“Portugal não é só uma nação europeia e tende cada vez mais
a sê-lo cada vez menos”. Era assim que Salazar, o ditador paroquial que dirigiu
o país durante mais de quatro décadas, olhou o destino coletivo que teimou em
tutelar. Um destino que, para todos nós, mudou subitamente, numa noite de abril
de 1974, quando os militares, que por muito tempo haviam sido a guarda
pretoriana do regime, decidiram pôr fim àquele pesadelo, cansados que estavam
das insensatas guerras africanas e do regime parado no tempo que as conduzia. É
sobre essas aventuras do destino português e do lugar do meu país no mundo que lhes
venho aqui falar.
Fui diplomata por quase quatro décadas. Entrei para essa
profissão no auge da revolução, num tempo de muitas incertezas mas de bastantes
mais esperanças. Portugal parecia ter renascido, dava ares de estar
recém-acordado de um pesadelo. Tudo era então possível, aos olhos otimistas dos
seus cidadão. O mundo sorria-nos e, para muitos, tinha chegado o momento de
tentar dar ao país um novo destino. Essa ilusão de que comandávamos o nosso
próprio futuro, que tinha muito de ingénua, era também ela muito “portuguesa”.
Quando deparo com algumas explicações filosóficas sobre o
que é “ser português” devo dizer que sinto sempre a tentação de tentar
descriptar essa realidade. Portugal é um país simples, os portugueses não têm
por hábito refletir muito sobre o seu destino, quem sabe se para não serem
confrontados com respostas que lhes desagradarão. Vendemos a nós próprios a
ideia de que, sendo um país antigo, um dos mais velhos países do mundo, não
temos necessidade dessa introspeção futurologista.
Talvez por isso, porque o que aí vem é sempre fonte de
interrogações incómodas, olhar o passado foi, durante muito tempo, o nosso
passatempo nacional favorito. O regime ditatorial cultivava esse orgulho
nacionalista, fazia-nos tropeçar, a cada dia, nas glórias dos Descobrimentos,
nas sagas africanas, nas viagens nas frágeis “caravelas” por mundos
desconhecidos. É verdade que esses foram tempos extraordinários em que um país
com um milhão de habitantes se lançou pelo globo, circundou e conquistou muita
África, descobriu pelo caminho o Brasil, foi uma potência comercial no Golfo,
estabeleceu-se por séculos na Índia, ficou por largos tempos na China, vendeu
as primeiras armas ao Japão, palmilhou as ilhas indonésias.
Costumo dizer que,
se acaso Portugal fosse um país rico, com capacidade para projetar pelo mundo,
em filmes ou em cátedras, essas aventuras fantásticas de Quinhentos, a nossa
imagem seria hoje outra. Mas logo sou levado a concluir que por alguma razão é
que não somos um país rico…
Há uma anedota, um tanto auto-flagelatória, que os
portugueses contam sobre si próprios. Um português diz para o outro: “Como é
possível que nós, descendentes dessa gente que foi pelo mundo fora, de um país
minúsculo, que criou um império grandioso, sejamos hoje os habitantes daquele
que é o Estado mais pobre da Europa ocidental”. O outro interlocutor, mais cínico,
mas talvez mais realista, responde-lhe: “Estás enganado! Nós não somos os
descendentes dessa gente, dos que foram pelo mundo fora, dos que “deram novos
mundos ao mundo”. Nós somos descendentes dos que ficaram por aqui…”.
Nunca saberemos onde está a verdade e, na realidade, isso
talvez não seja muito importante. Constato que os portugueses de hoje são, cada
vez mais, algo frios ao analisar o seu destino. São capazes, e este texto é também
uma prova disso, de levar a cabo exercícios de auto-análise de onde a sua
imagem pode sair menos bem. Mas com muita facilidade se zangam com quantos,
sendo estrangeiros, lhes ferem a dignidade, por apreciações que entendem
injustas.
