12 de abril de 2011

O "11 de setembro"

Há dias, quando o Dr. Mário Mesquita me convidou para esta ocasião, surgiu-me, por um instante, uma tentação: especular um pouco sobre o que teria sido o mundo se o 11 de Setembro não tivesse tido lugar. As fantasias na lógica do “what if...” têm sempre a sedução de nos forçar a imaginação, de nos obrigar a trabalhar cenários que a História, por uma qualquer razão, não seguiu. São exercícios interessantes, que nos podem conduzir a uma reflexão interessante, tanto mais que a História, embora não se repetindo, conhece, por vezes, algumas similitudes perturbadoras.

No caso do 11 de Setembro, um exercício destes teria de assentar numa rigorosa definição dos termos de referência da situação internacional pré-existente aos acontecimentos, seguida de uma especulação sobre como teria evoluído essa mesma situação se acaso os terroristas não tivessem levado a cabo, com sucesso, o seu ataque às Twin Towers (e aos dois outros aviões, frequentemente esquecidos). E se a primeira parte – a conjuntura pré-existente - permanece inteiramente válida para uma conversa como a que temos aqui hoje, já a segunda é totalmente falseada, porque a História não seguiu esse rumo.

É que os acontecimentos de 11 de Setembro, como qualquer outro evento importante na História – como foi o caso do ataque a Pearl Harbour, na 2ª guerra mundial – podendo ser considerados como uma resultante das condições anteriores, podem tornar-se, eles próprios, na causa, direta ou indireta, do muito do que se lhe seguiu. Resultante e causa – são esses, assim, os papéis do 11 de Setembro na história contemporânea. E é nessa dupla perspetiva que pretendo tratá-lo.

Passados quase 10 anos sobre esse dia, sinto que temos hoje condições para olhar, com uma maior serenidade, para a conjuntura em que o mesmo ocorreu. Como já aqui foi referido, eu estava em Nova Iorque nessa data. Escassas horas após o ato terrorista, tal como muitos dos meus colegas embaixadores na ONU, tomei a palavra na Assembleia Geral para expressar solidariedade aos nossos amigos americanos pela inqualificável agressão de que o seu país havia sido vítima. Não tinha para tal nenhumas instruções específicas do meu governo, nem precisava delas.

Mas – posso agora revelar – não me foi fácil convencer alguns dos meus colaboradores, na missão portuguesa junto da ONU, da importância de não esquecer, no meu discurso, uma menção às “root causes”, que não podiam deixar de figurar no cenário de fundo em que o 11 de Setembro teve lugar. Ora o tempo psicológico não estava então muito voltado para esse tipo de abordagem e, quero recordar, falar das “razões” por detrás das motivações do ato terrorista era então visto, por alguns, nos Estados Unidos, mas também aqui, pelos “neocons” da paróquia, como uma espécie de traição e de desculpabilização do ato. Os polícias do espírito têm sempre um espaço para praticarem a sua propensão censória nos momentos de fortes vagas emocionais. E essa vaga era então avassaladora.

Porém, parecia-me de uma irrecusável lógica tentar explicar que aquele ato não nascera apenas porque uma qualquer mente perturbada havia decidido cometer um ataque bárbaro contra os Estados Unidos, matando milhares de pessoas, americanos e não só. Esse ato havia tido lugar porque existia um contexto internacional, perante o qual os Estados Unidos eram vistos, em largos setores do mundo árabe e não só, como muito complacentes com a política seguida por Israel face aos territórios e aos direitos dos palestinianos. Só assim se explica, convém também lembrar, o aplauso com que estes atos terroristas foram, à época, acolhidos em alguns setores da “rua árabe”.

E, aceite-se ou não esse pressuposto – a cumplicidade dos Estados Unidos com as políticas de Israel – a verdade é que essa é uma ideia que fez, e continua a fazer, o seu curso em muitas áreas do mundo. E também é verdade também que os Estados Unidos não fazem muito para a desmentir, mesmo nos tempos que correm.

Coisa bem diferente seria utilizar esse pressuposto para conferir um mínimo de legitimidade a ações violentas de que os Estados Unidos haviam sido vítimas. Reconheço que separar as duas coisas era então difícil, aos olhos de muitos.

