No dia 16 de março de 2003, à chegada à base das Lajes, no Açores, os líderes estrangeiros - George W. Bush, Tony Blair e José Maria Aznar - foram recebidos pelo anfitrião do encontro, o primeiro-ministro português, José Manuel Durão Barroso. Para uma primeira fotografia e para as câmaras, Barroso colocou Aznar à sua direita, com Blair e Bush à esquerda. O presidente do governo espanhol permaneceu nesse lugar apenas um breve instante. Olhou a coreografia e logo a subverteu: mudou para o outro extremo da cena, colocando-se ao lado de Bush. O centro da fotografia passou a ser composto por Bush e Blair, com o primeiro a colocar um paternal abraço sobre o ombro de Aznar. Barroso, o anfitrião, de uma posição central, passou a estar isolado na ponta. O primeiro retrato do encontro emoldurava o desejo português. A fotografia final consagrava a realidade da cimeira das Lajes.
Este encontro transatlântico, que tanta tinta fez correr entre nós, é hoje um acontecimento a que a história das relações internacionais atribui uma escassa importância, como se pode verificar pelas raras linhas que merece em memórias e outros relatos sobre esses tempos complexos, que antecederam a intervenção da “coalition of the willing” que se formou com o objetivo de derrubar Saddam Hussein. Porém, para a história diplomática portuguesa, cujos encontros com a “grande” História não são tão vulgares quanto isso, esse evento, mesmo se secundário à escala global, tem a sua relevância.
Essa relevância deve-se a duas razões maiores e a uma interrogação de conjuntura. Desde logo, convém notar que a posição portuguesa nesse momento decisivo da questão iraquiana - de que a cimeira acabou por ser um episódio importante, no olhar de Lisboa - representou um tempo de revisitação das relações de Portugal com três dos seus principais aliados, cada um com uma especificidade própria: os Estados Unidos, o Reino Unido e a Espanha. Uma segunda razão liga-se ao facto da postura assumida pelo então governo português ter conduzido a uma fratura no consenso em matéria de relações externas, entre as maiores forças políticas, que vinha a constituir uma imagem de marca do nosso país. Finalmente, a questão de conjuntura liga-se diretamente à pessoa do primeiro-ministro de então, Durão Barroso, e ao modo como ele poderá, ou não, ter utilizado essa circunstância com vista ao seu próprio interesse pessoal.
Todas estas dimensões estão presentes e bem identificadas no livro de Bernardo Pires de Lima: “A Cimeira das Lajes - Portugal, Espanha e a guerra do Iraque” (ed. Tinta da China, Lisboa, 2013). O livro, publicado precisamente uma década após a cimeira, é um magnífico trabalho de interpretação, sereno e equilibrado, sobre a história desses dias e o papel que Portugal quis ou pôde nela desempenhar. Não é uma obra meramente descritiva e assética, no sentido de se limitar a apresentar as várias versões dos factos e deixar, à responsabilidade do leitor, a possibilidade de os interpretar. Bernardo Pires de Lima, como perspicaz e cultivado observador da cena internacional que é, notou as versões, enquadrou-as com os acontecimentos e decantou daí a sua leitura como cientista político. E não deixou de retirar as suas próprias conclusões.
Começo por notar que, para o livro, são convocados vários testemunhos. Do lado do governo, as vozes escutadas foram António Martins da Cruz, à época ministro dos Negócios Estrangeiros, e David Dinis, assessor de imprensa de Durão Barroso. Pena é que o próprio primeiro-ministro não se tivesse pronunciado, do mesmo modo que teria sido enriquecedor ter uma versão dos factos dada por Nuno Brito, o então assessor diplomático do primeiro-ministro e principal interlocutor dos gabinetes dos chefes dos governos estrangeiros. Refira-se que, à época, era essa a instância central de tratamento da questão, o que, para além de aspetos idiosincráticos, pode também justificar algum distanciamento que transparece do discurso do chefe da diplomacia portuguesa. Por parte da oposição, Ferro Rodrigues e Ana Gomes representam bem a linha partidária que então mais se afirmou. Noutra área socialista, é também ouvido José Lamego, num expectável registo diverso, como seguramente também o seriam os de Jaime Gama ou Luís Amado. Finalmente, o comissário europeu António Vitorino e o presidente da República Jorge Sampaio trazem-nos interessantes visões institucionais, que ajudam bastante a explicar capítulos desses tempos. Sem que isto deva ser entendido como uma crítica ao processo de construção do livro, senti pena, ao lê-lo, que não tivessem sido incluídos alguns contrapontos externos, em especial do lado espanhol e de dois países que representavam o “outro lado” europeu: a França e a Alemanha. Como nos olhavam por esses dias? Podemos presumir, mas seria interessante lê-los em “on”.
