A morte deve ter andado um tanto desorientada, nestes últimos anos, com José Alencar. O antigo vice-presidente de Lula fintava-a com regularidade, sempre com um sorriso nos lábios, num desafio constante, uma espécie de teimosia irónica. Mas tudo tem o seu fim e estava escrito que, um dia, José Alencar ia perder uma das batalhas. Que iria ser a última.
Quando, em 2003, Lula foi aconselhado a ter Alencar na sua "chapa", dificilmente poderia prever que este industrial mineiro, escolhido para lhe dar credibilidade junto do setor privado, se iria transformar num dos seus mais leais apoios, num sustentáculo valioso, que nunca vacilou, mesmo nos piores momentos dos seus dois mandatos.
Praticamente desde a minha chegada ao Brasil, tive o inestimável privilégio de poder manter com José Alencar uma relação marcada por uma forte estima e simpatia. Recordo jantaradas divertidas em nossa casa, com José Alencar a contar-nos, com a graça imensa que tinha, as insuperáveis historietas mineiras, daquela gente que "nunca se zanga mas também nunca se reconcilia". Pena tenho de não saber reproduzir as aventuras do "Fernandinho", cuja saga, acabada num posto consular nos Estados Unidos, era um êxito garantido para as audiências. Mário Soares, Jorge Sampaio e Freitas do Amaral, entre outros visitantes portugueses, foram testemunhas do ambiente aberto e franco que a segunda figura da hierarquia brasileira sabia criar à sua volta.
Há uns meses, recebi em Paris uma simpática nota manuscrita de José Alencar, em resposta aos votos de restabelecimento que eu lhe havia formulado, aquando de uma das suas, cada vez mais frequentes, recaídas. Dela transparecia, para além da sua profunda ligação a Portugal, a sua imensa fé religiosa, que talvez tenha sido uma das fontes onde ia beber a sua admirável coragem.
Lamento não ter comigo a garrafa da "melhor cachaça do mundo", que fez questão de me enviar, depois de eu ter elogiado o néctar, num almoço em casa do ministro brasileiro da Defesa, Nélson Jobim. Nesse dia, ainda abalado por um internamento recente, José Alencar disse-me, em voz baixa: "Temos de arranjar dois copos daquela cachacinha que ali está, com rótulo verde. Mas não diga à Mariza, porque um deles é para mim..."
Logo que puder, vou beber um copo dessa cachaça pela memória desse amigo, um homem bom e corajoso, que se chamou José Alencar.
(Artigo publicado no "Correio da Manhã", 31.3.11)
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