11 de fevereiro de 2016

Schengen e as ilusões europeias

O tempo desgasta as nossas ilusões. Na maioria das vezes, torna-nos realistas. Em outras, converte-nos ao cinismo. A sabedoria consiste em saber capitalizar o primeiro sentimento, sem nos deixar cair reféns eternos do segundo. Neste ano em que se comemoram 30 anos de presença de Portugal nas instituições europeias, somos também apelados a fazer um balanço crítico das ilusões europeias que fomos perdendo ao longo desse tempo. 

Aqueles que, dentre nós, acompanharam o processo desde o seu início, que nele operaram em diferentes capacidades e funções, tiveram o ensejo de experimentar as épocas diferentes desse projeto, de nele apreciar a evolução da atitude dos vários atores, sendo que nós próprio somos um dentre eles. E também nós mudámos muito.

É um lugar comum dizer-se que a Europa a que aderimos naquele dia primeiro de 1986 é muito diferente do modelo que hoje temos perante nós. Tenho, contudo, a sensação de que, ao afirmarmos esta obviedade, não temos a exata consciência da extraordinária dimensão dessa diferença. Não falo apenas do modelo institucional, sujeito a várias reformas por tratados posteriores, nem sequer dos alargamentos que lhe trouxeram mudanças drásticas na geografia, nos objetivos e na natureza. Falo da filosofia global do processo integrador, da cultura comportamental que hoje prevalece entre os seus membros, dos padrões de entendimento que marcam o quotidiano das instituições e de quem nelas age. As diferenças são, em tudo, abissais.

Vivemos numa Europa que, nas últimas décadas, passou por mutações muito profundas. Do fim da União Soviética, com o apagamento do ‘socialismo real” num considerável número de países, à criação de uma moeda única que hoje liga quase duas dezenas de Estados, o continente atravessou tensões muito fortes e enfrentou desafios potencialmente desagregadores. A Europa sobreviveu a esses traumas, mas seria ingenuidade pensar que estes embates com a História deixariam o continente incólume. 

Não obstante isso, o projeto daquilo a que chamamos hoje União Europeia conseguiu, não apenas manter a sua unidade essencial, como foi mesmo capaz de dar passos integradores decisivos, que hoje fazem parte do património coletivo. Diria mesmo mais: do implícito património coletivo, porquanto muito daquilo que hoje faz parte do nosso quotidiano está de tal modo interiorizado e “naturalizado” que, muitas vezes, nem sequer o identificamos como um valor acrescentado que nos chegou precisamente por via do projeto comum.

Nos tempos áureos de Jacques Delors usava-se a expressão “os custos da não-Europa” para significar quanto o não aprofundamento do projeto europeu acabava por pesar no deve-e-haver dos efeitos sobre os seus Estados. Nestes tempos em que o euro-ceticismo começa a marcar muitas agendas nacionais, em que cada vez mais cidadãos olham para o processo integrador como uma ameaça, em lugar de uma vantagem, talvez fosse tempo de “desconstruir” a Europa que temos e tentar isolar nela, sublinhando-o, o que representam os ganhos que entretanto todos obtivemos. Quero com isto dizer que talvez devêssemos fazer um inventário daquilo que seria hoje a cidadania no espaço europeu se acaso a Europa nos não tivesse “servido” um conjunto precioso de políticas, que hoje nem notamos, tão comuns são já à nossa existência. O acordo de Schengen é talvez o mais ilustrativo exemplo dessas vantagens “escondidas” que a Europa nos proporcionou.

A ousadia de Schengen

Olhando em perspetiva, somos forçados a reconhecer que Schengen foi uma imensa ousadia política. Sabidas as enraizadas identidades nacionais que compõem o tecido político europeu, é impressionante constatar que foi possível convencer Estados que representam cerca de 400 milhões de pessoas a abolirem todas as fronteiras entre si, a dispensarem o uso de passaportes, a prescindirem dos controlos a quem atravessa os seus limites e, o que não é menos significativo, a padronizarem, sob um modelo comum, verificável por terceiros, as suas fronteiras externas. 

