, embora sem uma qualquer preocupação de hierarquização ou prioridade temática.
Segurança democrática
Um primeiro grande grupo de ameaças situa-se naquilo que poderíamos designar como os atentados à segurança democrática dos Estados.
A democracia, no estado puro, é uma realidade que abrange apenas uma minoria de países do mundo, muito embora tenha vindo a ganhar terreno nas últimas décadas – e este é um dado positivo que deve reforçar o nosso optimismo. A experiência prova que a existência de países com instituições democráticas sólidas é um factor indutor de estabilidade interna e contribui fortemente para limitar as tentações de provocação de tensões no âmbito regional ou internacional.
Quer isto dizer que duas democracias ou países com sólidas economias de mercado, embora não sendo sinónimos, não podem entrar em conflito uma com a outra? Não, mas é hoje evidente que a existência de regimes democráticos, respeitadores dos princípios da ordem internacional, constitui um elemento de dissuasão muito importante para a promoção e propagação de conflitos. O que não significa que não haja regimes que praticam a democracia para si próprios e que acabam por ter um comportamento na ordem externa frequentemente muito condenável.
No plano interno dos Estados, é importante notar que todos os factores que afectem os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais, os valores da Democracia ou os princípios do Estado de direito, são sempre elementos que afectam a segurança dos cidadãos e podem contribuir para a disrupção da estabilidade política e social.
A questão do respeito pelo Direitos Humanos é hoje central na avaliação dos Estados. Com efeito, é a violência do próprio Estado que, em muitos países, provoca tensões e afecta a segurança dos cidadãos. A violência policial, as torturas, as deficientes condições prisionais, os atentados à liberdade de informação, as irregularidades nos processos eleitorais, a não isenção dos tribunais - tudo isto são factores que afectam a legitimidade da autoridade do Estado.
A experiência prova que os sistemas políticos que não são capazes de dar voz a todas as expressões da sociedade civil criam as condições naturais para a emergência de forças que se situam no exterior desses sistemas. Assim se abrem frequentemente caminhos para a afirmação de formas violentas de expressão política e social, como as acções de guerrilha, os golpes de Estado ou as acções de natureza revolucionária.
Mas a História prova que temos também o inverso: Estados onde existem instrumentos de expressão democrática ao dispor dos cidadãos e grupos que recorrem a meios violentos que não aceitam o sistema.
Noutros casos, como em alguns Estados de construção mais recentes - em África, em alguns países saídos da implosão da União Soviética, mas igualmente em certos Estados árabes -, verifica-se que as instituições criadas para o jogo político acabam por ser meramente formais. Essas estruturas parecem organizadas apenas para legitimar a preservação no poder das elites que a ele ascenderam e que tendem a evitar a regra da alternância política.
Vala e pena notar que, com escassas excepções, todos os Estados do mundo se dizem hoje democráticos e querem dar de si próprios, para consumo externo, a imagem de solidez do seu respeito pelos Direitos Humanos. Ora o que se verifica é que, em muitos desses Estados, o respeito pela minorias étnicas ou religiosas é ínfimo, a situação da mulher na sociedade é calamitosa, as estruturas parlamentares, a comunicação social e a liberdade de organização da sociedade civil são apenas um factor de promoção da sua imagem externa. Em muitos casos, estamos perante meras ditaduras ou regimes fortemente autoritários, mas sempre travestidos de contornos democráticos.
Perguntar-se-á por que razão a sociedade internacional não isola esses Estados e não cria condições de pressão para a sua mudança política. A resposta é relativamente fácil: porque muitos desses regimes “dão jeito” às ambições estratégicas de algumas potências, não apenas porque essas ditaduras ou regimes autoritários podem servir de tampão a situações tidas como relativamente mais graves, mas igualmente porque, muitas vezes, tais Estados são óptimos parceiros estratégicos ou económicos e, em outros casos, a estabilidade forçada desses regimes sustenta-os como fornecedores seguros de matérias primas, em especial o petróleo.
Mas convém dizer-se que os países ditos democráticos também não estão isentos de tensões potenciais em matéria de Direitos Humanos, que são ameaçadoras da sua estabilidade interna, por vezes com implicações externas. De facto, a intolerância e a discriminação, que começa a emergir em sólidas democracias ocidentais, constitui hoje um crescente factor de risco em sociedades tidas por mais estabilizadas. Queremos com isto referir-nos ao racismo (onde se incluem o anti-semitismo e a islamofobia), à xenofobia, o isolamento e a falta de respeito pelos direitos das minorias étnicas, religiosas ou de outras nacionalidades.
Este último aspecto é, por exemplo, cada vez mais relevante na sociedade europeia, onde hoje verificamos que a liberdade de circulação de pessoas deu uma maior dimensão à questão da integração das comunidades estrangeiras, à questão dos direitos dos trabalhadores migrantes, à problemática do direito de asilo.
Em alguns países – e bastará lembrar a França ou o Reino Unido -, começa a ser relevantíssimo o problema da acomodação de cidadãos com o mesmo estatuto nacional mas que reivindicam a afirmação dos direitos de preservação de culturas minoritárias, nomeadamente de raiz religiosa ou mesmo linguística. Os graves acontecimentos em França, no final de 2005, devem ser um alerta para todas as sociedades em que tipo similar de tensões subsiste.
Ainda neste domínio, há problemas transnacionais muito difíceis para resolver, como seja o problema dos ciganos, que hoje se põe com grande acuidade em países do Centro e Leste europeus, mesmo no quadro da União Europeia.
E há hoje riscos muito claros, evidentes na promoção do chamado hate speech (discurso de ódio) através da Internet, onde hoje podemos encontrar sites racistas e xenófobos, apelando à violência e disseminando teorias de discriminação racial e étnica.
Valerá a pena sublinhar este tipo de questões, porque elas não estão, normalmente, muito presentes numa sociedade bastante homogénea como é a sociedade portuguesa, a qual, talvez por isso, não esteja suficientemente alerta para este tipo de preocupações. Mas os sinais de perigo, goste-se ou não, estão já aí.
A resposta a todas estas questões que se prendem com os Direitos Humanos só pode ser encontrada pela vigilância dos modelos democráticos, pela exploração das suas virtualidades e pela aberta denúncia dos casos negativos. E essa resposta passa, cada vez mais, por aquilo que em jargão internacional se chama a Educação em Direitos Humanos, que tem que começar nas escolas e nas novas gerações, e que hoje é tida como um factor essencial para o futuro da segurança internacional.
Nesta luta por sociedades mais tolerantes, em que cada caso é um caso, o papel da União Europeia é cada vez mais importante, por forçar a adopção de legislação e formas de comportamento transeuropeias, na adopção de uma espécie de ideologia anti-discriminatória.
Interessante é também o papel da chamada sociedade civil, nomeadamente através das Organizações Não-Governamentais e da mobilização da comunicação social, criando sistemas de “alerta precoce” que denunciem os casos de intolerância, que se mobilizem no apoio às vítimas dessa mesma intolerância.
Uma última nota para os efeitos perversos da deriva securitária e da criação de crescentes reflexos públicos contra a imigração na questão da aceitação dos refugiados. A cultura de aceitação dos refugiados, que durante muito tempo foi a pedra de toque das sociedades tolerantes, está a caminho de uma grave erosão e pode, se a consciência internacional se não mobilizar, vir a sofrer recuos.
Segurança económica, social e ambiental
Um segundo grupo de questões que afectam a segurança internacional prende-se com os factores económicos, sociais e ambientais. Os primeiros parecem óbvios, os segundos nem tanto.
Parece uma evidência que a falta de acesso aos bens essenciais de natureza económica, as situações de subdesenvolvimento, os estados extremos de pobreza e de exclusão social constituem um terreno fértil para a expressão de formas de violência e de criminalidade, como o caso francês demonstrou. Mas essas condições potenciam também outras variáveis – como sejam o extremismo religioso, as teorias nacionalistas ou de expressão étnica radical, que muitas vezes derivam no terrorismo. Assim, falar do factor económico como elemento de agravamento dos riscos para a segurança internacional é falar apenas de uma coisa óbvia.
Todos aceitamos que os efeitos positivos da globalização, da liberalização e da mundialização do comércio e do investimento internacionais, não se reflectem de forma equilibrada no plano mundial. Pelo contrário, parece hoje evidente que as consequências positivas da globalização no desenvolvimento global, a virem a revelar-se, só o serão a longo prazo. Ora as pessoas vivem a curto prazo, porque a longo prazo, como dizia Keynes, estaremos todos mortos.
A disparidade entre os Estados é assim um facto da vida actual, agravada hoje pela mudança tecnológica acelerada e pelo acesso diferenciado às vantagens da chamada “nova economia”, criando o digital divide (a distância entre os que possuem e os que não possuem o acesso aos meios informáticos) que hoje é um elemento que marca a diferença nos ritmos de desenvolvimento.
Ora estas disparidades, que estão na origem de tensões muito grandes a nível interno dos Estados, com formas de exclusão e discriminação, com elevadas taxas de desemprego, indutoras da marginalidade e do crime, têm naturalmente uma repercussão em termos de segurança. Basta pensar que essas desigualdades são o factor essencial por detrás das pressões migratórias, feitas quase sempre em moldes geradores de grandes privações, de dependências de redes de tráfico, facilmente aproveitáveis para operações criminosas. Além disso, mesmo que o factor crime não esteja presente, como muitas vezes acontece, é óbvio que essas situações humanas de extrema tensão, por vezes potenciadas por situações políticas regionais de grande injustiça, são terreno muito fértil para a propagação de doutrinas radicais, que assentam discursos de violência extremista.
Esta é a razão pela qual todos temos de entender que a desigualdade económica, as flagrantes injustiças sociais e os ambientes de pobreza e exclusão são factores da maior importância na criação potencial de riscos para a segurança internacional.
Há ainda um aspecto da esfera económica que se prende com aquilo a que os ingleses chamam governance – e que em Português passou oficialmente a chamar-se “governança”. É o problema do modo como as sociedades são geridas no plano económico, seja na esfera pública, seja na vida privada. Esta é uma questão que se liga também com os modelos políticos de gestão pública, com a questão da corrupção que mina as administrações de muitos Estados, a gestão cleptocrática dos recursos colectivos e públicos, o nepotismo e a apropriação de bens do Estado, a incapacidade ou falta de vontade para pôr em prática modelos de gestão económica e financeira transparentes.