Portugal tem consciência da imagem que sobre si há muito
sobrevive pelo mundo. Nesse retrato somos pintados como um país sempre nostálgico
do tal passado de grandeza, incapaz de ter a força de vontade e de organização
para nos transformarmos, de uma vez por todas, num caso de sucesso.
Quando olhados
do Norte da Europa, os portugueses são vistos como um povo amável, capaz do
sofrimento, que tem momentos episódicos de excelência que, contudo, parece não ser
capaz de sustentar, por falta de perseverança, por um tropismo para a
desistência, por uma dificuldade atávica de levar as coisas até ao fim.
Até na forma desajeitada como tentou fazer sobreviver um
império colonial parado do tempo Portugal se revelou ao mundo como menos capaz
de controlar o seu próprio destino. Nos dias de hoje, na nova Europa, o país
surge ainda aos olhos de muitos como uma entidade cuja fragilidade conduz a que
o seu futuro dependa, em grande parte, das decisões dos outros.
Mas, afinal, como somos, como é que fomos moldados pela
História, como é que nos colocámos, ao longo do tempo, face ao mundo exterior?
Que medos nos tolhem os movimentos? Que mitos nos absorvem as ambições? Como é
que nos tornámos no que hoje somos? E, finalmente, como olhamos para a
Alemanha?
A grande vantagem deste tipo de reflexões é que todas as
ideias que se possam adiantar sobre temas tão polémicos e emocionais acabam por
ter um pouco de verdade, misturada com alguma fantasia e com a vontade de que o
futuro acompanhasse os nossos desejos. Como costumamos dizer em Portugal,
relativizando a autoridade das nossas certezas, tudo isto “vale o que vale”.
O inimigo de Castela
Na infância da minha geração, passada durante a ditadura
salazarista, a doutrina oficial, propagada nos livros e induzida a todas as
crianças, era a de que o perigo para a existência de Portugal como Estado
independente vinha exclusivamente de Espanha, mais precisamente de Castela. É
verdade que a História provava que o apetite de Madrid para fazer coincidir a
sua soberania com o mapa da península ibérica se manteve por muito tempo. A
História não mentia. Durante 60 anos, entre 1580 e 1640, os reis espanhóis
(três reis sucessivos, todos chamados Filipe), chegaram a reinar sobre Portugal
e só uma obstinada revolta pôs fim àquilo a que ainda hoje chamamos o “período
filipino”.
Embora o atual rei de Espanha seja de novo um Filipe, não
creio que alguém em Portugal tema hoje a tutela espanhola, que agora apenas se
exerce na área económica, como resultado natural do peso diferenciado da sua
economia, numa Europa completamente aberta à competição.
Ainda antes da Espanha existir como um todo, Castela era o
retrato do inimigo natural de um país que tem um único vizinho terrestre e que,
com exceção de algumas dezenas de quilómetros, mantém a sua fronteira
inalterada desde há quase nove séculos. De facto, a haver algum risco exterior
para a soberania portuguesa – e vários houve – o perigo só podia vir de
Espanha. Mas a verdade é que a última vez em que esse risco existiu de forma
concreta foi durante as invasões napoleónicas, no início do século XIX, quando
Paris chegou a planear com Madrid a partilha de Portugal.
No entanto, na doutrina diplomática portuguesa, mesmo para
além da primeira metade do século XX, o “perigo espanhol” era a constante linha
de defesa psicológica do país. Salazar cultivou-a, por detrás dos entendimentos
formais que fez com Francisco Franco, nessa aliança de ditaduras que tentava
escapar a um mundo exterior que o seu peso político não tinha condições para
condicionar. Mesmo detestando-se, os dois ditadores ibéricos estavam unidos
pelo seu anti-comunismo, que sempre rimou bem com os interesses ocidentais na
Guerra Fria.
Só a entrada comum de Portugal e de Espanha para as
instituições europeias, bem como a estabilização da presença mútua na NATO,
viria a atenuar estes temores e a criar um discurso mais compatível com a
modernidade de um mundo que, pelo menos nas suas zonas democráticas não vive já
assoberbado por esse tipo de fantasmas.