Gostava aliás de lembrar que os Estados Unidos já haviam sido alvo, no passado, de ações terroristas em vários locais do mundo. Para recordar apenas as mais mortíferas, lembremos os 280 mortos no Líbano, em 1983 e 1984, e as 244 vítimas de atentados bombistas na Tanzânia e no Quénia, em 1998. Quero com isto dizer que o ato de 11 de Setembro de 2001 vem na sequência de um conjunto de ações agressivas contra pessoas e interesses americanos, levados a cabo, ao longo de vários anos, por elementos movidos por uma agenda radical. Essa agenda de ódio aos Estados Unidos, nas últimas décadas, teve vários titulares, desde grupos de extrema-esquerda até ao mais recente fundamentalismo islâmico. Mas, quase sempre, como elemento constante por detrás dessa agenda, estava presente a questão palestiniana, a responsabilização dos Estados Unidos pela manutenção dessa situação tida como injusta.

Em anos mais recentes fomos assistindo a uma mudança nesse discurso, com o decantar nele da frustração histórica de setores do mundo muçulmano, alimentados por uma determinante religiosa extrema, que tendiam a fazer pagar à América, bem como a outros poderes ocidentais, o que consideravam ser uma espécie de humilhação histórica do mundo muçulmano. Como símbolo mais poderoso do mundo ocidental, os Estados Unidos eram e são o alvo mais óbvio desta espécie de cruzada em sentido inverso, para a qual são convocados esses povos que se sentem marginalizados e desprezados, vítimas da História.

Note-se que a complexidade desse mesmo mundo muçulmano faz com que, curiosamente, coexistam, no seu seio, aliados fiéis de Washington e inimigos jurados da América. Em alguns desses países muçulmanos, que dispõem de sólidos apoios ocidentais e lutam pela sobrevivência dos seus regimes autoritários, que são alimentados pelos recursos petrolíferos, verifica-se que foi, durante muitos anos, cultivada uma perigosa ambiguidade. Esses regimes deixaram florescer no seu seio grupos de matriz extremista, na aparente convicção de que isso os absolveria face à religiosidade da sua população. O Al Qeda nasceu nesse estranho caldo de cultura, gerado em mundos por onde perpassava, como constante, um permanente discurso anti-israelita, aliás o único verdadeiro cimento de ilusória união dentro do mundo árabe. Esse era o “politicamente correto” regional, às vezes mais hipócrita do que verdadeiro, como bem se sabe. E como as perspetivas de resolução do conflito israelo-palestiniano eram, então como sempre, muito limitadas e frustrantes, as condições para a sua perpetuação e aprofundamento estavam criadas. Era esse contraditório panorama que se vivia no mundo árabe, ao tempo do 11 de setembro.

A situação no resto dos “major players” mundiais era também complexa.

Em 11 de Setembro de 2001, a América era titulada por uma nova administração, que tinha uma postura muito conservadora, com uma afirmação quase agressiva dos interesses americanos – e que os defendia como se o resto do mundo os devesse considerar naturalmente como seus. Nada de novo, diga-se, face a outros tempos americanos, mas algo novo face à administração Clinton que terminara.

Não era então muito claro como se processaria a sua relação futura, por exemplo, com a Rússia. Este país atravessava um período de evidente fragilidade no plano interno e na sua capacidade de ação internacional, o que abria a tentação a gestos externos de alguma rigidez, numa lógica nacionalista compensatória. Sentia-se, igualmente, que o relacionamento americano com a China não se anunciava fácil, com o surgimento, logo nos primeiros meses da administração Bush, de algumas tensões induzidas, com gestos de aproximação algo imprevistos face a Taiwan, como que buscando criar em Pequim um novo adversário estratégico.

Por seu turno, a União Europeia permanecia expectante, tanto mais que geopoliticamente não lhe era indiferente a evolução que Washington pudesse vir a ter, depois de uma administração Clinton com a qual conseguira um “modus vivendi” razoável. Conhecer as intenções americanas, especialmente no tocante às relações com Rússia, não era coisa indiferente para muitos parceiros europeus. É que alguns dos novos integrantes dos futuros alargamentos da União e da NATO revelavam uma compreensível gratidão histórica face à América, que suplantava, em muito, a afetividade que tinham perante as instituições de Bruxelas, que funcionavam mais como um arranjo prático de oportunidade. Esses mesmos países, por virtude de compreensíveis traumas históricos, olhavam para Moscovo de uma forma pouco simpática, “to say the least”.