Iraque - o alvo americano
O primeiro capítulo do livro chama-se, significativamente, “Uma decisão americana”. O curso do texto deixa muito claro que a decisão de invasão do Iraque de Saddam Hussein estava tomada por Washington muito antes desta ser concretizada. Bush começara a sua presidência focado em questões internas e, se recordarmos os seus primeiros meses, o único tema externo importante para Washington começou por ser a China. Os ataques de 11 de setembro de 2001 mudaram tudo. No livro é analisado, de uma forma muito rigorosa e completa, o modo como a agenda ideológica neoconservadora, que estava nos bastidores da administração Bush, soube cavalgar, de forma hábil e rápida, os ataques terroristas e redirecionar a vontade americana para encetar uma guerra direta a Saddam Hussein.
A literatura interpretativa sobre a atitude americana é abundante, mas a síntese que Bernardo Pires de Lima nos traz é altamente clarificadora sobre um ponto - o processo de formação da decisão americana esteve sempre totalmente autónomo de qualquer compromisso ou entendimento internacional e, mesmo no tocante às Nações Unidas, a sua utilização foi sempre vista como meramente instrumental e, nem por um segundo, como condicionante da execução da decisão final. Fica claro que os “esforços” junto da ONU tiveram mais como objetivo procurar ajudar os seus potenciais aliados para uma futura intervenção (em especial o Reino Unido) a obterem argumentos legitimadores, com vista a sossegarem as suas opiniões públicas, do que o interesse concreto em os EUA poderem obter, para si, qualquer espécie de “luz verde” multilateral. No entanto, pressente-se uma dualidade no seio da administração entre a dimensão diplomática que tenta, até muito tarde, um “face-saving” formal e uma vontade político-militar, predominante desde o primeiro momento. Este livro carreia ainda argumentos demonstrativos de que a alegada “agenda democrática” para o Iraque foi um tema tardio e supletivo face ao projeto de mudança de regime em Bagdad que já estava determinado e era o objetivo essencial.
O livro analisa com atenção o debate havido no seio da União Europeia perante a iminência do ataque americano. É descrita a génese da “carta dos oito” e da posterior “carta de Vilnius”, com a emergência de uma clara clivagem entre a “nova Europa”, como foi crismada pelo secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, e a “velha Europa”, centrada no eixo franco-alemão. A Europa comunitária procurava desesperadamente, num esforço de retórica de compromisso, iludir a sua inelutável divisão interna: entre os que pugnavam pela preeminência absoluta e inultrapassável das Resoluções da ONU e o intravável tropismo pró-americano de alguns parceiros, com o Reino Unido à cabeça e uma legião de novos aderentes na UE (e na NATO) a segui-lo.
Bernardo Pires de Lima detém-se também na questão das “armas de destruição maciça” e do grau de informação que Portugal dispunha sobre o risco iraquiano nesse domínio. Talvez valha a pena começar pelo fim e recordar que não havia “armas de destruição maciça” no Iraque. Por isso, todas as informações que, sobre o assunto, possam ter sido apresentada a Portugal eram falsas - ou produto de má informação ou simplesmente forjadas. Nunca ninguém saberá o que foi realmente mostrado aos dirigentes portugueses por essa altura - não apenas a Durão Barroso mas igualmente a um ator que está ausente desta história, o então ministro da Defesa, Paulo Portas, que à época se vangloriava de uma forte relação com Rumsfeld. Sabe-se apenas que as tais “informações” devem ter sido convincentes, embora, de uma leitura atenta do livro, nos fique a impressão, admito que errónea, de que a decisão final do governo de Lisboa teria sido sempre a mesma, com ou sem “armas de destruição maciça”.
O debate doméstico
As relações com os EUA foram sempre - e continuam a ser - um dos pilares estruturantes da política externa de Portugal. Bernardo Pires de Lima faz uma análise dessa postura, que, por regra, não costuma ser divisiva nas forças políticas portuguesas com vocação de governo. De facto, com a expectável exceção do Partido Comunista Português e dos heterónimos que, por épocas, as formações de extrema-esquerda utilizam, o espetro partidário com assento parlamentar, com naturais “nuances”, afirma sempre uma atitude simpática para com o reforço das relações com os EUA. Curioso, aliás, é verificar que, no Partido Socialista, a titularidade da chefia da política externa é sempre assegurada por figuras com um perfil indiscutivelmente pró-americano, por vezes ainda mais afirmado do que o dos seus contrapartes oriundos de partidos conservadores.
“O debate em Portugal” é, sem dúvida, o capítulo mais original deste livro, num país onde, como bem nota o autor, parece haver um recorrente de pudor político em escalpelizar as decisões com impacto externo. De uma leitura atenta do texto é-se levado a concluir, em mais do que uma passagem, que Durão Barroso terá ficado “seduzido” pela importância que Bush aparentemente lhe foi concedendo, à medida que se apercebeu que o primeiro-ministro português, sob influência de Blair e de Aznar, se inclinava para subscrever a sua tese da imperatividade da ação militar contra o Iraque. As únicas “reticências” que o dirigente português colocava, no que não diferia dos outros aliados próximos, era sobre a necessidade de ser esgotado o leque possível tentativas de conseguir um respaldo legitimador por parte do Conselho de Segurança da ONU. Mas Barroso nunca deixou de indiciar que, em caso de impasse, jamais optaria por uma qualquer “neutralidade” face ao aliado transatlântico em conflito com Bagdad.