O império
Regressemos um pouco atrás. Portugal começou a perder o seu
império com a independência do Brasil, em 1822. A verdade é que o espaço
imperial que nascera da fantástica aventura dos portugueses, a partir do século
XV, era já então uma sombra daquilo que fora em outras eras. Por falta de massa
crítica no seu território europeu e pela pressão de poderes coloniais
concorrentes, Portugal foi-se enfraquecendo como poder global, com uma economia
onde nunca conseguiu aproveitar devidamente a extensão das suas conquistas.
No início do século XIX, o Brasil era, a grande distância, a
“jóia” mais valiosa e não é por acaso que a coroa portuguesa, acossada pelos
exércitos de Napoleão, vai procurar refúgio nessa sua colónia sul-americana. Na
Ásia e Oceania, Portugal mantinha uma presença residual em Timor, geria uma
simbólica aldeia chinesa chamada Macau, possuía postos já sem o menor significado
económico na costa ocidental do Industão. Em África, conservava apenas
possessões com presença essencialmente costeira, embora fosse a partir das
colónias africanas que Portugal explorava o mercado de escravos, rendoso negócio
a que o século XIX iria pôr termo.
A independência do Brasil, que significou o fim da sua mais
rica colónia, marcou o início inelutável do declínio português. Politicamente,
terminava também no Portugal europeu o “ancien regime” e, como resquício das
ideias das “luzes” que as tropas napoleónicas possam ter deixado, abria quase
um século de um novo regime monárquico liberal, politicamente instável,
divisivo e com escassos recursos económicos. Sem capacidade para extrair das
restantes colónias riquezas que permitissem sustentar o seu desenvolvimento,
Portugal iria atravessar, até 1910, ciclos políticos de grande
instabilidade.
O Reino Unido, embora mantivesse alguns conflitos com
Portugal por virtude de algumas ambições africanas concorrentes, sustentava uma
tutela permanente sobre o posicionamento estratégico de Portugal. Londres, como
“protetor” de Lisboa face às potenciais ameaças de Madrid, geria habilmente uma
influência que se prolongaria por muitas décadas, atravessando todos os regimes
portugueses, até à recuperação da democracia, em 1974.
A República
Em 1910, em Portugal, nasceu a segunda República do
continente europeu, após a francesa. Foi um regime fraco, assente numa
burguesia urbana que se quis ver livre de uma monarquia desprestigiada, abalada
pelo assassinato do penúltimo rei, em 1908.
A nova República foi instalada num país pobre e com um
projeto nacional assente na miragem de ainda poder vir a usar o seu império
colonial como alavanca para um futuro de glória, há muito adiado. Portugal
entrou na I Guerra Mundial exclusivamente para defender as suas colónias, para
poder ter um lugar à mesa negocial do final do conflito. Consegui-o, mas as
vantagens foram escassas.
As sequelas da guerra deixaram arruinados os cofres do país,
as tensões políticas internas foram agravadas e nas Forças Armadas, marcadas negativamente
no seu orgulho pelas perdas sofridas na Flandres, emergiram simpatias por
tendências políticas autoritárias, em sintonia com o que surgia em alguns
países europeus. Em 1926, o exército, através de um golpe de estado, colocaria
um termo à primeira e breve experiência republicana, abrindo caminho a quatro
décadas de supressão de liberdades no país.
Salazar
O “Estado Novo”, o modelo constitucional criado por Salazar,
a quem os militares portugueses entregaram entretanto o poder, seduzidos pelas
suas capacidades como “mago das Finanças”, foi um regime que prendeu e
perseguiu largos milhares de pessoas, abafou a vida intelectual, coartou as
liberdades públicas, desenvolveu escassamente o país, atrasando-o em matéria de
educação e qualificação.
A “realpolitik” da tutela britânica protegeu sempre Salazar,
ajudando mesmo a abrir caminho a uma cooperação mais intensa com Washington,
que teve o seu mais flagrante exemplo nas facilidades até hoje concedidas aos
Estados Unidos da América nos Açores. Durante a Segunda Guerra Mundial, o
ditador procurou habilmente preservar uma equívoca neutralidade, a qual, à
medida que a situação se desequilibrava em favor dos aliados, se transformou naquilo
que ficou qualificado de “neutralidade colaborante” – porventura a expressão
mais cínica e que melhor define o oportunismo da diplomacia do ditador.