A comunidade internacional tem, cada vez mais, mecanismos de monitorização dessas situações e vemos hoje estruturas como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento (BERD) ou mesmo a Comissão Europeia a instituírem modelos de condicionalidade das ajudas, isto é, obrigando a certos comportamentos para a concessão de financiamentos. Embora frequentemente possamos ter legítimas dúvidas sobre se a racionalidade económica e os modelos ultraliberais que essas instituições promovem com grande afã são necessariamente sinónimos. Concordemos ou não, isso não diminui a importância de trazer essas sociedades para modelos mais abertos de accountability ou responsabilização, sem o que as tensões, com os inerentes riscos para a segurança, são necessariamente potenciadas.
Num outro domínio de dimensão social, importa atentar, neste quadro integrado de riscos para a segurança colectiva, na questão das grandes pandemias. Fala-se muito do SIDA, e com razão, porque a sua progressão, em certos países, está a ter repercussões demográficas dramáticas, com a debilitação e liquidação de estratos etários vitais para a sobrevivência e para o progresso das sociedades, colocando mesmo em risco a existência de alguns países, como acontece em África. Mas convém não esquecer que doenças como a malária ou a tuberculose continuam também a ser decisivos factores de risco a nível internacional. E que a “gripe das aves” prova a fragilidade das nossas fronteiras de protecção sanitária e introduzem interrogações na área da gestão dos riscos globais.
Finalmente, menos óbvio para alguns será a dimensão de segurança das condições ambientais. A verdade, porém, é que os problemas que se colocam no domínio económico estão, cada vez mais, indissoluvelmente ligados às questões do desenvolvimento sustentável. Basta lembrar que a poluição e o não tratamento dos lixos afecta decisivamente os sistemas ecológicos, com impactos negativos na saúde, no bem-estar e, naturalmente, no desenvolvimento económico.
Neste terreno, temos vindo a observar que há outros factores ligados, por exemplo, à degradação ambiental, à excessiva exploração e má gestão dos recursos naturais que, cada vez mais, têm implicações em matéria de segurança. Pensa-se, imediatamente, no petróleo, mas convém notar que há um outro recurso bem menos mediático – a água – que, tudo indica, cuja escassez virá a tornar-se cada vez mais importante no futuro de certas zonas do mundo. A luta pela posse e gestão da água, em certas regiões, é já a luta do presente e sê-lo-á cada vez mais no futuro, nomeadamente se o ligarmos à questão do aquecimento global do planeta. Basta atentar no caso de Israel, no caso da desaparição progressiva do mar Aral, na seca progressiva de uma imensidão de lagos na Ásia, vitais para a sobrevivência das populações. Com a escassez da água, sem políticas de aproveitamento regional integrado, que hoje são impossíveis pelas conflitualidades existentes, vamos continuar a assistir a transferências forçadas de populações, com consequências em tensões étnicas, com reordenamento de territórios e com lutas pela posse de melhores terras. Este é um problema de segurança muito importante e, por vezes, não se fala nele quanto é devido.
Ainda no domínio ambiental, importa relembrar um tema de que cada vez mais se fala e que se mantém como uma ameaça para a segurança colectiva. Referimo-nos ao problema dos riscos nucleares – e não estamos ainda a abordar a questão da proliferação das armas nucleares.
O problema do estado de conservação de reactores nucleares na antiga União Soviética e em alguns países da Europa central e de Leste é um tema que, estando sob relativo controlo, não deixa de constituir uma preocupação constante. Chernobyl não foi há muito tempo, as suas sequelas estão aí e as dificuldades económicas que afectam os países proprietários de tais equipamentos continuam a configurar um risco para a segurança que não pode ser iludido. Ainda neste domínio, há que notar ainda o problema dos resíduos nucleares, muitos dos quais sem qualquer tratamento, espalhados pelos Estados em que se dividiu a União Soviética. Em algumas zonas da Ásia Central, esses detritos, por falta de adequada protecção, correm o risco de se transformar em catástrofes ambientais, se acaso houver grande pluviosidade e deslocação de terrenos. Todas essas situações estão inventariadas, mas há uma escassez de meios muito grande para intervir e, além disso, há uma falta de consciência pública local para a gravidade do problema.
Segurança político-militar
Um outro grupo de ameaças, prende-se com a persistência de factores de riscos de natureza político-militar.
Começaríamos pelas chamadas armas convencionais, havendo que subdividir esta realidade.
Uma coisa são as armas que ficam nas mãos dos Estados e dos respectivos exércitos e que estes se comprometem, quando comprometem, a sujeitar a processos de controlo.
É claro que aqui se coloca a questão da fiabilidade e do respeito pelos acordos internacionais de controlo de armamentos e de desarmamento, o que implica a transparência e a abertura de uns Estados ao escrutínio de outros, para acelerar a confiança mútua. E nem tudo corre bem neste âmbito: verificamos a ineficácia de diversos processos de recolha e destruição de excedentes de armas e um crescendo de preocupações quanto à protecção de depósitos e de arsenais de munições. Há ainda a notar a questão dos milhões de minas resultantes de conflitos, distribuídas por largas zonas do mundo - em especial, as chamadas minas anti-pessoal -, a qual constitui um elemento gerador de insegurança e inibidor do regresso de populações às suas terras no termo dos conflitos, com consequências trágicas para as pessoas e para a retoma da vida económica regular dos países.
Mas na questão dos armamentos convencionais, há um segundo tipo de problemas, que se liga com o seu acesso a mãos não-estatais, num processo que alguns já qualificaram como a “privatização da guerra”. Se os Estados podem, por princípio, ser responsabilizados pela posse e uso de armamentos, à luz das convenções internacionais, já o mesmo se não passa com os grupos não-estatais, sejam os que têm motivações políticas, sejam os que se situam em áreas do crime, sejam os que conjugam estas duas actividades. É a lei da selva que rege o funcionamento de tais grupos e essa é a razão pela qual existe hoje uma grande preocupação com o tema do tráfico ilícito de armas e pela falência de alguns processos de controlo de exportações de armamentos.
Ainda neste campo, há duas questões específicas que hoje preocupam a comunidade internacional.
A primeira diz respeito às as chamadas SALW (Small Arms and Light Weapons – armas ligeiras e de pequeno calibre), que são hoje objecto de uma campanha internacional para a respectiva recolha e controlo. Estas pequenas armas são uma dor de cabeça para as instituições internacionais e constituem risco imenso para a segurança dos cidadãos.
A segunda questão prende-se com a “democratização” do acesso aos chamados MANPADS (Man-Portable Air Defense Systems - Sistemas de defesa aérea transportáveis pelo homem – mísseis terra/ar). Se estas tecnologias vierem a cair em mãos erradas, está criado um risco imenso, por exemplo, para a segurança aérea civil.
Abordada a questão das armas convencionais, importa agora referir as famosas armas de destruição em massa, que vão desde as armas químicas e biológicas ao armamento nuclear tradicional. Quando se fala nos riscos da proliferação deste tipo de armas pensa-se sempre em Estados cuja credibilidade internacional recomenda que tudo se faça para que as não possuam e, do mesmo modo, da necessidade de evitar que os tais “actores não-estatais” as adquiram e possam utilizar.
Mas há uma realidade que convém lembrar porque, por vezes, é esquecida: a esmagadora maioria das armas de destruição em massa existentes à face da terra, qualquer que seja a sua natureza, está hoje na posse de respeitáveis potências - como os EUA, a Rússia, a Grã-Bretanha, a China ou a França, não por acaso, os cinco países que têm direito de veto no Conselho de Segurança da ONU. Neste caso, só podemos esperar que o bom senso, o controlo democrático e a mútua contenção dos respectivos dirigentes os iniba de utilizar tais armas. Mas está isto garantido, em todos aqueles Estados ?
Mas, quando falamos de armas nucleares, convém notar que há hoje outros países, como a Coreia do Norte, Israel, Índia e Paquistão, que as possuem, além de outros que detêm ou estão prestes a deter tecnologia e meios para as produzir, de que o caso do Irão é o mais abordado.
O famoso Tratado de Não-Proliferação Nuclear, que tão zeloso se tem mostrado, e com razão, para evitar a difusão de tais tipos de armamentos, não só não cobre a redução e destruição de todos arsenais nucleares conhecidos, como tem, por vezes, dois pesos e duas medidas em relação a alguns casos nacionais.
Mas uma realidade não pode ser iludida: o risco de armas de destruição em massa poderem cair nas mãos de agentes fora do controlo dos Estados constitui, talvez, a maior ameaça à segurança internacional dos nossos dias, o que justifica o carácter imperativo de um controlo internacional muito firme.
Conflitos regionais
Nesta listagem das ameaças à segurança internacional há que referir, pela sua real importância, os conflitos regionais que subsistem ou surgem pelo mundo. Tais conflitos constituem sérias ameaças à segurança das regiões onde se inserem e, muitas vezes - como é o caso do conflito israelo-palestiniano -, têm um impacto em equilíbrios políticos algo distantes das suas fronteiras.
Alguns desses conflitos estão praticamente “congelados”, como é hoje o caso das tensões no Cáucaso ou do conflito entre as duas Coreias. Outros emergem quase ciclicamente, como na Cachemira ou nos Grandes Lagos, com maior ou menor níveis de violência.
Em qualquer dos casos, estamos perante fenómenos que destroem vidas humanas ou infraestruturas, que ameaçam minorias e direitos fundamentais, quase sempre colocando uma pressão política sobre as sociedades que acaba por afectar o seu comportamento e suas credencias democráticas.
Convém, além disso, notar que estes conflitos são originários ou potenciam facilmente o extremismo, a violência sectária e, muitas vezes, acabam por arruinar as limitadas capacidades dos novos Estados para se organizarem enquanto entidades internacionais, conduzindo, por vezes, ao fenómeno dos chamados “Estados falhados” – entidades internacionais incapazes de exercerem em pleno as suas funções de soberania. Neste caso, verificamos que os abusos de poder, a corrupção e a fraqueza das instituições conduziu ao seu colapso, como vimos nos exemplos da Libéria, da Somália e do Afeganistão.
