27 de Agosto
Adeus, verão
O "Le Parisien" titula "On veut le soleil!". Lá fora, à parte umas nuvens, o gestor climático supremo parece fazer-lhe a vontade. Com a casa deserta e Paris em férias (“de Rodriguez”, como se diria em Espanha), nada melhor que assentar numa esplanada de brasserie, com os jornais da manhã à mistura. E com estacionamento quase em frente, felicidade terrena que vai acabar, com o regresso dos parisienses. A meio do repasto, uma leve chuvada. Corrida geral para o interior. Amansadas as iras celestiais, passeio pelas montras até uma livraria. No final da compra, a vendedora oferece-me um elegante saco de pano, cadeau do dia. Chegado à rua, cai uma bátega imensa. Afinal, é melhor recolher a penates, para acabar um Céline, agora que os tempos recomendam a revisita a alguns "malditos". No carro (afinal estava longe, caramba!), molhado como um pinto, olho para o saco-prenda. Escrito por fora: "L'été est là". Pois, pois - como os brasileiros acham que os portugueses dizem.
5 de Setembro
A mão visível
Tem imensa graça ouvir o canto dos reconvertidos próceres do novo federalismo. Depois de nos terem bombardeado, por décadas, com o paraíso da “mão invisível”, de terem entoado loas embevecidas às maravilhas do mercado, ei-los que chegam, novos e já velhos, a uma cada vez mais alargada comunhão na ideia de que se torna imperativo um salto político federal europeu para a sustentação do euro. Que grande ironia! Quem havia de dizer que seria a Europa financeira a "puxar" pela Europa política! Sejam muito bem-vindos ao Estado!
10 de Setembro
Vieille vague
Era uma senhora bonita, de sorriso radioso, com sessenta e tal anos. Fui-lhe apresentado hoje, no fim de um concerto, na baixa Normandia. Disse-lhe: "Lembro-me de si a passear de motocicleta, em Clermont-Ferrand". "Mas eu nunca vivi em Clermont-Ferrand!", respondeu-me, amável. "Pois não! Mas andou por lá, de motocicleta. Ou não?" Reação, alguns segundos depois: "Ah! no filme?!" e fez um largo sorriso: "Que simpático! Ainda se lembra?"
Era Marie-Christine Barrault. Em 1969, no seu primeiro filme, aos 25 anos, protagonizou momentos inesquecíveis do cinema da "Nouvelle Vague" francesa, no "Ma nuit chez Maud", com Jean-Louis Trintignant. Foi um prazer cruzar a memória com a vida, ainda que cinematograficamente virtual. E lá bebi, com Marie-Christine Barrault, uma cidra normanda, saudando, sem saudade, esses tempos em que ambos não éramos sexagenários.
23 de Setembro
O novo bailinho
Não deve haver português com internet que, nestas últimas semanas, não tenha recebido uma anedota, um poster ou outra graça alusiva à Madeira e à respetiva gestão financeira. Às vezes pergunto-me como é que os estrangeiros olham para esta nossa propensão para aliviar as dores pelo humor. Uma coisa me parece bem clara: não convirá que a "troika" se convença de que, lá porque afivelamos um sorriso amarelo, andamos felizes.
25 de Setembro
Certezas
A conversa, à minha frente, entre dois amigos, ia animada, numa esplanada parisiense. Nesse final de tarde, tinha-lhes dado para a política portuguesa. Eu estava a ser um espetador algo distante do diálogo. Para imenso espanto deles (e, vá lá!, até de mim próprio), havia decidido não me imiscuir na conversa, enquanto falassem desse tema. Expliquei, simplesmente, que, como era fim de semana, tentava não me incomodar.
Um dos amigos, que anda mais cético, dizia já não acreditar em nada. O outro, afirmativo, tinha certas coisas por adquiridas, de "fonte limpa". A certo passo, já nem sei bem a propósito de quê, disse: “Tenho a certeza absoluta!” Resposta pronta e indignada do outro: “Certezas absolutas?! Tu estás é doido! Hoje só há incertezas absolutas!” De facto.
29 de Setembro
Rosário
Estou certo que a Rosário teria gostado do momento que os seus familiares e amigos criaram, no Père Lachaise, na muito triste e emocionada despedida que hoje lhe fomos prestar. Com o Álvaro Vasconcelos, seu marido, a Rosário de Moraes Vaz foi a espinha dorsal do Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais.
A Rosário era uma personalidade forte, frontal, com muitas ideias e com vastas razões para as afirmar. Muito culta, atenta às questões do mundo, iluminava as discussões e revelava a sua inteligência brilhante, num "tandem" sempre criativo com a serenidade profunda do Álvaro. Recordo, agora com saudade, a nossa última conversa, na sua casa, em Paris, ela com o seu inseparável cigarro e o seu entusiasmo transbordante. E, depois, o último dia em que brevemente falámos, no ano passado: ambos de muletas, fruto de acidentes, saídos de uma conferência sobre a Europa, na Gulbenkian de Paris. Ironizámos que estávamos ambos como o próprio projeto europeu...