Este passo só pôde ter lugar pelo facto de ter havido um reconhecimento coletivo, fortemente apoiado pela comunicação social e por um sentimento popular no mínimo não antagónico, das imensas vantagens que o novo modelo iria acarretar. A livre circulação de pessoas foi sempre vista, pelos europeistas mais fervorosos, como um passo essencial para o estabelecimento efetivo do projeto europeu. Contudo, esta era, dentre as chamadas “quatro liberdades” – pessoas, mercadorias, capitais e serviços – a que se presumia mais complexa de organizar.

Basicamente, o problema central de Schengen sempre radicou na escassez de confiança. É que a segurança de Schengen depende da eficácia de todas e de cada uma das suas fronteiras externas. Cada quebra de segurança deixa de o ser exclusiva do país que nela incorre e, de imediato e potencialmente, passa a afetar toda a malha de Estados da área Schengen. O estabelecimento e sucessivo aperfeiçoamento de um “serviço de informações”, que tem como finalidade, desde o início, reforçar a segurança do espaço, foi mais uma medida geradora de confiança que foi indispensável implementar.

Quando, em 1997, me coube a responsabilidade de presidir ao Comité de ministros do então Acordo de Schengen (que hoje faz já parte do acervo comunitário dos tratados), dirigi em Lisboa uma reunião em que a fiabilidade das condições de segurança do aeroporto de Atenas, bem como a vigilância marítima italiana, eram postas abertamente em causa. Devo confessar que tive ali, pela primeira vez, a perceção daquilo que poderiam vir a ser os problemas com que Schengen poderia confrontar-se no futuro. É que assisti a ministros europeus dizerem, com total franqueza, aos seus homólogos grego e italianos que … não acreditavam neles, nas garantias que estes lhes procuravam dar. Asseguro que não foi nada fácil ultrapassar essas tensões e obter consensos depois das “facas” se terem desembainhado dessa forma!

Muita água correu sob as pontes europeias desde essa altura. Por um lado, ficou claro que o Reino Unido e a Irlanda não prescindiam de ver reiterado e garantido, em letra de tratado, o seu “opting-out” da área Schengen (à época, Dublin teve por inevitável, por determinantes geográficas, acompanhar a idiossincrasia de Londres). Alguns países dos recentes alargamentos viram até hoje atrasado o seu acesso, por virtude de se terem acumulado dúvidas sobre a capacidade de darem cumprimento pleno às obrigações decorrentes da adesão. Mas, em minha opinião, o fator mais credibilizante de Schengen foi, sem sombra de dúvida, o papel central da máquina técnica da Comissão europeia na gestão da área. Outros instrumentos europeus, como o Frontex, vieram a reforçar a monitorização da fronteira externa. 

Não obstante todas essas melhorias e garantias, a fronteira externa de Schengen, mesmo em tempos de “business as usual”, está longe de ser 100% segura. Quando ocorrem tempos de exceção, os problemas agigantam-se. E as linhas imediatas de defesa passam para as fronteiras nacionais tradicionais

As crises

A pressão migratória de natureza económica, com as tragédias humanas que lhe estão associadas e de que as imagens televisivas são suporte impressivo, trouxe à evidência, se tal fosse ainda necessário, que a área Schengen tem de viver com a realidade de alguns dos seus países estarem expostos de forma diferenciada a esses fluxos. Por essa razão, em especial quando estes atingem pontualmente uma forte dimensão, fica mais clara a necessidade da Europa caminhar para uma política comum de imigração, tema até agora quase tão tabu como é a harmonização fiscal…

Mas terá sido a recente crise dos refugiados, com uma expressão quantitativa sem precedentes, que suscitou as mais sonoras expressões de vontade de colocar em causa as regras da área Schengen. 

Há que reconhecer que Schengen está dimensionado para um quotidiano de normalidade, muito embora esteja prevista a possibilidade de reintrodução de mecanismos de controlo, desde que limitados no tempo e sob observação da Comissão europeia. Recorde-se que, já no passado, em variadas outras circunstâncias, tais salvaguardas excecionais haviam sido postas em prática, sem que daí decorresse nenhum drama e sem o menor risco para a integridade do sistema.