Com o fim da guerra, mas já no auge da Guerra Fria, os
aliados terão decidido não forçar Salazar a democratizar o país, temerosos com
uma possível deriva do país para o comunismo. Os portugueses foram assim condenados
pelos seus aliados ocidentais – Portugal foi fundador da NATO, a Espanha não –
a continuar a sofrer, por mais algumas décadas uma ditadura, com regulares
farsas eleitorais, proibição dos partidos, censura permanente à imprensa,
presos políticos e torturas. O ocidente conviveu sempre bem com o autoritarismo
salazarista e Portugal comprava esse silêncio com facilidades militares concedidas
aos EUA e à França nos Açores, bem como à Alemanha em Beja. A ditadura
portuguesa nunca perturbou excessivamente as consciências democráticas europeias
e americana.
A eclosão das revoltas coloniais viria a colocar Salazar sob
forte pressão internacional, num mundo em que as potências colonizadoras
europeias já se haviam resignado a promover a independência das suas colónias.
Em 1961, Angola iniciou a sua luta anti-colonial e, no final desse mesmo ano, a
União Indiana invadiu os poucos territórios que Portugal aí ocupava desde há
quatro séculos. Em 1964, Moçambique e a Guiné-Bissau pegaram também em armas. A
década seguinte seria terrível para Lisboa, com guerras em três frentes e uma
crescente pressão exterior. O mundo ia isolando Portugal nas instâncias
multilaterais, mas os aliados ocidentais continuaram discretamente a ajudar à
sobrevivência do regime ditatorial através de investimentos e comércio.
Depois dos cravos
No amanhecer do dia seguinte à Revolução de 25 de abril,
muitos poucos terão imaginado que o lugar de Portugal no mundo ia ser fortemente
afetado por essa sua escolha própria e pelo modo como o país passaria a ser
observado pelo mundo exterior.
Alguma perplexidade sobre a situação daquele pequeno país no
extremo ocidental da Europa, feita de curiosidade e interrogações, atravessou as
opiniões públicas pelo globo, depois da vitória dos capitães revolucionários em
Portugal, com cravos nas pontas das espingardas, um retrato que tinha algo de
folclórico e muito de contraditório – normalmente, os golpes de Estado militares
não ocorriam para implantar democracias…
O sentido do novo regime político foi atravessado, desde o
primeiro momento, por uma tensão entre quantos desejavam uma rutura profunda
com o passado e aqueles que temiam que um salto radical acabasse por ter
efeitos que o país não absorvesse e que o mundo não aceitasse. O ambiente “esquerdista”
do início a Revolução era visto com alguma preocupação por setores ocidentais,
que temiam que, de um dia para o outro, um fiel aliado da NATO pudesse
transformar-se num parceiro imprevisível e incontrolável.
O surgimento do Partido Comunista, não apenas à luz do dia,
mas principalmente no seio do próprio Governo, não ajudou a afastar estes
receios e causou alguma perturbação internacional (embora, sete anos mais
tarde, a França viesse a fazer, também de forma inócua, a mesma experiência).
Essas dúvidas foram ainda agravadas pelo facto da União Soviética e os seus
satélites se terem, de imediato, movimentado na direção de Lisboa, tentando desequilibrar
as contas da Guerra Fria, cujo termo, recorde-se, só iria ter lugar um quarto
de século depois.
Mas se o novo regime no Portugal europeu era uma
considerável incógnita, muitos perceberam de imediato que era nas colónias
africanas que um novo “great game” se ia jogar.
A Revolução fora feita com dois evidentes objetivos:
democratizar Portugal e pôr fim às três guerras coloniais que Portugal mantinha
em África (Angola, Moçambique e Guiné-Bissau). O destino de Angola era aquele
que mais preocupava o Ocidente porque era, com toda a evidência, aquele que
mais motivava a União Soviética.