E a Europa – a União Europeia - sabia então, como sabe hoje, que a sua capacidade para poder ter, à escala global, uma ação minimamente eficaz passa sempre pelas alianças conjunturais que consiga gizar com os Estados Unidos. Por isso, a Europa esperava para ver o que ia sair de uma América com um novo estilo, com uma agenda que, embora ainda em definição, se anunciava bastante autónoma.

No que toca à sua própria relação com o mundo árabe, a Europa também já não tinha ilusões. Por um lado, percebera, já à época, que o chamado “processo de Barcelona”, em torno da bacia mediterrânica, chegara ao limite, aliás bastante baixo, da sua eficácia. Essa falta de eficácia está hoje bem à evidência, mesmo depois da sua esforçada conversão na União para o Mediterrâneo. E também entendia - porque os Estados Unidos e Israel não deixavam de lho lembrar, muitas vezes por omissão - que o seu papel no eufemísticamente chamado “processo de paz” do Médio Oriente continuaria a ser o de um mero ator secundário, a quem competia pagar algumas contas, para continuar a fazer parte do “casting”.

Numa síntese simples, e em relação aos “major players” da cena internacional e aos cenários mais relevantes para o que aqui nos interessa, as coisas estavam assim, nessa manhã que, lembro-me, acordou com um céu límpido, em Nova Iorque, no dia em que deveria ser tocado o sino da paz, que anuncia que a Assembleia Geral da ONU vai abrir as suas portas.

O 11 de Setembro foi a casual resultante de todo este estado de coisas, uma cenário que, sabe-se hoje, não estava tão distante das previsões que alguns faziam dos riscos de ações terroristas à escala internacional. O que ninguém provavelmente pensava, não obstante a tentativa que, oito anos antes, tinha sido gorada no mesmo World Trade Center, é que um grupo iria ter capacidade de planeamento e de organização para poder cometer atos desta dimensão, bem no coração da América.

O 11 de Setembro não foi, simplesmente, um ato terrorista que vitimou uns milhares de pessoas. Foi uma provocação insuportável a um Estado que se tinha por quase inexpugnável e para o qual, um ato deste tipo, colocava em causa a sua própria imagem como orgulhoso poder incontestado à escala global. E não deixa de ser importante lembrar, uma vez mais, para se perceber a sequência do que sucedeu depois, que os Estados Unidos viviam já sob uma nova administração, onde prevalecia uma liderança muito ideológica, com uma clara componente “jingoísta” (uma expressão que não parece existir em português mas que o Oxford English Dictionary refere como “extreme patriotism in the form of agressive foreign policy”.

E vamos então àquilo de que o 11 de Setembro poderá, no cenário internacional, ter sido causa, embora não necessariamente única.

Desde logo, e como primeiro ponto, o ambiente internacional foi marcado por uma reação muito alargada e solidária na luta contra o terrorismo, com uma rápida adaptação das instituições das Nações Unidas a esse respeito. Basta lembrar a firmeza das resoluções aprovadas e as estruturas montadas para garantir a sua completa implementação. Como curiosidade, noto que, por esse tempo, a ONU discutia a definição do próprio conceito de terrorismo, sobre o qual havia grandes divergências, porque algumas das caraterizações desse mesmo conceito eram vistas como podendo limitar o direito à revolta de povos que viviam sob regimes autoritários.

Neste ambiente de súbita concórdia, o terrorismo veio a ser, curiosamente, um inesperado elo de ligação entre Moscovo e Washington. É interessante avaliar o modo como evoluiu essa relação, em todo o tempo posterior ao 11 de Setembro. No período imediato após os atentados, a Rússia foi obrigada a alinhar pelo “politicamente correcto” da luta anti-terrorista, o que teve duas consequência de sinal oposto. Por um lado, foi obrigada a consentir, de uma forma sem paralelo até então, uma presença americana nas suas “águas estratégicas” próximas, no seu “near abroad”. Os Estados Unidos, para além de diversas outras facilidades que viriam a ser concedidas por Moscovo para as operações no Afeganistão, obtiveram ganhos de presença, sob a complacência russa, em Estados como o Usebequistão e o Quirguistão, bem como uma influência crescente na Geórgia. A “paciência” de Moscovo viria a esgotar-se um dia, como todos sabemos. Mas, à época, como “compensação”, e de uma forma quase chocante, Washington passou a ser de uma grande parcimónia em matéria de críticas à política russa em áreas da Federação, deixando que o argumento da luta contra o terrorismo fosse utilizado por Moscovo, quase sem baias, nas suas incursões e repressivas, em zonas como a Chechénia. Verdade seja que não foram apenas os russos a ser “free riders” da luta anti-terrorista, mas Moscovo foi quem mais longe foi nesse caminho.