Finalmente, os atentados terroristas, que vieram a somar-se a preocupações securitárias de diversa natureza, suscitadas em países com tensões internas com impactos políticos, contribuíram para colocar Schengen num fácil “pelourinho”.

Não é assim possível escapar a um debate sobre o tema e também não é realista, à luz das polémicas já encetadas, pensar que as regras de Schengen vão permanecer incólumes, depois de tanta evidência sobre a necessidade de as adaptar a novas realidades. A questão é saber como será possível efetuar essas adaptações sem colocar em causa a integridade essencial do sistema e, muito em especial, sem fazer cair na alçada discricionária e arbitrária de cada Estado o modo como este mecanismo de gestão da liberdade de pessoas no espaço europeu passará a ser gerido.

Não chegando ao ponto de afirmar, como fez o presidente da Comissão europeia, Jean-Claude Junker, que a própria existência da moeda única poderia estar em causa, se Schengen colapsasse, há que reconhecer que um eventual desmantelamento do sistema teria consequências muito nefastas para o processo europeu no seu todo. A reintrodução de barreiras iria desencadear processos burocráticos que, à evidência, teriam efeitos no mercado interno e na livre circulação de fatores, que hoje constituem um dos eixos do êxito do processo integrador. Preservar Schengen, adaptando o espaço às novas exigências e desafios, eventualmente trabalhando outros elementos de reforço das fronteiras exteriores da área, além de densificar os mecanismos de troca de informações entre os Estados, constitui um evidente imperativo.


Nós e Schengen

Olhe-se para o mapa da Europa e a nossa situação de periferia geográfica. Reflita-se no facto de sermos o país europeu com mais cidadãos que trabalham noutros Estados da União. Pense-se na importância dos fluxos turísticos para a nossa economia, assentes na facilidade de movimentação que Schengen proporciona. Lembre-se, por fim, que o nosso quadro preferencial de relações externas, no âmbito da lusofonia, a começar pelo Brasil, é forte usufrutuário das vantagens da livre circulação europeia. Por aqui se deduz o que parece dever ser a nossa atitude perante os projetos de revisão de Schengen.

Sei que parece algo irónico pensar que lembramos ao mundo, com regularidade, que somos um dos seus mais antigos Estados, com fronteiras que, basicamente, têm quase nove séculos e que, simultaneamente, somos daqueles que, com grande facilidade, prescindimos do seu controlo. Mas essa é a grande “superioridade” de um Estado que não teme perder a sua identidade pela abertura ao exterior e que, nesse contexto, fez há muito um balanço do custo-benefício desta opção política.

A Europa, enquanto projeto, comporta desafios e riscos que não são despiciendos. Como os últimos anos têm evidenciado, a transferência para um espaço europeu de gestão de elementos ligados ao “core” da nossa soberania, como a moeda, limita-nos fortemente na nossa capacidade de afirmar alguma margem de autonomia, tornando-nos hoje muito menos relevantes no processo decisório bruxelense. Mas se a essa limitação acrescêssemos a perda das vantagens da livre circulação, então sim, passaríamos a ter todas as desvantagens de um processo que já pouco controlamos somadas às imensas desvantagens que, no nosso caso muito particular, as restrições à livre circulação de pessoas acarretariam. 

Defender Schengen e estar ativo e propositivo em qualquer processo que incida sobre a revisão do seu modelo é vital para os nossos interesses. E, na Europa, os interesses, quando são por nós assumidos como vitais, e simultaneamente compreendidos pelos outros como tal, têm muita força.

(Texto publicado no nº 6 de revista "XXI - Ter Opinião", editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Fevereiro de 2016)

1 comentário:

  1. Boa reflexão na qual nos devemos debruçar.
    Que tudo o que está a acontecer afasta muita gente do projecto europeu não há dúvidas.
    Esperamos que tudo se recomponha e entre de novo nos carros.
    Dá gosto ler os seus escritos, opiniões e demais reflexões.

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