“To make a long story short”, a abertura a uma rápida independência
das colónias africanas (Timor-Leste é um caso à parte) acabou por ser
imperativa: os militares portugueses que estavam em África, cansados das
guerras, confortados por uma revolução que fora feita para lhes pôr termo,
deixaram pura e simplesmente de combater. A entrega do Império sem luta tornou-se
assim facto a prazo curto e as negociações com os novos poderes emergentes foram
um mero pró-forma.
Portugal acordou então para uma outra mudança decisiva no
seu mundo. Um pouco menos de um milhão de portugueses que habitavam nas
colónias perceberam rapidamente que não tinham condições para continuar a viver
nesses novos países. Grande parte deles regressaria a um Portugal europeu em
convulsão interna, onde uma deriva esquerdizante tinha levado a um surto de
nacionalizações e à criação de um ambiente pouco propício ao interesse do
investimento estrangeiro, o único que poderia dar um impulso à economia. Para
muitos, o choque entre esses saudosos do Império e um regime visivelmente
noutra onda era inevitável e poderia ser uma bomba política a prazo. Nada disso
ocorreu. Tudo acabou por passar-se com uma quase naturalidade: Portugal nunca
teve “pied-noirs” e esses “retornados” integraram-se e desapareceram com
inesperada facilidade num país onde a grande maioria nunca tinha sequer vivido,
mas onde foram absorvidos pelas redes familares. Essa é a maneira de ser do
povo português.
Voltando ao mundo e a nós. Não obstante ter “flirtado” por
algum tempo com uma tentação de optar por uma “terceira via” entre o socialismo
e o capitalismo, seduzido pelo modelo jugoslavo, o tempo mostraria que Portugal
tinha uma clara vocação ocidental, que o regime de economia privada ia acabar
por prevalecer e que a opção transatlântica e a fidelidade à Aliança Atlântica
nunca seriam postas em causa por Lisboa.
A nova constituição do Estado, aprovada em 1976, foi
lentamente diluída no seu modelo socializante e deu mostras de poder evoluir
para um enquadramento legal perfeitamente compatível com uma economia de
mercado e, mais do que isso, com o modelo político europeu que espreitava por
detrás dos Pirinéus.
Afinal, europeus
Contrariando a leitura mítica do destino português feita por
Salazar, recordada do início deste texto, o novo Portugal democrático cedo se
mostrou adepto do projeto de integração em liberdade que ligava a Europa para
cá do muro de Berlim. A geografia tem muita força. Até a ditadura, por razões
práticas, não havia escapado à necessidade de se integrar na EFTA (Associação
Europeia de Comércio Livre), em cujo espaço se ancorava grande parte da sua
economia.
As instituições das Comunidades Europeias só com a
democracia instalada em Lisboa viriam a mostrar-se abertas estudar o
acolhimento a Portugal. Mário Soares foi o rosto mais visível do novo Portugal,
que, pelas paredes, não se cansava de apregoar que “a Europa está connosco”.
Com exceção natural dos comunistas, todo o país o seguiu.
De forma surpreendente para o mundo e até para si próprio,
Portugal entregou-se com grande entusiasmo à aventura europeia. O ciclo
africano tinha terminado e era ainda muito cedo para conseguir, depois dos
traumas coloniais, reconstituir uma “rede” com o mundo que fala português –
quase 240 milhões de pessoas, distribuídas por oito países nos cinco
continentes, que hoje constituem a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP).
De início, a partilha do projeto europeu foi feita de uma
forma tímida, algo defensiva, parecendo o país apenas interessado nas ajudas
financeiras que poderiam permitir que desse, com rapidez, alguns saltos no seu
desenvolvimento. Curiosamente, dessa Europa faziam já parte muitas centenas de
milhares de emigrantes, que a ditadura forçara a espalhar em grandes número por
países, como a França, a Alemanha e o Luxemburgo, grande parte dos quais, com
naturalidade, regressariam agora ao seu país de origem.