Combate à criminalidade organizada
Muitas vezes associados aos conflitos, aproveitando-se deles ou estimulando-os, assistimos à sedimentação de uma ameaça outra muito importante nos nossos dias: o crime organizado.
As últimas décadas registarem um crescimento exponencial deste tipo de actividade, sendo o caso mais notório o tráfico de drogas, mas igualmente de diamantes e de outros produtos raros. Mais recentemente, e aproveitando os espaços de livre circulação, de pessoas, bens e capitais, bem como as oportunidades criadas pela desregulação em certos Estados, como foi o caso do desmembramento da União Soviética, o crime organizado tem vindo a alargar as suas áreas de actividade. Assim, explora de forma intensa o rentável mercado do armamento, havendo preocupantes sinais de que está já no comércio de materiais e tecnologias sensíveis, nomeadamente tecnologias militares sofisticadas, com eventual inclusão de materiais químicos e nucleares.
No caso europeu, verifica-se também uma intervenção muito activa do crime organizado no tráfico de seres humanos, em especial mulheres, bem como a exploração de redes de imigração ilegal.
Finalmente, há que notar que começam também já a emergir sinais de pirataria marítima estruturada à escala internacional.
A interligação deste tipo de crime, internacionalizado ou globalizado, aos conflitos regionais e a modelos de acção violenta, nomeadamente aos grupos terroristas, converte-os numa ameaça que lhes altera a qualidade: deixam de ser meros crimes comuns para configurarem ameaças globais à segurança, pelo que importa que sejam tratados como tal. Os métodos sofisticados que hoje utiliza, bem como o recurso a modelos de branqueamento de capitais apoiados em áreas de actividade económica muito diversificadas, com recurso a off-shores e a outros paraísos fiscais, está a conduzir, como reacção, a acelerados esforços de aperfeiçoamento e cooperação judicial e policial à escala regional, como é o caso da União Europeia, bem como à cooperação institucional à escala internacional.
Combate ao terrorismo
Deixámos para o fim aquela que é hoje considerada a mais importante causa de instabilidade a nível mundial: as acções terroristas.
Tal como as restantes ameaças, o terrorismo não aparece com o 11 de Setembro. À época dos atentados nos EUA, havia 11 Convenções Internacionais fixadas no quadro das Nações Unidas, cada uma delas destinada a garantir a adesão dos vários Estados à luta contra um aspecto do terrorismo de natureza internacional. E não deixa de ser significativo que, precisamente nessa altura, se estivesse a discutir em Nova Iorque o texto de uma Convenção Global para o combate ao Terrorismo de natureza internacional. Esse texto nunca foi concluído nem aprovado, nem sequer após o trauma político do 11 de Setembro.
A razão desta não aprovação é tragicamente simples: nunca foi possível haver acordo sobre a definição geral do conceito de Terrorismo. É que embora hoje seja relativamente fácil ver este ou aquele acto designado como terrorista, a verdade é que ainda não há um consenso internacional na sua definição. E uma certa extrapolação no uso da designação de “terrorista”, com algum oportunismo político à mistura, tem vindo mesmo a revelar-se nefasta para uma mobilização geral da comunidade internacional em torno do combate aos actos terroristas.
Se não é possível definir com exactidão os actos terroristas, a verdade é que eles se identificam a si próprios na maioria dos casos. E há que encontrar formas sérias de os combater. O seu carácter assimétrico é uma das grandes dificuldades neste combate: o terrorismo actua com uma desproporção de meios e sem regras e os Estados são, em princípio, obrigados a reagir de acordo com padrões legais.
De facto, se defendemos princípios e uma ordem civilizacional de que nos orgulhamos, temos a obrigação de medir as nossas acções e reacções tendo em conta os Direitos Humanos e os princípios do Direito Internacional. Assim, há que explorar com rigor toda a panóplia de instrumentos ao dispor da comunidade internacional, nomeadamente as já referidas Convenções e Protocolos da ONU, bem como as resoluções do Conselho de Segurança, tal como aquelas que legitimaram, por exemplo, a intervenção no Afeganistão.
Desde o 11 de Setembro foi possível ir muito longe no desmantelamento de muitas das facilidades que os grupos terroristas dispunham no plano internacional. A desaparição dos seus santuários, o ataque às suas redes de apoio financeiro, a melhor colaboração entre os serviços de intelligence foram apenas algumas das medidas em que se deram passos muito importantes. Na União Europeia, por exemplo, foi possível desenvolver nos últimos três anos um formidável trabalho de cooperação policial e de cooperação judicial em matéria penal, impensável sem o efeito do 11 de Setembro.
Muito do que atrás se referiu como sendo a luta contra outro tipo de ameaças vem precisamente juntar-se à luta anti-terrorista – no combate à proliferação de armamentos, na luta contra fluxos migratórios hostis, no combate à criminalidade organizada, etc.
Mas há uma outra questão que não pode deixar de se referir: as chamadas raízes do terrorismo.
Quando se fala das raízes do terrorismo quer-se, a maioria das vezes, sublinhar a importância dos factores de conjuntura na criação de condições para o desenvolvimento desse modelo específico de violência. Neste texto já se falou neste texto do subdesenvolvimento, da pobreza, da exclusão social e do desemprego como factores de natureza económica que criam um campo fértil para as ideias extremistas, para aquilo que poderíamos designar como a “organização violenta do desespero”.
Mas há outras causas, para além das causas económicas: há situações sociais de discriminação, de abuso de poder, problemas políticos nacionais ou tensões regionais, situações de humilhação étnica, que facilitam o proselitismo ideológico que alimenta o recrutamento dos terroristas.
Os meios conservadores radicais internacionais, com seguidores zelosos em Portugal, criaram desde há muito uma espécie de discurso que reage, de forma quase policial, à simples invocação da noção das raízes do terrorismo, argumentando que isso funciona automaticamente como uma espécie de desculpa ou justificação para os actos terroristas. Nunca nos sentimos minimamente atemorizados por esse tipo de pressão psicológica.
Não procurar trabalhar a montante da criação dos movimentos terroristas é, na perspectiva que Portugal sempre defendeu nos fora multilaterais, uma cegueira política com consequências desastrosas.
Assim, repete-se, para o sucesso e legitimidade moral da luta contra o flagelo do terrorismo há dois aspectos que importa nunca descurar: a necessidade de atacar as fontes de injustiça que servem de terreno fértil para o recrutamento para acções terroristas e a necessidade de respeitar sempre os Direitos Humanos, mesmo os daqueles que agem de firma desumana. Essa será sempre a nossa superioridade ética.
O papel das Organizações Internacionais
Perante todo este conjunto de ameaças, cuja conjugação criou um tempo verdadeiramente novo na segurança colectiva, é importante observarmos o papel das organizações de natureza internacional, sejam elas de vocação universalista ou regional, sejam de natureza mais especializada ou tributárias de culturas estratégicas comuns.
Naturalmente que a primeira e natural reacção da comunidade internacional é olhar para as Nações Unidas, tidas como uma espécie de espelho institucional do mundo.
Porém, as Nações Unidas têm as suas limitações e essas limitações derivam do facto de, só muito escassamente, nelas ser possível encontrar um terreno consensual com verdadeira eficácia operativa, em especial perante casos que envolvam interesses das potências com poder decisivo na implementação das suas decisões.
Durante Guerra Fria, as Nações Unidas reflectiam quase caricaturalmente a tensão Estados Unidos – URSS e, por essa razão, eram o palco privilegiado da confrontação retórica internacional. No termo da tensão Leste-Oeste, verificou-se uma espécie de “lua de mel” que criou a ilusão de que, finalmente, estavam criadas as condições para que as Nações Unidas fossem o instrumento colectivo privilegiado em favor da paz e do progresso, recuperando um pouco a filosofia que dera origem à sua criação.
Esta ilusão acabou cedo. O facto dos EUA terem percebido, num momento único do seu poder a nível mundial, que as Nações Unidas não estavam disponíveis para serem uma mera câmara de eco da sua leitura da maneira de lidar com o mundo fez com que se desinteressassem regularmente da organização. Isso reflectiu-se na crise financeira no final da década de 90 e, de forma muito mais evidente, na forma como geriram o processo da segunda guerra contra o Iraque.
É importante realçar que as Nações Unidas estiveram, no essencial, em sintonia com os EUA na questão da mobilização internacional na luta contra o terrorismo, após o 11 de Setembro, e, posteriormente, na questão do ataque ao regime do Afeganistão, que acolhia os presumíveis responsáveis por tais atentados. Mas esta sintonia não se prolongou no caso iraquiano e aí, uma vez mais, os EUA optaram por se dissociar da ONU.
A experiência leva a concluir que, em especial nos últimos anos, o respeito americano pelas Nações Unidas varia na razão directa da utilidade que Washington dela consegue extrair para as suas finalidades. Estamos, assim, perante uma espécie de “multilateralismo utilitário” que se não deixa de se repercutir, de forma muito negativa, na credibilidade da organização.
Assim, parece-nos uma evidência que todo o esforço da comunidade internacional deve ser concentrado na necessidade de levar o Estados Unidos a colaborarem mais estreitamente com as Nações Unidas. Isso não pode significar colocar a agenda da ONU a reboque da vontade de Washington mas deve, na medida do possível, fazer compreender aos EUA que a necessária legitimação da sua própria autoridade moral no campo das liberdades – que é historicamente indiscutível – só pode fazer-se num quadro multilateral. Se para este esforço de convicção parecem irrelevantes os adversários dos EUA, já menos compreensível se torna quando Washington não toma atenção àquilo que os seus aliados lhe dizem.
Talvez as recentes lições do Iraque possam ajudar a mudar a vontade americana e a União Europeia poderá ter aqui um papel essencial, desde que consiga encontrar uma linha de rumo própria e ultrapasse as clivagens que a fragilizaram. Isso também testará o sucesso ou o insucesso da construção de uma política exterior comum europeia.