Desde então, como é sabido, muita água passou sob as pontes deste relacionamento russo-americano, com algumas tensões à mistura. Houve ajustamentos em zonas de conflitualidade e de cruzamento de influências de ambos os poderes, de que a Geórgia (e a chamada “independência da Abcázia e da Ossétia do Sul), bem como a questão do escudo anti-míssil, foram os casos mais evidentes.

No tocante à Europa, aliado constante, não foi difícil os Estados Unidos dela obterem uma adesão incondicional à sua luta contra o terrorismo, a partir de 11 de setembro. Não é segredo para ninguém que, desde a sua instalação, em inícios de 2001, a administração Bush não havia causado um entusiasmo transbordante na Europa. Os sinais de afastamento do mundo multilateral, ou melhor, da sua instrumentalização “à la carte”, e uma agenda ainda mais auto-centrada nos seus interesses do que aquela que a América tradicionalmente sempre nos apresentou, cedo se projetaram num cenário europeu onde, com naturalidade, o Reino Unido dava sinais, como habitualmente, de querer vir a manter a relação mais próxima.

Como já referi, o 11 de Setembro colocou, com alguma naturalidade, toda a Europa e a NATO - neste caso com uma interpretação muito extensiva do artigo 5º do Tratado de Washington - numa atitude fortemente solidária com os Estados Unidos. E, nessa mesma lógica, a posição europeia nas Nações Unidas face ao ataque ao poder vigente no Afeganistão foi num sentido totalmente positivo e comprometido. Contudo, como bem sabemos, este unanimismo viria a deteriorar-se.

O tropismo anti-Saddam Hussein que se desenvolveu, de forma quase obsessiva, em Washington, com o desprezo claro pela vontade das Nações Unidas no tocante ao Iraque, no triste cenário das “armas de destruição maciça”, criou uma dinâmica de divisão que veio a afetar, não apenas a unidade política dentro da União Europeia, mas, mais grave do que isso, chegou a introduzir clivagens no seio da NATO – e aqui recordo a restrição belga no tocante aos riscos em que a Turquia então se envolvia.

Como “poder europeu” que são, os Estados Unidos há muito perceberam que, no nosso continente, tanto têm a capacidade de nos unir como são capazes de provocar, com facilidade, a nossa desunião. Foi o que aconteceu, pouco tempo depois, em 2003.

Não obstante, e em perspetiva, há que reconhecer que a prevalência dos valores de uma cultura comum de segurança acabou por levar muitos países europeus a adotar uma atitude de solidariedade estratégica com a ação dos Estados Unidos no Iraque. Muitos desses mesmos países acabaram por entender que, quaisquer que tivessem sido as reais motivações do ataque àquele país, as consequências decorrentes dessa guerra iriam sempre projetar-se, inevitavelmente, sobre a sua própria segurança. E, por essa razão, não podiam alhear-se completamente do destino do Iraque. A Europa acabou, assim, por “naturalizar” a situação iraquiana, porque ela era um incontornável “fact of life” e se tornava necessário gerir as suas consequências.

Em síntese, eu diria que o 11 de setembro acabou por ser um teste positivo à unidade de princípios estratégicos em que assenta o mundo transatlântico. Mas também diria que os Estados Unidos, a quem essa unidade deve importar, foram responsáveis objetivos pela introdução nesse quadro de alguns elementos disruptores, de tensão e desagregação, pela adoção de um unilateralismo nada dialogante, que colocou em causa um dos equilíbrios geopolíticos mais importantes que haviam sido criados após a 2ª guerra mundial. Nesse teste, há que dizer que a Europa se portou basicamente bem: assumiu as sua diferenças internas, preservou os seus princípios comuns básicos e foi fiel à sua vocação de entidade estabilizadora no plano internacional.

Olhemos um pouco a região desse Médio Oriente alargado.