Desde a sua entrada naquilo a que hoje se chama União
Europeia, ficou patente que Portugal levou muito a sério o exercício. Todos
recordam as excelentes presidências portuguesas, o modo responsável e construtivo
como sempre se comportou à mesa do Conselho de Ministros, algumas boas
prestações que conseguiu levar a cabo no seio da Comissão Europeia. Além disso,
Portugal cuidou sempre em contribuir de forma muito particular para reforçar o
quadro de relações externas da União, não apenas pela sua relação particular
com África (Portugal organizou duas cimeiras Europa-África), mas igualmente
pelo seu diálogo fácil com países da importância do Brasil, da China ou da
Índia, aos quais o ligam laços muito especiais. Da mesma forma, foi notada a
ativa presença portuguesa nos quadros europeus de cooperação mediterrânica e transatlântica.
A preservação de uma dimensão ética na sua diplomacia, em defesa da liberdade e
dos Direitos do Homem, ficou bem patente, aos olhos europeus, na luta, muitas
vezes quase solitária, mas que acabaria por ser vitoriosa, pelo direito à
autodeterminação de Timor-Leste.
Em poucos anos, o país periférico e menos desenvolvido que
Portugal nunca deixou de ser revelava um entusiasmo claro pelo processo
europeu. Aí defendeu sem hesitações o alargamento a Leste, esteve presente de
forma muito evidente nas ações de “peace-keeping” em que a Europa se envolvia,
foi um ativo ator nas negociações institucionais e criou uma voz própria no
Conselho de ministros europeu, onde foi apreciado pelo seu equilíbrio e sentido
de compromisso. Na linha tradicional da sua diplomacia, em que, sem surpresas,
a importância do laço transatlântico permaneceu sempre como eixo orientador,
Portugal quis-se sempre como um país “previsível”, que cumpre o que diz que vai
fazer, com uma palavra que não voga em função das conjunturas.
Para Portugal, a Europa não era assim uma aposta de
oportunidade. Por muitas dúvidas que alguns possam hoje alimentar sobre os
caminhos que leva o projeto de integração continental, Lisboa fez questão de
estar presente em todos os núcleos de maior integração (de Schengen ao euro) e
continua a ser um país onde a vontade de participação no projeto europeu tem
uma expressão francamente maioritária na opinião pública.
A crise
Os portugueses ficaram atónitos com o modo como a crise
internacional se abateu sobre o país? Não creio. Posso compreender que isto
seja discutível, mas tenho a perceção de que os portugueses percebem, de há
muito, que a sua economia vive numa espécie de corda bamba, da qual é possível
cair a qualquer momento e em que a hipótese mais improvável é a possibilidade
de nela se manter em constante equilíbrio. Naquilo que alguns estrangeiros, com
ar sobranceiro, interpretam como uma espécie de modorra mediterrânica de vida, creio
que Portugal é um país que percebe bem o mundo em que vive, o tipo de Europa em
que está integrado e, muito em especial, a fragilidade endémica da sua posição.
Por isso, quando as coisas correm mal, muitos portugueses, em lugar de se
lamentarem excessivamente, não hesitam em sair para uma nova aventura, em recomeçar
tudo noutro lado, em emigrarem – coisa que fizeram ao longo de séculos. Saíram
à rua reclamando contra as medidas de austeridade impostas, mas quase sempre o
fizeram de forma serena e cordata. É esta a maneira de ser dos portugueses,
para o bem e para o mal.
Portugal é um país com muito escassos recursos naturais, com
uma agricultura que não beneficia da generosidade da Política Agrícola Comum,
como acontece com os seus parceiros alemães ou franceses, para quem, desde o
início, foram desenhadas essas mesmas ajudas. Vivendo numa periferia geográfica
com elevados custos, o país foi, durante anos, condenado a produzir com base em
indústrias tecnologicamente atrasadas, que a ditadura protegeu através do
“condicionamento industrial”, que favorecia o “statu quo”, não estimulando o
risco e a capacidade empreendedora, confortada com o mercado interno e colonial.