Mas a atitude americana face ao concerto multilateral não se esgota, infelizmente, na questão das Nações Unidas. Para além do caso do Protocolo de Quioto, sobre as emissões poluentes relevantes para as alterações climáticas, é lamentável que a actual administração americana recuse a adesão dos EUA ao Estatuto do TPI (Tribunal Penal Internacional), destinado a punir os crimes contra a humanidade, pretendendo isentar os seus cidadãos dessa jurisdição internacional. Se o fizesse, como o fizeram toda a União Europeia e muitas outras dezenas de países, o TPI poderia vir a converter-se numa força efectiva de dissuasão dos crimes mais graves do foro internacional, nomeadamente os crimes de natureza terrorista. Ao não fazê-lo, os EUA dão a sensação de desconfiarem da ordem jurídica internacional e criam a impressão, porventura errónea, de que pretendem instituir regras diferentes para si e para os outros, no plano mundial.
Outras estruturas de natureza internacional, para além da ONU e do TPI, podem também contribuir para o combate aos novos modelos de ameaça que afectam a sociedade contemporânea: a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), o Conselho da Europa, a Organização dos Estados Americanos (OEA), a NATO, a União Europeia, a Comunidade dos Estados Independentes (CEI), a União Africana, a Liga Árabe, o ASEAN e outras estruturas regionais ou sub-regionais são outras tantas organizações que é possível e desejável mobilizar para esta luta.
Mas, sejamos claros, sem umas Nações Unidas eficazes a acção dessas estruturas regionais não tem um mínimo de condições de sucesso.
Conclusões possíveis
Gostaríamos de terminar com uma síntese que, podendo não ser pacífica, é o corolário daquilo que atrás se referiu.
Assim, a nosso ver, as principais ameaças que impendem sobre a segurança internacional derivam da acumulação de cinco factores essenciais:
- da continuação da incapacidade da comunidade internacional para sustentar processos de desenvolvimento que possam atenuar as diferenças de rendimento entre as várias regiões, países e sectores sociais. Estão neste caso a criação de um quadro de aproveitamento mais justo das oportunidades criadas pela globalização, gerando condições de emprego, de formação técnico-educativa e de melhoria global das condições sociais e individuais de vida;
- de um ambiente internacional onde continuam a prevalecer considerações de ordem puramente estratégica, económica ou política, que faz com que regimes baseados em sistemas autoritários, com escassa legitimidade ou propensos a acções internacionais agressivas, em lugar de serem isolados e pressionados a mudar, acabem por ser apoiados militar e politicamente. Assim se prolongam focos de injustiça, se agravam tensões e se fomentam radicalismos;
- das dificuldades de consensualização de um quadro constrangente internacionalmente aceite, enquanto se mantiverem tentações de recurso a acções unilaterais, com modelos de intervenção cuja legitimidade possa ser posta em causa. Essa legitimidade, ou a falta dela, resultará sempre do necessário equilíbrio entre a eficácia operativa e a defesa e preservação dos princípios éticos em que a mesma se apoia, nomeadamente em matéria de observância dos Direitos Humanos, liberdade de opinião e respeito por quadros legais transparentes.
- da evidente fragilização do tecido institucional internacional, através de regular desrespeito pelos princípios do Direito Internacional, que resultam na progressiva inoperância e descredibilização das instituições colectivas. Desta forma se dá espaço a que os chamados actores políticos não-estatais explorem as falhas e incoerências do sistema de segurança colectivo e afirmem as suas agendas radicais.
- da procurada confusão, até de natureza semântica, entre as motivações subjacentes aos diversos conflitos existentes no contexto internacional, identificando grosseiramente os seus efeitos numa amálgama sem qualquer sofisticação em termos de análise. Isso favorece a tentação por uma acção repressiva automática e generalizada, cuja aplicação simplista prolonga injustiças e aprofunda mesmo alguns agravos.
Assim, a segurança colectiva continuará a estar em sério risco enquanto a comunidade internacional responsável – os países democráticos, defensores da tolerância e das liberdades – não adoptarem uma “diplomacia de princípios”. Essa prática tem de assentar na denúncia dos jogos cínicos de realpolitik, dessa forma garantindo uma incontestada legitimidade para pôr em prática um modelo comum de combate ideológico, político e militar às manifestações de violência marginal e desregrada.
A nosso ver, a União Europeia pode e deve vir a ter um papel central nesta promoção de uma diplomacia ética, porque representa uma cultura de valores de liberdade e comporta, no seu seio, países cujo relacionamento fora do quadro europeu é tributário de experiências históricas muito diversas.
A vitória no combate pela liberdade e pela democracia no plano mundial só pode ser sustentada através da vitória na luta de ideias, retirando aos extremistas o monopólio da sua representatividade das situações de desespero. É importante favorecer, com medidas económico-sociais e fórmulas políticas de justiça, a influência e o acesso ao poder de sectores não radicais, dando-lhes oportunidade de alargar a sua representatividade.
A História prova que só o bem-estar e a liberdade, que não existem sem a educação e a formação cívica, têm condições para forjar sociedades seguras e estáveis. Precisamente porque não vale a pena pensar que é dentro das nossas fronteiras que a segurança se constrói - porque já não há verdadeiras fronteiras - é que há que entender que temos cada vez mais de viver com todos, lado a lado, num mundo aberto, onde as diferenças sejam aceites – na etnia, na religião, na cultura, na língua.
No mundo globalizado, a única guerra justa é a guerra à intolerância: temos o direito e o dever de ser intolerantes perante a intolerância. Mesmo a dos nossos amigos.
OS ARGUMENTOS DO TERRORISMO
A reacção da comunidade internacional perante actos terroristas permanece marcada por um debate ideológico que, sendo importante como exercício político, reduz forçosamente o consenso em torno das medidas para lhes fazer face.
Uma certa direita abespinha-se quando alguém pretende trabalhar as raízes do terrorismo, sejam os quadros de exclusão social e política em que o mesmo prospera, sejam os conflitos regionais que ajudarão a potenciar a radicalização. Nela se encontram os que reagem belicosamente quando alguém coloca em causa a bondade da intervenção no Iraque ou questiona as conquistas estratégicas que Washington tem feito sob a capa da luta anti-terrorista. Para esses polícias do espírito, arguir com a injustiça da situação palestiniana ou com as ilegalidades face ao Direito Internacional, como elementos que têm que ser avaliados no quadro dos fundamentos da vaga terrorista, significa, de imediato, colocarmo-nos no universo da justificação, que o mesmo é dizer, ajudar a causa dos terroristas. Este “terrorismo” ideológico deve ser denunciado, sem contemplações, como um novo maccarthismo, porque as situações de injustiça ou de ilegalidade não deixam de o ser apenas pelo facto de terem sido recuperadas por uma agenda radical.
Alguma esquerda, por seu turno, numa obstinada cegueira anti-americana, esquece o carácter retrógrado da mensagem do islamismo radical, a imposição da sua mundividência que está subjacente às motivações terroristas e afasta, com uma facilidade pouco abonatória, o frontal questionamento face à natureza bárbara dos actos indiscriminados que ciclicamente atingem civis inocentes. Numa ambiguidade imperdoável, essa mesma esquerda esquiva-se a condenar liminarmente os actos terroristas, como que temendo que, ao fazê-lo, pudesse pôr em causa a legitimidade de outras reacções de natureza violenta, em casos extremos de lutas de libertação. Ao colocar a questão palestiniana, ou a presença estrangeira no Afeganistão ou no Iraque, como a directa essência justificativa do problema, esta doutrina parece esquecer que, mesmo que tais questões hoje se resolvessem, por um milagre que ninguém espera, as fontes da instabilidade islâmica radical iriam continuar, porque já adquiriram uma dinâmica própria que ultrapassa tais elementos conjunturais. Além disso, o facto de alguém se colocar contra os EUA, por muito desfavorável que possa ser a imagem da sua administração, não lhe confere um automático certificado de honorabilidade ou atenua qualquer culpabilidade, pelo que este maniqueísmo primário se torna igualmente inaceitável.
As recentes acções terroristas com alvos indiscriminados configuram um figurino novo de desestabilização, diferente das acções selectivas que predominaram no passado. E suscitam a grande questão que todos somos chamados a responder: estamos ou não dispostos a dar luta, política e prática, a uma agenda islâmica de assalto radical às sociedades seculares, que são a forma organizada de vida em que queremos assentar o nosso futuro?
Para além da necessidade de medidas de prevenção e combate aos actos terroristas, e mesmo com vista a conferir-lhes legitimidade, é importante chamar a racionalidade a terreiro e procurar saber se, à esquerda e à direita, estamos preparados para desenvolver uma acção política de promoção dos valores das sociedades laicas, das formas de expressão democrática para o exercício do poder político, de respeito pelo Estado de direito, de defesa dos direitos humanos internacionalmente consagrados, nomeadamente os direitos das mulheres e das minorias.
Esta é a questão essencial, para cuja resposta é também necessário que se ouça, mais alto do que se tem ouvido até agora, a voz do islamismo moderado, aquele que consiga conciliar o respeito por uma religião que é promotora de elevados valores éticos com a preservação das regras básicas de convivência e tolerância, próprias das sociedades modernas.
Este é o único debate ideológico que tem uma legitimidade incontroversa. Não perceber isto é contribuir para a nossa divisão e a nossa hesitação perante um adversário que põe em causa todos os modelos de sociedade onde hoje cabe, e queremos que continue a caber, a salutar confrontação política que só a democracia nos permite.
DIPLOMACIA E ÉTICA
PELA MÃO DE BOAVENTURA
Através do sugestivo título “Diplomortos e etnocêntricos”, o prof. Boaventura de Sousa Santos simplificou num texto a sua visão sobre os diplomatas portugueses, corpo profissional de cujos deméritos fez uma leitura impressionista, reflexo assumido de alguns contactos pessoais e, em especial, da ressaca de dois incidentes recentes que o tocaram. Para quem nos habituou ao rigor da análise e à objectividade da intervenção, convenhamos que terá havido alguma ligeireza metodológica e o recurso a uma generalização um tanto grosseira.
É difícil operar aqui, em escassas linhas, a desmontagem de um processo de denegrimento que se apoiou num inventário de acusações avulsas mas cumulativas: uma diplomacia “parada no tempo”, atrasada face “às exigências da globalização”, desatenta às correntes que combatem o eurocentrismo e abraçam o multiculturalismo, constituída por “pessoas muito conservadoras, etnocêntricas, pedantemente elitistas”, desinteressadas pelas Comunidades portuguesas, etc. Tudo isto para concluir “que o 25 de Abril ainda não chegou à diplomacia portuguesa”.