Sem a menor dúvida, o espaço geopolítico que maiores alterações sofreu, após o 11 de Setembro, foi a zona do Médio Oriente, com o Irão e Afeganistão considerados nesse contexto, com repercussões ainda difíceis de medir no próprio Paquistão. Pode sempre dizer-se, em tese, que, se acaso o 11 de Setembro não tivesse ocorrido, muito provavelmente a turbulência tradicional daquela região não deixaria de se fazer sentir. As tensões estavam lá e não é de excluir que pudessem explodir de uma outra forma, como já antes acontecera. Mas a nós interessa-nos jogar com os dados reais e esses são a mudança radical que o conjuntural vazio iraquiano provocou, com a emergência do papel do Irão, com o seu problema nuclear e o modo como essa ameaça é hoje pressentida para a generalidade dos países do Golfo.

Olhando numa perspetiva histórica, podemos dizer que o fim de algum equilíbrio Irão-Iraque, que marcou as décadas mais recentes, desencadeou consequências que ainda hoje não temos condições para medir com precisão. Acresce que, simultaneamente com a emergência da ameaça iraniana, as monarquias do Golfo como que deixaram de ter, como permanente eixo de referência, uma sólida e previsível posição americana, apoiada regularmente por Londres, em função de outras prioridades em que os americanos passaram concentrar-se na área. Para esses países, o verdadeiro “escudo protetor” do seu “statu quo” era o papel que desempenhavam no centro do mundo produtor de petróleo, que funcionava como uma espécie de “seguro de vida” dos seus regimes. Uma imprevisibilidade americana deixa-os algo órfãos.

O mais irónico, como já antes disse, é que foi precisamente no seio desse mundo de conservadorismo político e religioso, com uma sua complacência que não terá medido os riscos do que daí poderiam resultar, que surgiram algumas das expressões mais radicais e fanáticas do islamismo, a começar por aquelas que vieram a estar envolvidas no 11 de Setembro. Esses países acumulam hoje outras preocupações, porque neles sopram os ventos de inquietação democrática que atravessa o mundo árabe.

Curiosamente, há ainda muito pouca reflexão sobre o modo como os recentes surtos de instabilidade dentro de países árabes se podem ligar, ou não, à própria evolução desse mesmo mundo, na sequência do 11 de Setembro. De uma forma algo estranha, pelo menos a julgar por estes primeiros tempos, esses movimentos procuram uma libertação dos regimes autoritários numa perspetiva que não é anti-ocidental, nem apresenta a tradicional reação anti-israelita. Pelo contrário, eles sublinham valores, ainda que difusos, da liberdade e da democracia que parecem mais próximos do Ocidente do que de qualquer cultura política a que tradicionalmente estivessem ligados.

Como disse, ainda é cedo, para podermos ter um juízo sobre o sentido que estes movimentos parecem tomar. Porém, a julgar pelo que conhecemos, estamos perante surtos já com alguma modernidade de atitude, que dão esperanças de inverterem os sinais de conservadorismo radical que estiveram subjacentes ao 11 de Setembro. Mas nada pode ser dado por adquirido, até porque as situações variam de país para país e está ainda por medir o efeito que a guerra na Líbia poderá vir ter nos equilíbrios da psicologia coletiva das opiniões públicas em todo o mundo islâmico.

Gostava, finalmente, de notar que, para além destes cenários regionais, o 11 de Setembro acabou também por ter um efeito determinante na mudança da cultura de segurança à escala global, obrigando a dar prioridade a uma nova tipologia de ameaças, tendo levado uma instituição de segurança coletiva como é a NATO a adaptações importantes da sua ação e da sua definição estratégica, após um tempo pós-guerra fria em que parecia andar à procura de um novo propósito.

E, como não podia deixar de ser, o 11 de Setembro teve também um impacto, embora de forma não unívoca, no modo como as Nações Unidas passaram a ser vistas. Para o mal e para o bem, as instituições multilaterais foram levadas para a dianteira do debate político – neste caso, dependendo do modo como, perante elas, alguns países se comportaram. Sujeitas a uma tensão muito forte, as Nações Unidas tornaram-se num terreno de combate, que em nada favoreceu a organização. E se podemos considerar que a ONU se mostrou capaz de congregar vontades para pôr em execução um tecido de instrumentos jurídicos para a luta anti-terrorista, temos, contudo, de concluir que os efeitos do 11 de Setembro não impulsionaram, no seu seio, um movimento reformador e relegitimador do seu papel à escala global.