Com a progressiva quebra da sua agricultura tradicional, a que se seguiu o
declínio da sua indústria de base tecnológica inadequada, o turismo e outros
serviços acabaram por ser os sectores de refúgio de muita mão-de-obra, cuja
reconversão, contudo, era muito limitada pela sua falta de qualificação
profissional. O desemprego, a emigração e peso sobre o sistema de pensões
acabou por se abater sobre a economia de um Estado com escassa produtividade,
revelada por uma endémica falta de crescimento. Isso tornou-se muito evidente
quando a globalização surgiu no horizonte, colocando no mercado europeu, a
preço muito mais favoráveis, os produtos que a atrasada indústria portuguesa até
aí alimentava. Portugal não aproveitava as vantagens dessa abertura: não tinha
Audis, BMW ou Mercedes para exportar, pelo que se viu condenado a sofrer a
globalização sem sequer a poder usufruir. Essa debilidade era uma bomba a
prazo, à espera de uma crise.
Os fundos comunitários, uma compensação simpática pela
abertura do Mercado Interno e um instrumento para criar um apetecível mercado
para os produtos dos países do Norte, serviram entretanto para modernizar as
infraestruturas de um país que, nem por isso, deixa hoje de permanecer aquilo
que sempre foi: o mais pobre da Europa ocidental. Esse dinheiro serviu para
qualificar pessoas, para preparar médicos, enfermeiros e engenheiros que hoje
são atraídos pelas economias europeias mais desenvolvidas, que os utilizam sem
terem gasto um cêntimo na sua formação. Estas são as “contas” que a Europa do
Norte vulgarmente não faz.
Os portugueses sabem tudo isso. Não se sentem
particularmente gratos à Europa, porque sabem que o “negócio” europeu é um jogo
de soma zero: ninguém dá dinheiro sem retorno, ninguém os financia apenas pelos
seus “lindos olhos”. Os milhões que as instituições internacionais emprestaram
a Portugal entre 2011 e 2014 estão a ser pagos “com língua de palmo”, com juros
muito elevados, que serviram para tornar mais claro quem são os que sempre
aproveitam financeiramente com as crises. Em geral, os portugueses pensam:
Portugal está endividado? Está, por deficiências da sua máquina pública, que,
não sendo exagerada nem luxuosa em termos europeus, tem disfunções que a classe
política não teve até hoje coragem para atacar. Mas muita dessa dívida é aquilo
que a sua banca pediu emprestado para financiar as importações que fez dos
grandes países produtores europeus, os custos de infraestruturas que
importantes empresas de países dentro da União Europeia também vieram para aqui
construir e aproveitar.
Mas os portugueses também pressentem que têm de responder, sem
a menor hesitação, à questão: temos de pagar essa dívida? Temos, só que com
prazos e juros que não empobreçam ainda mais o país. Como em todos os
“negócios”, há que discutir. E Portugal vai fazê-lo.
A Alemanha e nós
Por virtude da crise económica que ainda atravessa, a imagem
da Alemanha, que durante anos passou por um “bom gigante”, degradou-se bastante
em Portugal.
Portugal nunca foi um país fortemente pró-germânico. Nas
sequelas da Primeira Guerra, a imagem negativa dos “boches” encheu a imprensa
da época, numa reação muito ligada às consideráveis percas humanas e militares
que o país teve na fase final do conflito. Dentro da máquina política da
ditadura que se implantou em Portugal a partir do final dos anos 20, o regime
nazi conseguiu encontrar apenas alguns envergonhados defensores. Nem Salazar
ousou abertamente defender Hitler, embora o oportunismo ainda o tivesse levado
a colocar a meia-haste a bandeira nacional após a morte do ditador.
As elites e as classes populares, contudo, sempre alimentaram
um profundo respeito e admiração pelo esforço fantástico que os alemães fizeram
para reconstruir o seu país, depois da tragédia dos anos 40 do século passado. Embora
não achando nunca muita graça ao modo de ser das gentes alemãs, bastante
contrastante com a maneira de estar latina, muitos portugueses interpretam uma
certa “brutalidade” germânica como a consequência natural de um passado feito
de grande sofrimento, que acaba por moldar a natureza humana. E uma parte da
elite portuguesa, nomeadamente nos meios académicos, é muito tributária das
escolas alemãs de pensamento.