A acreditar no prof. Sousa Santos, a cultura de Steinbroken será ainda hoje a matriz referencial dos profissionais que as Necessidades enviam pelo mundo, dedicados à promoção de cocktails, ao cultivo da snobeira diletante, à produção de um discurso analítico perdido no tempo real, à marcação de uma confortável distância face aos problemas dos seus concidadãos expatriados. Enfim, uma profissão por onde se esvaem os bens do erário, sem glória nem préstimo.
Interessante será, todavia, constatar que esse mundo da diplomacia que o prof. Sousa Santos persistentemente frequenta, parece coexistir com o dos profissionais competentes que têm posto Portugal no mapa da promoção internacional dos Direitos Humanos, dos que esforçadamente conseguem conferir visibilidade e dinâmica diplomática à luta do povo timorense, dos que, em Kinshasa ou Bagdad, colocaram o serviço aos portugueses à frente da sua segurança pessoal.
Por esse azar que manifestamente o persegue, o prof. Sousa Santos não se terá também cruzado com quantos contribuíram para uma segura presidência portuguesa na Europa comunitária ou dos que souberam mobilizar uma campanha eficaz para colocar Portugal no Conselho de segurança da ONU.
Pena foi, também, que o prof. Sousa Santos não abandonasse por algum tempo o conforto dos Gerais e passasse uns dias, rodeado de metralhadoras e sons de bombas, no bunker que foi a nossa embaixada em Argel ou em que se converteu a missão portuguesa em Luanda após Bicesse, que desfrutasse por alguns meses do isolamento de um consulado em Benguela ou na Beira, que experimentasse os riscos da malária cerebral em S. Tomé ou a insegurança quotidiana de algumas capitais de cujo nome, como Cervantes fazia para certo lugar da Mancha, me não quero nem lembrar.
Se acaso tivesse ido um pouco mais longe nos contactos fortuitos que teve, talvez a formalidade se tivesse desvanecido e os diplomatas falassem ao prof. Sousa Santos das profissões que os cônjuges perderam ou atrasaram irremediavelmente para os acompanhar, do saltitar regular de escolas e de amigos que os seus filhos tiveram de enfrentar, das doenças e dos climas estranhos que são obrigados a suportar. E, quem sabe, talvez mesmo algum deixasse cair na conversa com o autor de “Pela mão de Alice”, com a ironia pontuada de prudência que a profissão ensina, uma fugaz referência à degradação relativa da sua carreira face a outros corpos especiais do Estado, como o professorado universitário. É que nem tudo são ainda rosas, no Portugal de Abril que eu e o prof. Sousa Santos coincidimos em apreciar.
DIPLOMATAS & CROQUETES
Iniciativas recentes ligadas à dimensão económica da política externa portuguesa deram azo, uma vez mais, a que os diplomatas fossem brindados com notas depreciativas na comunicação social. Até aqui, nada de novo: zurzir os diplomatas, tidos como um nicho aristocrático e snobe da administração pública, tem uma audiência garantida à partida, por razões que a psicologia do despeito também ajuda a explicar.
Não tendo dos meus colegas qualquer procuração, nem vocação particular para titular reacções corporativas, entendo ter o dever de lembrar – porque, aparentemente, ninguém o fez de forma clara - que os profissionais do Ministério dos Negócios Estrangeiros não nasceram hoje para a chamada diplomacia económica. E afirmar publicamente a dignidade de quantos, como eu, se não sentem representados pela caricatura da “diplomacia do croquete”, a menos que aí caibam (porque frequentemente tais croquetes são digeridos nesse âmbito…) as diligências políticas que os embaixadores portugueses continuam a efectuar diariamente pelo mundo, a solicitação dos nossos interesses empresariais.
Convirá, aliás, começar por nos entendermos quando falamos de “diplomacia económica”. Prevalece frequentemente a ideia simplista de a reduzir ao apoio político-diplomático aos agentes empresariais que actuam na área internacional (comércio de bens e serviços e promoção do investimento e turismo), bem como às acções para a captação de investimento directo estrangeiro para Portugal. Ora esta é apenas a definição da diplomacia de negócios.
Ninguém mais dos que os profissionais do MNE tem interesse em ver reforçadas as condições funcionais que permitam melhorar a eficácia do trabalho que o ministério sempre desenvolveu nesse contexto, quando para tal solicitado. É essencial, contudo, que haja uma definição de linhas incontroversas de autoridade institucional interdepartamental, o estabelecimento de uma formação técnica contínua dos seus quadros e a dotação dos serviços com os necessários recursos humanos, técnicos e financeiros, se se pretender que esse trabalho evolua para um diferente patamar de especialização. A partir daí, qualquer gestão por objectivos será sempre mais do que bem-vinda pelos diplomatas.
Mas convirá notar, para quem não saiba ou possa entretanto ter esquecido, que a diplomacia de negócios está muito longe de esgotar o conceito de diplomacia económica. Com escassas excepções no domínio financeiro, o MNE assumiu, desde sempre, a direcção de praticamente todas as negociações internacionais relevantes na área económica, quer no plano bilateral, quer multilateral – neste caso, no âmbito das Nações Unidas, da EFTA, do GATT/OMC, da OCDE ou da CEE/UE. E sempre com uma eficácia técnica que nunca se viu contestada seriamente por ninguém. Por exemplo, quem, senão o MNE, coordenou as negociações económico-financeiras de onde derivaram os três Quadros Comunitários de Apoio que beneficiaram Portugal?
Por outro lado, a ideia de que os profissionais do MNE dão prioridade à “política”, entretendo-se na elaboração de especulações analíticas destinadas a arquivos, ignora que o mundo e a vida internacionais ainda são algo mais do que a economia, se bem que essa evidência pareça hoje escapar a alguns neo-fascinados pelos cifrões. E Timor ? E as questões de segurança e defesa ? E as relações com os PALOP ? E a ajuda pública ao desenvolvimento ? E as negociações institucionais europeias ? E a coordenação do ensino e dos leitorados no estrangeiro ? E a gestão da imensa rede consular ?
Neste tempo em que parece prevalecer uma cultura de diabolização do serviço público, está criado um terreno fácil para se projectar uma sombra de dúvida sobre o empenhamento e a qualificação profissional de diplomatas, técnicos e quadros administrativos do MNE, os quais, na sua grande maioria e em condições de trabalho muitas vezes difíceis, têm dado provas de grande dedicação aos interesses do país. Mais uma razão para assumir o risco de afrontar l’air du temps e tentar preservar essa coisa simples, mas essencial, que é a verdade das coisas. Doa a quem doer.
LUGARES DA MEMÓRIA
O DIA EM QUE SE PERDERAM ANOS
“Pela cor do fumo, deve tratar-se de um incêndio”, comento para o meu motorista, ao ver uma pequena nuvem negra, estranhamente alta, ao sul de Manhattan, caminhando de Oeste para Leste. Circulamos no FDR drive, a via rápida que acompanha a margem ocidental da ilha que é o coração de Nova Iorque. Devem faltar três ou quatro minutos para as nove horas, início da reunião dos Representantes Permanentes dos países da União Europeia, que tem lugar todas as terças-feiras num prédio em frente da ONU. À entrada, o meu colega francês, Jean-David Levitte, fala-me de um incêndio no World Trade Center. O inglês, Jeremy Greenstock, que vem atrás, está melhor informado: um avião colidiu com uma das torres. Sem excluir nada, o acidente é a hipótese implicitamente assumida por todos como mais plausível.
Já no 6º andar do edifício, a caminho da reunião, vemos imagens na televisão: chamas e fumo. Minutos depois, um colaborador meu, que permanece junto ao televisor, vem chamar-me: um outro avião embateu na segunda torre. Regresso à sala, onde os trabalhos já começaram, e informo os colegas ao meu lado. Trata-se, sem dúvida, de atentados, mas não temos a menor ideia sobre o tipo de aviões utilizados. Porém, não nos passa pela cabeça que os incêndios não possam ser debelados, embora assumamos que deva haver um número importante de vítimas. O colapso das torres não é sequer, naquele momento, hipótese imaginável.
Vi as torres do World Trade Center, pela primeira vez, em finais de 1972, na minha primeira visita a Nova Iorque. Fui ao topo de uma delas três vezes, a última das quais em Junho de 2001, com o meu Pai. Na noite de ontem, o José Manuel dos Santos esteve a jantar no “Windows of the World”, o restaurante no alto de uma das torres, e telefonou-nos durante a tarde a anunciar o evento. Ainda nessa mesma noite, cerca das 11 e meia, ao regressar do lançamento oficial do jornal “24 Horas”, em Newark, o meu motorista convenceu-me a ir pelo Lincoln Tunnel (eu havia-lhe sugerido irmos pela Washington Bridge, para fugir ao trânsito), dado que estava uma noite excelente, o que permitia uma vista gloriosa das torres iluminadas – fico a dever ao Ismael essa derradeira perspectiva do skyline de Manhathan.
Numa olímpica inconsciência, a reunião dos embaixadores comunitários prossegue, tendo a “Cimeira da Criança” na agenda de prioridades. Cerca das nove e meia, um papel circula: um terceiro avião ter-se-á despenhado no Pentágono. Surpreendentemente, a presidência da União Europeia não toma a iniciativa de suspender a reunião e nenhum de nós o sugere. A reunião acaba às 10 horas. Estava previsto que o “sino da paz”, oferecido em tempos pelo Japão à ONU, tocasse no seu jardim, como é da tradição, para anunciar a data de início da nova Assembleia Geral anual, a ter lugar precisamente nesse dia. Saio da sala com a colega dinamarquesa e com Levitte, a caminho da cerimónia. Comentamos, com generalidades, a gravidade já pressentida dos acontecimentos.
Chegados à rua, damo-nos conta que o mundo tinha, entretanto, mudado, muito mais do que nós supúnhamos. Havíamos estado numa patética redoma durante a última hora. À distância, tenho que confessar que não fico nada orgulhoso por ter participado nesse exercício de cegueira colectiva.
Verificamos que o edifício das Nações Unidas está já praticamente evacuado. A circulação na 1ª Avenida foi suspensa. As pessoas param e sentam-se nos passeios, com caras de espanto e de inquietação.