Passou já uma década sobre o 11 de Setembro. Para além das imagens da tragédia e da memória que todos fixámos dentro de nós, sobre o que sentimos nessa data e nos dias que se seguiram, não estou totalmente seguro que o mundo tenha apreendido esse evento como uma grande lição.
E, no entanto, como outros momentos traumáticos da vida internacional, o 11 de Setembro prolongou-se na memória coletiva por algum tempo, como uma ferida difícil de curar. Só que, estranhamente – e tenho a consciência do peso do que vou dizer – esse trauma acabou por ser atenuado, em muitas opiniões públicas pelo mundo, pelo muito que ocorreu depois, pela imensidade das mortes civis iraquianas, pelas violações dos direitos humanos, de Abu Gharb a Guantanamo, pelas incógnitas que a instabilidade induzida à região arrastou para o mundo. E é pena que isso tenha acontecido. Porque o peso insuportável da barbárie do que foi o 11 de Setembro deveria ser preservado, sem ser sujeito a essa espécie de “compensação”, como se uma tragédia fosse atenuada pela emergência de outras, de sentido contrário.

Há que ver claro: o 11 de Setembro mudou o mundo, embora nem sempre para melhor. Mudou-nos a nós mesmos. Tornou-nos a todos menos tolerantes, mais propensos a atenções securitárias e à relativização do corpo de direitos, individuais ou de grupo. Porque as reações públicas não obedecem a lógicas comportamentais marcadas pela serenidade e pelo rigor analítico, o 11 de Setembro gerou atitudes marcadas pela estigmatização étnica e religiosa, pelo “racial profiling”, onde se confundiram atitudes, se desprezou o direito à diferença e se cultivou um perigoso espírito de intolerância. Além disso, legitimou os medos da imigração, fechou culturas e explorou, por vezes, o terreno pouco sereno onde se discutiu a compatibilidade ou não de civilizações – se confronto, se diálogo.

A preeminência da luta contra o terrorismo, elevada a princípio indiscutível e a referente que, a certa altura, era identificador do bem e do mal, criou um ambiente pesado em muitas sociedades, justificando arbítrios e legitimando atos de autoritarismo, para além de alimentar teorias conspiratórias de sinal quase kafkiano.

Alguns dirão que é necessário ter sempre em prioritária atenção, não aqueles que reagiram e sofreram o 11 de Setembro, mas quem foi dele culpado. É verdade, mas sem colocar em causa que a segurança é um bem precioso, temos de ter em conta que é na forma de a preservar que reside a essência da nossa liberdade, do modelo democrático em que queremos viver e das regras de convivência em que assenta o nosso estilo de vida. Os terroristas não nos podem tornar prisioneiros de nós próprios e, principalmente, não podemos aceitar que, além das vidas que fazem desaparecer, eles anulem a razão ser das nossas sociedades.


Intervenção na conferência “11 de Setembro: um mundo diferente?”, organizada pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, no Grémio Literário, em Lisboa, em 12 de abril de 2011

4 comentários:

  1. É reconfortante ler textos equilibrados como este. Bem haja!

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  2. Vai ajudar-me Imenso a contextualizar uma intervenção que tenho que fazer sobre humanização...

    Com toda a justiça "meritória" consigo extrair uma forma visível de globalização da atitude humanitéria na adversidade nesse contexto do ponto de vista diplomático... Pediram-me uma abordagem de despertares de humanização no luto através da doação de órgãos com vitalidade em corpos moribundos...É de facto um pouco assim reciclar esperança dos escombros...

    Gostei imenso do artigo, até consigo aceitar e corroborar como evidente a necessidade de ser o próprio a entoa-lo , não faria sentido, sentido de outra forma, nem teria impacto.
    Isabel Seixas

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  3. OBRIGADO POR MAIS UMAS "LUZES" SOBRE UM ACONTECIMENTO QUE "MUDOU" O MUNDO..

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  4. Senhor Embaixador, gostei muito desta sua análise. Como gostei da que faz Jean Daniel, no Nouvel Observateur, a que ontem fiz referência no meu blogue.
    Embora nem sempre concorde com as análises daquele pensador - quem sou eu?-, o certo é que se aprende sempre que há "um outro lado" que convém não esquecer na análise dos problemas do mundo em que vivemos.

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