3 de Outubro
O outro défice
Passo, às vezes, pelos blogues da política portuguesa, um espaço que se assemelha a uma guerra de trincheiras, onde os índios e os cow-boys se revezaram, há pouco. Com louváveis exceções, trata-se de um terreno virtual de guerrilha, às vezes muito pouco urbana, feita de uma imensidão de ressentimentos ou de vontade de "explorar o sucesso", de muito mau-perder e de muito mau ganhar. Velam-se espetros e incensam-se aparições, num mundo maniqueu, com os erros de uns a transformarem-se, patética e patetamente, no gozo dos outros. Esses uns agora esquecendo, como já antes essoutros esqueciam, que, no final da linha, há por aí um país e que, quando as coisas correm mal, correm mal para todos! Também isto faz parte do nosso défice.
6 de Outubro
Nobel
Confesso que nunca tinha ouvido falar do novo prémio Nobel da Literatura, hoje anunciado, o poeta sueco Tomas Tranströmer. O que, aliás, já me sucedeu, no passado, com alguns outros nomes galardoados com idêntico prémio. Fiquei a pensar se isso não seria uma imperdoável lacuna cultural da minha parte. E, pelo sim pelo não, durante um almoço de trabalho, perguntei ao meu colega sueco se os nomes de António Ramos Rosa ou de Herberto Hélder lhe diziam alguma coisa. Disse-me que não e sosseguei. Ótimo! Também ele não conhecia dois génios da poesia portuguesa. O meu descanso durou pouco, ao ouvi-lo dizer, logo de seguida, que, como poetas de Portugal, apenas conhecia Pessoa e Camões. Ora eu não recordava nenhum poeta sueco (lembrei-me, depois, mas só lá cheguei com ajuda do Google, do nome, mas não da poesia, de Pär Lagerkvist)! Aquietei finalmente o espírito com a reconfortante ideia de que, se isso acontece, é seguramente porque a nossa poesia é bem melhor do que a sueca. Deve ser isso! Pena é que a literatura não conte para o nosso PIB.
8 de Outubro
Sermão dominical
As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. Em particular, acreditam no que lhes prolonga as ideias feitas, no que entendem como sendo "lógico" e no que lhes aparece como podendo desenhar-se como "óbvio". E se o que lhes é servido como verdade tem o condão cumulativo de adubar sentimentos pré-existentes, então o processo de convicção pode dar-se como adquirido. Essa é a glória do criador da crença, para quem o supremo objetivo é construí-la, dá-la como evidência e vê-la partilhada, difundida e aceite como "a verdade". Ingenuamente, pode argumentar-se que, para além da crença, haverá que ter em conta esse pormenor, quiçá marginal, que são os factos. E que, às vezes, os factos apontam, de forma cristalina, no sentido de infirmar, em absoluto, a crença entretanto estabelecida. Neste caso, "tant pis" para os factos. Se eles não acompanham o rumo da crença, esta dispensa-os, por irrelevantes e incómodos. É dos livros. Pirandello dizia que "a cada um a sua verdade". É verdade, cada um fica na sua. Apesar da verdade, na verdade, ser só uma. E, às vezes, a crença nada ter a ver com ela. Mas que importa? As pessoas acreditam naquilo que querem acreditar.
11 de Outubro
Mail diplomático
Com uma excitante irregularidade, todos (mas todos!) os funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros recebem, de tempos a tempos, num "block-mail" (que não discrimina quem está em Sidney de quem trabalha em Lisboa), mensagens, muitas vezes pessoais, sobre as mais variadas questões práticas. Já houve anúncios de falta de água ou de luz numa certa tarde, de óculos encontrados junto à casa de banho das Necessidades (decisivas informações, como se imagina, para quem está em serviço em Toronto ou Windhoek), até à abertura de cursos de francês em Lisboa (bem úteis, especialmente para quem está colocado em Paris e Bruxelas, apenas com a dificuldade dos horários dos aviões, para ir e vir no mesmo dia). Um dia, um guarda da Securitas deixou o serviço do MNE. Logo, carinhoso, escreveu-nos a todos, espalhados pelo mundo, para benefício dos administrativos da cidade do México ou de Tripoli, bem como dos embaixadores em Zagrebe, Montevideu ou Seoul - lembrando, com frases sentidas, as boas horas em que tinha tido à sua cuidadosa guarda a sede da nossa diplomacia. Calou fundo.
Alguns anúncios são verdadeiros ícones. E a sua falta ou atraso induz angústias, porque faz presumir que alguma coisa de grave se está a passar. Foi por isso, que, ontem, respirei de alívio ao receber uma circular relativa à disponibilização dos bilhetes para o circo de Natal. Uhf! Pensei que nunca mais chegava!
(Publicado no nº 1071 (19.10.11 a 1.11.11) do "Jornal de Letras, Artes e Ideias")
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