Dirijo-me à Missão de Portugal, na 2ª Avenida, a 200 metros de distância. A maioria dos funcionários está na sala de reuniões, onde há um aparelho de televisão. A situação agrava-se a olhos vistos, os incêndios não parecem controláveis e a expectativa de haver muitas vítimas é cada vez mais clara. A consternação e a emoção são gerais, os comentários interrogativos sobre o futuro são crescentes e há lágrimas em muitos olhos. Que mais pode acontecer? Que outros riscos existem? Soube-se, entretanto, do quarto avião, despenhado na Pensilvânia.
Fecho-me só no gabinete, para pensar um pouco no que fazer, com a CNN em fundo. A pausa dura apenas escassos minutos. No meio do ambiente de tensão que se vivia, é-me anunciada a chegada do Embaixador da Islândia. Volto a protagonista de uma cena quase surrealista. Como havíamos combinado dias antes, vem pontualmente às 10 e meia ... para discutir a questão da rotação de candidaturas na Comissão dos Direitos do Homem! Delicada mas penosamente, deixo-o iniciar a conversa, com a cabeça já algures. À terceira ou quarta interrupção por telefonemas, ambos assumimos, finalmente, que o ambiente não está para business as usual e concordamos em adiar o encontro.
Entretanto, a primeira torre cai. A dimensão da tragédia adensa-se rapidamente. A perspectiva de cidadãos portugueses estarem entre as vítimas (que eu, um tanto inconscientemente mas com infeliz precisão, já digo para uma televisão portuguesa que podem ser milhares) mobiliza, como é natural, os inúmeros contactos feitos pela comunicação social nacional. Na realidade, nada se sabe por ora. Em Lisboa ou Nova Iorque, todos somos simples membros da “geração CNN”. Nas minhas intervenções, com voz nas rádios e nas televisões nacionais que me procuram, tento adoptar um tom de procurada serenidade, assumindo sempre que, em qualquer caso, nunca haverá muitos nacionais portugueses envolvidos (recordo ter verificado que as visitas de turistas não se tinham ainda iniciado, à hora dos atentados). Remeto as precisões para o Consulado-Geral e para a embaixada em Washington, mais por uma questão formal do que pela convicção de que possam saber algo mais do que eu.
Os telefonemas de Portugal sucedem-se: os nossos familiares e a comunicação social. E também o Presidente da República, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e o Secretário-geral do MNE – os representantes oficiais portugueses que nos contactam a manifestar a sua simpática preocupação pelo nosso bem-estar. Por uma avaria da empresa dos telefones, com a central junto às Torres, que demoraria muitos dias a ser rectificada, vamos ficando sem linhas de acesso ao exterior, o que nos obriga a aproveitar as chamadas recebidas para pedir que sejam transmitidas mensagens de acalmia aos nossos familiares. Aproveito uma conversa com uma jornalista do Expresso para pedir que seja contactado o meu Pai. Nunca lhe agradeci o modo delicado e sereno como o fez.
Sou informado que as escolas em Nova Iorque estão a encerrar e digo aos funcionários com filhos para irem para casa. Pouco depois, corre a notícia que a ilha de Manhattan vai ser isolada; os restantes funcionários que vivem fora da ilha – a grande maioria do pessoal administrativo - são autorizados a regressar rapidamente às suas casas, onde acabarão por ficar vários dias, dada a permanência das restrições.
As ruas, antes com imensas pessoas em conversas que se adivinham de catarse colectiva, começam agora a ficar vazias e silenciosas, se excluirmos as sirenes de ambulâncias e dos carros de bombeiros, mas essas já parte do cenário acústico nova-iorquino normal. Cada vez se vêem menos viaturas particulares. As restrições de circulação anunciam-se progressivamente rigorosas.
Com o pessoal administrativo e os funcionários com família já fora, a Missão está quase deserta. Os poucos que ficamos, estamos de piquete aos telefones que ainda funcionam - do embaixador ao Conselheiro Militar, num ambiente que se vai prolongar por vários dias. Às 7 da tarde (meia-noite de Lisboa), dou ordem para encerrar a Missão. Só então noto que não comi nada desde manhã.
Regresso a casa, onde a minha mulher passou o dia, como todos nós, em frente do televisor, o que vai ser a nossa sina nos dias que se seguirão. Acabará por ser ela a descobrir, através da informação de uma cadeia de televisão, que ambos, precisamente na 6ª feira e o sábado anteriores, havíamos pernoitado no hotel de Boston que foi utilizado pelos responsáveis de um dos atentados - o “Westin Hotel”. Confesso que não pude evitar uma viagem retrospectiva, embora sem sucesso, pela memória das caras que encontrámos nos corredores.
As imagens das torres em chamas continuam a ser repetidas à exaustão em todos os canais, os comentários dos especialistas esgotam o universo das hipóteses, os súbitos “peritos” na actualidade iniciam os seus meses de glória, muitas vezes num mero débito de platitudes e de lugares-comuns.
A onda de comentários que as televisões nos traz não deixa margem para dúvidas sobre o que aí vem. O desespero, a raiva e a vontade de vingança sobrepõem-se, sem apelo, a qualquer juízo de racionalidade. Não estou surpreendido. Falar simplesmente de justiça, ligar circunstâncias ou tentar enveredar pela explicação de algumas coisas passou, de repente, a ser incorrecto, porque não joga com o discurso maniqueu em que se apoia o jingoísmo já dominante. Dias mais tarde, vou descobrir que, na comunicação social portuguesa, o tom dos “especialistas” domésticos vai também, quase sempre, no mesmo sentido. A imprensa trar-nos-á, durante as semanas seguintes, alguns exemplares de ferozes exegetas críticos da heterodoxia. As Nações Unidas também não vão ficar imunes, por algum tempo, a esta vaga.
Depois de muitas horas passadas a reagir e a lançar hipóteses “a quente”, procuro parar um pouco para pensar. Alinho os factos, tento deduzir as consequências imediatas nas várias dimensões do problema e perspectivar linhas para participar na reacção colectiva que terá que ter lugar no âmbito das Nações Unidas. Estou praticamente sem comunicações com Lisboa, mas é óbvio que não necessito de quaisquer instruções para assumir posições nesta matéria em nome de Portugal.
Deito-me já de madrugada, depois de algumas horas de zapping televisivo. Foi um dia longo e pesado, um dia bem triste. Um dia que fez perder ao mundo bastantes anos. Agora, tudo vai ser mais difícil.
DUAS CIDADES
O 11 de Setembro de 2001 não derrubou apenas o World Trade Center e uma ala do Pentágono. Fez ruir também o sentimento de confiança que a América mantinha na sua própria intocabilidade, com profundas consequências no modo como a maior potência olha hoje o mundo e o seu papel dentro dele.
Uma das grandes linhas divisivas que afectam a política mundial prende-se precisamente com a impossibilidade, para a Europa, de interiorizar o sentimento de profunda angústia que hoje atravessa a América, face à sua inesperada impotência perante perigos de contorno desconhecido. E isso tem consequências com expressão política, num país onde a agenda pública segue de muito perto o sentimento colectivo, muito em especial quando este coincide com os grandes interesses estratégicos.
Desde há muito, a Europa habituou-se a viver com o perigo. Teve duas guerras trágicas no seu seio, sofreu o nazi-fascismo, os temores da Guerra Fria e os “anos de chumbo” das acções radicais extremistas. Os europeus têm consciência da sua própria fragilidade, mas convivem com ela com alguma naturalidade.
Para os Estados Unidos, o mundo exterior sempre fora um lugar perigoso, de que faziam uma caricatura à medida das suas vivências internas. E se a segurança interna não conseguira prever alguns actos tresloucados, os riscos políticos profundos estavam afastados do quadro de probabilidades, com a rede securitária concentrada na criminalidade, com a droga como inimigo público.
Tive a experiência de viver em Nova Iorque, antes e depois do 11 de Setembro. É sabido não ser a cidade americana típica. Alguém dizia que os europeus sempre tiveram Nova Iorque como a sua principal imagem da América, enquanto, pelo contrário, para a generalidade dos americanos, aquela cidade aparece já como uma espécie de primeira aproximação à vida europeia. Mas, talvez por isso, estando Nova Iorque “mais próxima” de nós, talvez a mudança da atitude de vida nessa cidade nos seja mais perceptível. E a ideia que me ficou do pré e do pós-11 de Setembro é que vivi em duas cidades diferentes.
Fui a Nova Iorque, pela primeira vez, com 24 anos de idade, como opção de férias após o primeiro ano de emprego público. Uma das torres do World Trade Center estava por acabar. Daí para cá, visitei a cidade muitas vezes, dela sempre recolhendo a mesma matriz trepidante, palco da ambição individual, de alguma agressividade egoísta, mas com uma indefinível cordialidade, com a assunção de um escasso número de regras de convivência urbana como chave para nos sentirmos em casa.
Em 2001, quando fui viver para Nova Iorque, a cidade recuperara o usufruto pleno de muitas zonas para os seus cidadãos, por virtude da queda do desemprego e de um eficaz combate à criminalidade. Passear à noite, em antigas no-go areas, tornou-se rotina. Restaurantes e galerias apareciam e desapareciam no West Village e em Chelsea, com as esplanadas cheias e um ar de prosperidade geral, embora distante do auge do Nasdaq.
Como em todas as sociedades em que a precariedade do vínculo laboral é a lei que reflecte as crises, Nova Iorque reagiu ao 11 de Setembro com brutalidade. Desemprego, encerramento de actividades e retracção de consumo, com a queda vertical do turismo e o afundar temporário da Broadway.
E, também, com a emergência da angústia com a segurança, que nunca mais terminou. Foram os tempos do antrax, das ameaças constantes das dirty bombs. Os nova-iorquinos passaram à “vigilância popular”, a olhar o vizinho, o “diferente” como uma ameaça potencial. O uso da bandeira americana passou a factor de credibilitação, nas lapelas, nas portas ou nas montras, com os não seguidores da regra a serem vistos com anti-patriotas. O nine-eleven (fórmula americana para o 11 de Setembro), o terrorismo, Bin-Laden e Al-Queda monopolizaram os discursos, com uma comunicação social marcada por um nacionalismo beligerante que abafava reticências.