Curiosamente, a emigração portuguesa para a Alemanha,
iniciada nos anos 60, não trouxe nenhum vínculo afetivo suplementar ao
relacionamento bilateral. Ao contrário do que aconteceu em França, a barreira
da língua e a distância cultural não terão ajudado à fixação definitiva na
Alemanha de grande parte desses trabalhadores pouco qualificados, a maioria dos
quais acabou por regressar a Portugal, sem aqui projetarem uma memória muito
vincada pelo tempo de vida no país para o qual haviam emigrado.
Num plano político, homens como Adenauer ou Brandt foram em
Portugal vistos com grande admiração, como figuras com uma imensa dignidade, que
souberam habilmente conduzir o seu povo pela via da reconciliação. Por isso, o
fim do muro de Berlim e a reunificação foram passos históricos olhados com
grande simpatia, porque iam no sentido de uma Europa de paz de que Portugal
estava interessado em ser membro de pleno direito.
Hermut Kohl foi também alguém que, na perspetiva política de
Lisboa, soube sempre entender os problemas portugueses, num projeto europeu
cuja exigência justificava algumas medidas concretas de solidariedade. E,
talvez por isso, o alargamento da União Europeia ao centro e ao leste da
Europa, que a Alemanha sempre defendeu, não suscitaram nunca a menor objeção
por parte de Portugal, contrariamente ao que muitos estariam à espera.
Já Angela Merkel nunca conseguiu suscitar um ambiente de
afetividade em Portugal, há que dizer isto com a maior franqueza. A sua atitude
face a Portugal nunca foi lida como marcada por um respeito por aquilo que eram
as limitações de um país e de um povo que, por um conjunto muito particular de
circunstâncias, havia sofrido a crise internacional de uma forma
desproporcionada. Justa ou injustamente, está hoje instalada na opinião pública
portuguesa a ideia de que a chefe do governo alemão assumiu, desde o início,
porventura conduzida por um forte sentimento popular no seu país, uma atitude
“punitiva” face ao desregulamento em que as contas portuguesas se haviam
deixado cair. Do mesmo modo, está criado o sentimento de que a Alemanha não
cuida em explicar à sua própria opinião pública que, nesta crise, ela acaba por
ser grande beneficiária financeira do mal-estar dos outros. Isso não é
entendido pela opinião pública portuguesa.
Não estou, contudo, pessimista quanto ao modo como Portugal
e a Alemanha se vão articular daqui para a frente. A memória dos povos é curta
e cada tempo tem a suas regras. Mas para que as coisas corram bem, é necessário
que a própria Alemanha readquira, aos olhos da generalidade dos seus parceiros
europeus, a imagem de um país que não tem uma ideia hegemónica do seu papel,
que respeita as ideias e sabe interpretar os interesses dos outros e que não
projeta a arrogante mensagem de que a Europa ideal do futuro é uma Europa que
seja a imagem da Alemanha do presente. Se assim acontecer, e espero que
aconteça, a Alemanha poderá voltar a ser visto com um dos grandes aliados de
Portugal no plano europeu.
(Capítulo no livro "Pontes por construir - Portugal e Alemanha")
(Capítulo no livro "Pontes por construir - Portugal e Alemanha")
Senhor Embaixador,
ResponderEliminar"Ao contrário do que aconteceu em França, a barreira da língua e a distância cultural não terão ajudado à fixação definitiva na Alemanha de grande parte desses trabalhadores pouco qualificados, a maioria dos quais acabou por regressar a Portugal"
Na realidade, esse facto prende-se também com o próprio estatuto do "Gastarbeiter" - trabalhador convidado suposto ficar na Alemanha um período limitado de tempo.
Cumprimentos,
F. Lopes da Silva
Excelente texto e incisiva perspectiva histórica sobre o contexto actual do País.
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