No processo interno português, o mais interessante de observar é talvez a relação que Barroso foi mantendo com o presidente Jorge Sampaio sobre a matéria. O presidente, desde o primeiro momento, deixou bem claro que considerava um mandato internacional essencial para poder dar a sua “luz verde” a um engajamento formal de Portugal numa eventual ação militar. Mas Sampaio também sabia que não estava nas suas mãos evitar uma posição política por parte do governo favorável a uma intervenção unilateral americana, se esse fosse, como veio a ser, o caso. O livro acompanha muito bem este processo diacrónico, que se presume tenha momento algo tensos. Deduz-se que Barroso teve um extremo cuidado formal com vista a não cometer deslizes que pudessem ser lidos como uma quebra de lealdade institucional ou do dever de informação. Fica a ideia de que Sampaio pressentiu, desde muito cedo, como tudo iria acabar. Barroso levou a água ao seu moínho, Sampaio salvaguardou a sua posição institucional. Tudo bem?
O autor dá a entender que entre o Presidente e a liderança socialista, titulada por Eduardo Ferro Rodrigues, se bem que assente em termos comuns de referência, não havia uma total coincidência. No diálogo do governo com o Partido Socialista não houve, contudo, quaisquer surpresas. Ferro Rodrigues nunca se mostrou minimamente disposto a acompanhar o tropismo incondicional do governo pela posição americana, exigindo sempre, de forma muito clara, uma cobertura multilateral prévia a qualquer nova ação no Iraque. Fica a sensação de que Durão Barroso cedo deve ter considerado perdida qualquer hipótese de compromisso com Ferro Rodrigues. Mas, para a história especulativa, para sempre ficará a pairar a dúvida sobre se, num outro cenário de liderança socialista, alguma complacência poderia ter surgido do lado do Largo do Rato.
A ambição espanhola
Um dos aspetos mais interessantes deste livro prende-se com o papel da Espanha, um ator não usual no terreno atlântico. Tudo indica que a Espanha, que vivia um tempo de euforia afirmativa à escala global, com um crescimento económico que a colocava às portas do G8, terá sentido a oportunidade que poderia representar para Madrid a captação da boa vontade americana num momento desta delicadeza. Por isso, Aznar não terá hesitado em afrontar uma opinião pública hostil a qualquer intervenção no Iraque e cedo de se colocou ao lado do Reino Unido, num sólido pilar europeu de apoio a Bush, alterando mesmo uma tradicional postura de Madrid face ao mundo árabe. O argumento da legitimidade da luta anti-terrorista e a definição de uma postura atlantista que lhe fizesse ganhar mais espaço noutros tabuleiros geopolíticos serviam de suporte a esta determinação. Depois de Blair, Aznar viria a tornar-se no “enfant chéri” europeu de Washington.
A crer no testemunho de Martins da Cruz, o presidente do governo espanhol terá sido o elemento instrumental na ideia de levar Portugal para o grupo que acabará por ter a sua “consagração” na chamada cimeira das Lajes. A ideia da realização da reunião nos Açores parece, de facto, ser de Aznar, mas há sinais de que terá sido a vontade conjugada de Londres e Madrid que terá levado Bush a esta cooptação de um parceiro menor, embora atlântico por natureza e com uma nunca desmentida afetividade geopolítica pelos EUA. Uma leitura “patriótica”, que pode ter fragilizado algumas defesas internas, apoia-se, precisamente, na leitura de que Portugal não podia deixar a Espanha “sozinha” nesta sua tão expressiva mudança de agulha em direção a Washington, pelo impacto que isso poderia acabar por ter na decisiva boa vontade americana em dossiês à época tão complexos como o dos comandos NATO ou o futuro da base nos Açores. Como dizia Pirandello, a cada um a sua verdade...
Como sempre acaba por suceder nestas circunstâncias, há um a diversidade de fatores que concorrem para uma mesma decisão, alguns de oportunidade, outros de vontade. Não estou minimamente de acordo com Bernardo Pires de Lima quando afirma que “o objetivo de elevar a diplomacia portuguesa a um patamar mais elevado acabou por ser alcançado com o processo de decisão desenhado pelo governo português”. Na minha perspetiva, a “photo opportunity” das Lages esteve longe de dignificar Portugal ou a nossa política externa - sendo que a diplomacia é apenas decorrente desta e só é protagonista “by default”, quando a fragilidade da ação política assim a obriga.
Uma derradeira questão, que o autor também coloca, prende-se com o eventual “calculismo” de Durão Barroso: terá ele manobrado este processo com vista a colocar-se no lugar certo no momento oportuno, para o “timing” da escolha do futuro presidente da Comissão Europeia? Não creio. Os tempos não eram fáceis de conjugar, embora do livro nos fique a críptica afirmação de Jorge Sampaio de que “o dr. Barroso é um excelente gestor das relações de poder”.
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