Com o 11 de Setembro, aprendi que os americanos estão dispostos a sacrificar o mais sagrado da sua liberdade – e poucos povos haverá com um sentimento de liberdade mais arreigado – em favor da restauração, ainda que limitada ou mesmo virtual, da sua própria segurança. Por muitos e menos bons tempos, a América está prisioneira de si própria, pelo temor e pela desconfiança. Mas América que eu conheço e admiro vai, estou certo, conseguir fazer sair o país desta psicose colectiva. E todos ganharemos com isso.
UM HOMEM PARA TODOS OS DESAFIOS
“Você sabe, Francisco, só me aparecem desafios que não consigo recusar!” – foi a frase que retive da última conversa com Sérgio Vieira de Mello, quando lhe telefonei a desejar sucesso para a sua nova missão em Bagdad. Ironizámos então com o facto de Paul Bremer, o administrador americano no Iraque, com quem Sérgio teria que se articular, ter coincidido comigo em posto diplomático na Noruega, nos idos de 70: prontifiquei-me para "meter uma cunha”, se ele precisasse…
Só conheci pessoalmente Vieira de Mello em Setembro de 1999, quando o protocolo nos sentou lado-a-lado, num almoço na ONU. Acabara, há pouco, a sua missão nos Balcãs e entre nós passou, de imediato, uma corrente de empatia luso-brasileira, logo cimentada pelo mútuo culto do humor. Recordo-me de termos falado da possibilidade de ele chefiar a nova missão da ONU em Timor, ainda semanas antes de Kofi Annan lhe propor o lugar. Eu não tinha a pretensão de estar a ser presciente: limitava-me a ecoar o nome prestigiado que circulava já por alguns corredores, afirmando-lhe a certeza antecipada de que o Governo português o acolheria com muito agrado. Na altura, Sérgio retorquiu-me, com o seu sorriso confiante, que não, que “ia precisar de algum tempo para descansar”. Felizmente, isso acabou por não acontecer.
Sérgio Vieira de Mello fez em Timor um trabalho notável, como várias vezes tive ocasião de referir, em nome de Portugal, em intervenções no Conselho de Segurança da ONU. E – confesso – fi-lo com uma sinceridade que nem sempre é regra nos discursos oficiais. Com ele combinei, nas derradeiras fases do processo pré-independência, o tom comum das nossas intervenções em Nova Iorque, por forma a garantir o apoio que o secretário-geral da ONU e o Governo português entendiam necessário que fosse dado aos timorenses pela comunidade internacional, nos difíceis anos que se seguiriam. Recordo também os pedidos que fez, por meu intermédio, para que Portugal “deixasse cair”, a nível adequado, palavras de acalmia e bom-senso junto de responsáveis políticos de Timor, a fim de atenuar alguns litígios menores, mas que ameaçavam a estabilidade do processo interno.
Em Novembro de 2002, convidei Sérgio Vieira de Mello para vir a Viena, falar ao Conselho Permanente da OSCE, já na sua qualidade de Alto-Comissário da ONU para os Direitos Humanos. Foi uma sessão memorável, que gerou um debate interessantíssimo em que o à-vontade diplomático de Sérgio sublinhou o seu profundo conhecimento da situação internacional. Mas que também revelou a firmeza das suas convicções. No almoço que se seguiu, e perante uma observação mais tensa avançada pelo meu colega americano, não deixou de lhe recordar que os prisioneiros de Guantanamo “não vivem na Lua” e que, também a eles, se deviam aplicar, em pleno, “todos os Direitos Humanos devidos aos cidadãos da Terra”.
Nesta hora de sucesso da barbárie e de trágico equívoco sobre o papel da ONU no Iraque, muitas loas são ditas sobre Sérgio Vieira de Mello, a maioria genuínas, algumas na busca de dividendos para certas agendas. Eu digo apenas que perdi um amigo, por quem tinha imenso respeito e admiração. A comunidade internacional perde um infatigável construtor da Paz, um possível sucessor de Kofi Annan, um homem que há muito havia entendido que o multilateralismo constitui o único fundamento de legitimidade para uma ordem internacional solidária e justa.
COM OLHOS EM GAZA
A face pálida de Yasser Arafat tornou-se ainda mais lívida, ao ouvir o colaborador que interrompeu bruscamente a conversa que o presidente da Autoridade Palestiniana mantinha com Mário Soares, na minha presença. Arafat balbuciou qualquer coisa e saiu, apressado, para uma sala ao lado, deixando-nos a conjecturar sobre o que tanto o perturbara. Quando regressou, denotava uma imensa preocupação: Shimon Peres, então ministro dos Negócios Estrangeiros de Israel, acabara de lhe confirmar que, pouco antes, o primeiro-ministro Itzhak Rabin havia sido alvejado num comício em Tel-Aviv. Não se conheciam ainda pormenores sobre o seu estado. Sem o dizermos, o cenário de um atentado de autoria palestiniana atravessou-nos a todos. Minutos mais tarde, veio a saber-se que o autor dos disparos fora, afinal, um judeu radical e que Rabin, entretanto, morrera.
Estávamos em Gaza, em 5 de Novembro de 1995, após um jantar oficial, regressados à guest house da Autoridade Palestiniana, numa inédita visita do Presidente da República portuguesa iniciada nessa tarde, que eu acompanhava em substituição de Jaime Gama. A simpatia por Portugal e o imenso respeito de Arafat por Mário Soares ficaram patentes em vários gestos, desde a nossa chegada. O líder palestiniano fazia questão de recordar a atitude corajosa e solidária de Soares quando, anos antes, este fora visitá-lo a Beirute, sob fogo, durante o cerco sofrido pelas forças da Al Fatah.
A comitiva portuguesa saíra de Jerusalém, nessa manhã, após uma visita oficial de três dias a Israel. A presença do presidente português ficara marcada pela contínua expressão da amizade e admiração de Itzhak Rabin e de Shimon Peres, que viam em Mário Soares, simultaneamente, um sólido amigo de Israel e um militante pela reconciliação no Médio Oriente, defensor dos direitos do povo palestiniano. Viviam-se os tempos de esperança posteriores aos Acordos de Oslo e Washington e, a avaliar pelas medidas de segurança excepcionais que rodeavam Rabin, que haviam obrigado a súbitas mudanças do programa, pressentiam-se os riscos que o primeiro-ministro israelita estaria a correr para forçar, de uma vez por todas, as portas da paz possível. Mas estávamos muito longe de pressentir a tragédia.
Arafat despediu-se de nós, nessa noite, com uma sombra triste no olhar que não perderia na manhã seguinte, quando abreviámos a visita, para nos deslocarmos ao funeral de Rabin. Acto a que ele, contudo, não pôde assistir, como desejaria. Recordo as palavras trocadas entre Soares e Arafat, no momento da nossa saída de Gaza. Do pesar que ambos sentiam pela desaparição de Rabin ressaltava a consciência mútua de que nada voltaria a ser igual no destino daquilo a que então se chamava o Processo de Paz do Médio Oriente.
Voltei a encontrar Arafat algumas outras vezes - em Barcelona, em Malta, em Bruxelas e em Nova Iorque. Sem excepção, perguntava-me sempre pelo seu "amigo Mário Soares" e teimava em relembrar, na sua voz cada vez mais trémula, aquela noite em Gaza, que lhe deve ter ficado na memória dos seus sonhos perdidos de uma Palestina livre.
Yasser Arafat cometeu, nos anos que se seguiram, uma imensidão de erros políticos, imerso numa conjuntura em que se deixou enredar, em que o radicalismo tomou conta dos acontecimentos, de um lado e do outro de uma barricada de ódio, hoje ironicamente simbolizada num muro real de incompreensão. O conflito israelo-palestiniano converteu-se, entretanto, numa imolação de inocentes, numa bola de neve de violência e de terror, com que já convivemos sem espanto, à vista do cinismo estratégico dos feiticeiros da realpolitik, da cobardia complacente de alguns e da fraternidade hipócrita de outros. O mundo tarda em perceber que, graças à aliança objectiva de messianismos contraditórios, alimentados pelo desespero e pelo fanatismo, se ateou a partir das margens do Jordão, à vista de todos, um incêndio imenso, que não pára de estender-se e que está, cada vez mais, longe de ser debelado, ardendo como o petróleo que lhe alimenta as raízes.
Em 5 de Novembro de 1995, morreu Itzhak Rabin. O ocaso de Yasser Arafat começou na mesma data, precisamente nove anos depois. Esta coincidência sela o destino trágico dos dois homens que mais perto estiveram de obter a paz para os seus povos.
Versões anteriores de textos incluídos no presente volume
Portugal e o Tratado Constitucional, in “Relações Internacionais”, nº 2, Lisboa, 2004
O Alargamento e a Política Exterior Europeia, in “Europa – Novas Fronteiras”, nº 15, Lisboa, 2004
Portugal e a PESC, in “Janus 2006 – Anuário de Relações Internacionais”, Lisboa, 2005
O ”Amigo Americano”, in Egoísta, nº 16, Lisboa, 2004
A Europa nas Nações Unidas, in “A União Europeia: os caminhos depois de Nice”, Coimbra, 2002
A Crise do Multilateralismo, in “Janus 2004 – Anuário de Relações Exteriores”, Lisboa, 2003
A OSCE e a Segurança Europeia, in “Negócios Estrangeiros”, nº 7, Lisboa, 2004
As Novas Fronteiras da Rússia, in “O Mundo em Português”, nº 53, Lisboa, 2004
As Novas Ameaças à Segurança, in “Revista Militar”, nº 2441, 2005
Os Argumentos do Terrorismo, in “Diário de Notícias”, 29.7.2005
Pela mão de Boaventura, in “Visão”, 24.7.1997
Diplomatas & Croquetes, in “Público”, 16.1.2003
Duas cidades, in “Jornal de Notícias”, 11.9.2003
Um homem para todos os desafios, in “Diário de Notícias”, 21.8.2003
Com olhos em Gaza, in “Público”, 7.9.2004
Francisco Seixas da Costa nasceu em Vila Real, em 1948. É embaixador de Portugal no Brasil, depois de ter desempenhado idênticas funções junto da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova Iorque, e da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em Viena. Foi Secretário de Estado dos Assuntos Europeus, entre 1995 e 2001. Publicou “Diplomacia Europeia – instituições, alargamento e o futuro da União” (Publicações Dom Quixote, 2002).
Esta obra de Francisco Seixas da Costa oferece a sua visão pessoal sobre a mais actual temática europeia e as grandes questões da segurança e da ordem internacional, complementada com notas sobre a função diplomática portuguesa, e a respectiva ética, bem como apontamentos sobre tempos determinantes da história contemporânea, colectados da experiência profissional do autor.
Este inovador olhar português, que se assume como não oficioso nem de ruptura, pretende-se, contudo, “uma segunda opinião” sobre algumas realidades essenciais à construção de um novo tipo de afirmação externa de Portugal. Como o autor adianta na sua introdução, “perante os novos desafios da sociedade internacional, o nosso país tem rapidamente de entender que a simples repetição obsessiva de um paradigma diplomático, por muito coerente que ele se nos apresente, não substitui a importância de saber construir uma política externa pró-activa, que saiba adaptar-se às mudanças no cenário global e que possa, a cada momento, interpretar e reflectir os interesses que compete ao país defender nesse domínio. Não perceber a diferença entre as duas coisas, como frequentemente se vê, é condenar Portugal à irrelevância no quadro internacional ou, pior ainda, à dependência de estratégias alheias, em cuja definição só simbolicamente participamos. O que só contribui para aumentar ilusões e mitos sobre o real papel do nosso país no mundo”.
[1] “EU countries nearly always tend to vote in the same way in the UN General Assembly, or adopt a similar line in the UN’s functional organizations (nuclear issues are an exception)”, in Steven Everts, Shaping a Credible EU Foreign Policy, Centre for European Reform, London, 2002, pg. 18. O mais completo estudo que conhecemos sobre os padrões de desvio, entre os países UE, no quadro das votações nas NU é de Paul Liuf, The EU starts to find its voice in New York, “European Affairs”, Summer/Fall 2003, Washington.
[2] Situação bem diferente é aquela em que a Comissão Europeia dispõe de competência própria no plano internacional. Nestes casos, a intervenção da União Europeia, através da Comissão, em diversas estruturas do quadro alargado das Nações Unidas, é, de há muito, uma realidade.
[3] A Comissão Europeia dispõe, não obstante o seu limitado papel no âmbito das NU, de uma significativa presença em Genebra, em Nova Iorque e em Viena, no primeiro dos casos com um papel muito importante junto de agências das NU ou outras organizações internacionais. Em contraste, o Secretariado-Geral do Conselho tem apenas uma reduzida presença nas duas primeiras cidades. O texto da Constituição Europeia permitiria superar este problema e alguma rivalidade corporativa que actualmente se manifesta entre as duas estruturas.
[4] Mecanismo permanente de consulta e concertação política, criado em 1986, que reúne Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Panamá, Paraguai, Peru, Venezuela, Uruguai e um representante da Comunidade do Caribe/CARICOM
[5] Grupo de 17 países exportadores de produtos agrícolas que inclui Estados da América Latina, África e Ásia-Pacífico, como o Canadá, Brasil, Argentina, África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, etc.
[6] Fazem actualmente parte da OSCE todos os países europeus, os EUA, o Canadá e a totalidade dos Estados, mesmo os asiáticos, que emergiram da divisão da antiga URSS.
[7] Em 2004, o Secretariado e as três instituições da OSCE dispunham de menos de 400 funcionários permanentes. Nas Missões no terreno havia cerca de 1000 funcionários internacionais, a maioria dos quais destacados (seconded) pelos Estados participantes, a que se somavam cerca de 2500 funcionários recrutados localmente.
[8] O Tratado sobre as Forças Convencionais na Europa (CFE) foi assinado na Cimeira de Paris, em 1990, tendo entrado em vigor em 1992. Sempre considerado como um dos documentos mais importantes negociados no seio da organização – porque juridicamente vinculativo –, o Tratado CFE permitiu a destruição de mais de 60 mil peças de armamento, na sua grande maioria provenientes da antiga URSS e dos países do antigo Pacto de Varsóvia. Dada a necessidade da sua actualização, viria a ser assinado na Cimeira de Istambul, em 1999, o chamado Tratado CFE Adaptado, que até hoje não entrou em vigor por divergências de diversa ordem.
[9] CSBM - Confidence and Security Building Measures. Sobre este assunto, ver Francisco Seixas da Costa, “The OSCE Confidence and Security Building Measures”, in Aplicability of OSCE CSBM’s in Northeast Asia Revisited, ed. Institute of Foreign Affairs and National Security, Seoul, 2003
[10] Os EUA são o único Estado participante que recusa a conceder à OSCE personalidade jurídica plena no plano internacional.
[11] Na cimeira de Istambul, em 1999, a Rússia comprometeu-se a retirar de algumas bases militares que dispunha no território da Geórgia e a destruir armamento e munições que mantinha na região transnístria da Moldávia, até ao fim de 2002. Com argumentos diferentes, tais “Compromissos” não foram, na sua grande maioria, cumpridos e uma nova data – até ao final de 2003 – ficou estabelecida na reunião ministerial do Porto, em 2002. Embora verificada a persistência do incumprimento dos “Compromissos” no termo do novo prazo, durante o Conselho Ministerial da OSCE em Maastricht, em Dezembro de 2003, a Rússia recusou então aceitar uma renovação daqueles mesmos “Compromissos”, em termos que os países ocidentais, em especial os EUA, pretendiam mais constrangentes do que os acordados no Porto, no ano anterior. De certo modo, a Rússia quer significar que não tem obrigação de cumprir tais “Compromissos” – que entende como um mero acordo político - antes que os países ocidentais ratifiquem o Tratado CFE Adaptado e, em particular, que a ele adiram os países bálticos. Os países da NATO, por seu turno, entendem que compete à Rússia cumprir os “Compromissos de Istambul” antes de se iniciar a ratificação do Tratado CFE Adaptado, por considerarem ligados, política e institucionalmente, esses dois tempos. Foi esta contraposição de leituras que levou à impossibilidade de acordo em todos os documentos finais do Conselho Ministerial de Maastricht, em Dezembro de 2003.
[12] A Rússia não autorizou a renovação do mandato da missão que a OSCE mantinha na Chechénia desde 1997, que assim foi encerrada em final de 2002.
[13] A China tem vindo a dar alguns sinais de interesse numa aproximação à OSCE, que vem complementar o seu crescente relacionamento económico com países como o Casaquistão e o Quirguistão. Numa lógica similar, a maior aproximação à OSCE que tem vindo a ser evidente também por parte do Japão pode ser vista na perspectiva de alguma competição com a influência da China junto de países da Ásia Central.
[14] As declarações da União Europeia passaram a ser subscritas regularmente, a partir de 2004, pela Bulgária, Roménia, Turquia e Croácia, dado o seu processo de aproximação à União.
[15] A OSCE tinha a intenção original de promover, cada dois anos, a realização de uma Cimeira a nível de chefes de Estado e de Governo. A crescente e generalizada “fadiga” internacional relativamente a este tipo de eventos veio a espaçar a respectiva realização.
[16] O autor desempenhou as funções de presidente do Conselho Permanente da OSCE, a partir de Setembro de 2002.
[17] Gama, Jaime, “A Presidência Portuguesa da OSCE”, in Negócios Estrangeiros, nº 2, MNE, Lisboa, Setembro 2001
[18] A Plataforma para uma Segurança Cooperativa tem como objectivo a promoção da cooperação, sem hierarquias, entre as organizações internacionais e regionais que compõem a chamada “arquitectura de segurança europeia” (ONU, NATO, UE, Conselho da Europa e OSCE).
[19] Sobre a leitura portuguesa do trabalhos da OSCE em matéria de combate ao terrorismo, ver Francisco Seixas da Costa, “OSCE and the fight against Terrorism”, in The Search for Effective Conflict Prevention in the New Security Circumstances, Ministry of Foreign Affairs of Japan, Tokyo, 2004
[20] Esta Declaração resultou de uma oportuna iniciativa tomada em Viena pelo embaixador João de Lima Pimentel, que antecedeu o autor na presidência do Conselho Permanente da OSCE.
[21] A Estratégia veio a ser aprovada na reunião ministerial de Maastricht, em Dezembro de 2003, e é hoje um eixo programático central da actividade da OSCE.
[22] A partir de 2003, passaram a ter anualmente lugar em Viena estas Conferências, nascidas da iniciativa portuguesa.
[23] A Assembleia Parlamentar, cujo Secretariado está sedeado em Copenhaga, é constituída por mais de 300 deputados dos parlamentos nacionais dos Estados participantes e tem por objectivo promover o envolvimento parlamentar nas actividades da organização, debatendo as suas principais questões e adoptando resoluções e recomendações, desenvolvendo também acções de monitorização eleitoral. A sua sessão principal é em Julho de cada ano, reunindo em Viena em Fevereiro, realizando ainda várias outras reuniões, visitas e seminários. Contrariamente ao que acontece com a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, o órgão similar da OSCE não tem qualquer intervenção na selecção do Secretário-Geral da organização, funcionando apenas como uma instância de formulação de posições políticas, às quais, contudo, nem a Presidência nem o Conselho Permanente se sentem necessariamente vinculados.
[24] Em 2005, 2006, 2007 e 2008 e a Presidência será assegurada, sucessivamente, pela Eslovénia, pela Bélgica, pela Espanha e pela Finlândia. Existe uma candidatura do Casaquistão para 2009.
[25] Como já referido, na actual estrutura, o Secretário-Geral é o chief administrative officer da OSCE. Não tem substituto directo, sendo representado, nas suas ausências, pelo director que, caso a caso, venha a designar. Na eventualidade de vir a criar-se um lugar de Secretário-Geral Adjunto, este posto poderia vir a ser atribuído a um país “a Leste de Viena”, o que apaziguaria os Estados que entendem que o actual Secretariado, nos lugares essenciais, continua a ser um feudo dos países ocidentais.
[26] Ver, a este respeito, Francisco Seixas da Costa, “Central Asia – Not Always a Silk Road to Democracy”, in OSCE Magazine, OSCE, Vienna, July 2004.
[27] A Rússia mostrou recentemente uma maior abertura à discussão da retirada das suas bases na Geórgia, desde que recebesse uma elevada compensação financeira.
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