Por toda a Europa – Portugal incluído – parece aceite uma leitura benévola sobre o efeito das exceções concedidas ao Reino Unido, na perspetiva do referendo sobre o futuro daquele país na União Europeia. Essa leitura ilude que, ao alargarem-se as exceções de que o RU já beneficiava, mesmo a montante de qualquer alteração dos tratados, fica cada vez mais aberta a porta para uma modulação das políticas e, por essa via, para uma Europa potencialmente mais divergente. Por muito que as consequências das medidas acordadas se afirmem restringidas ao RU, seria de uma indesculpável ingenuidade pensar que elas não passam a constituir um precedente invocável por todos os outros Estados. Com mais este passo, acelera-se a diferenciação intra-europeia.
Não conta aqui, para o que agora nos importa, se essa é uma evolução positiva ou negativa para os interesses de Portugal. Isso apenas deixa mais claro que o modelo europeu que o nosso país passou a integrar há 30 anos deixou já de existir. Estamos hoje numa Europa muito diferente e, estranhamente, não se encara entre nós como óbvia essa realidade, os portugueses parecem ausentes do debate ou não querem tirar disso as necessárias consequências, nomeadamente em termos das opções que assumem para o país na ordem internacional. A questão parece-nos simples: se a Europa é assumida como o eixo essencial do nosso quadro de inserção externa, será que as profundas mudanças ocorridas no seu projeto são para nós indiferentes e não têm qualquer consequência na definição da nossa estratégia como país?
Em face deste novo curso das coisas, que tem levado vários Estados europeus a evoluir nas suas opções geopolíticas, é muito preocupante que não se desenhe em Portugal um mínimo de reflexão estratégica, que suscite propostas de ação e de atitude, bem como a exploração de alternativas de inserção no contexto global, que possa ser conveniente ponderar. Se é um facto que a ciclotimia dos ciclos políticos não oferece as melhores condições para que essa reflexão possa ser eficaz em sede do poder político, então só podemos concluir que é vital que a nossa sociedade civil se mobilize e, sem quaisquer tabus, coloque sobre a mesa todo o espetro de problemas com que Portugal se debate. Ignorar a realidade é o primeiro passo para nos deixarmos conduzir por ela, sem termos qualquer papel mínimo na sua direção.
A Europa mudou
Os mais recentes alargamentos da UE induziram consequências muito relevantes sobre os seus equilíbrios internos, alterando a relação de forças no seu seio, muito em especial potenciando o peso relativo da Alemanha, que o final da Guerra Fria havia indiciado. A consequente expressão, em termos dos tratados europeus, dessa nova realidade, conduziu a mudanças qualitativas importantes no caráter das instituições da UE, que conduziram à redução da capacidade de afirmação dos países mais frágeis. O paralelo aprofundamente voluntarista de algumas políticas que tocaram o cerne das soberanias – como foi o caso do euro ou de Schengen – foi levado a cabo com uma escassa ponderação da assimetria dos seus efeitos e com uma medíocre visão prospetiva sobre o respetivo comportamento em cenário de tensão.
Muito em especial, a crise das dívidas soberanas e a recente desregulação migratória provaram que a União Europeia não se equipou por forma a proteger o corpo central das suas políticas, sendo que a sua narrativa justificadora as havia erigido como identitárias. Assistiu-se e assiste-se ainda hoje a reações desordenadas, casuísticas e contraditórias, associadas a uma deriva clara para colocar como sujeito do processo decisório europeu um número muito limitado de atores – numa espécie de reconhecimento implícito de que as soluções possíveis passariam cada vez menos pelo modelo da soberania partilhada, através de instituições de funcionamento transparente em que a igualdade tendencial dos Estados é preservada, e muito mais pelo velho sistema de “diretório”, neste caso quase unipolar, cuja evolução a História europeia nos ensinou sempre a temer.
Este centralismo pouco democrático está a conduzir as opiniões públicas dos vários países a um crescente afastamento do projeto europeu, a que não será estranha uma inédita crispação entre grupos dos seus Estados membros – desde uma clivagem Norte-Sul bem patente no domínio económico-financeiro até a um contraste de atitudes Leste-Oeste, evidenciado na reação às pressões migratórias. Nada indica que essas dualidades tenham condições para serem atenuadas, bem pelo contrário.
O sentimento de irrelevância de alguns países no processo decisório europeu começa a acarretar sérios problemas de legitimidade democrática, à escala nacional, para alguns governos, parlamentos e opiniões públicas. Nesse domínio, algumas das condicionantes que esse processo centralista desencadeou - desde a imperatividade das metas macro-económicas, o condicionamento do processo orçamental e a gestão centralizada do sistema bancário – só parecem compatíveis com um modelo de Europa política que não só não existe como parece mesmo caminhar num sentido inverso, como o caso britânico indicia. Os sobressaltos que se registam em vários países, com o surgimento de pulsões soberanistas, os apelos à renacionalização das políticas e sinais de uma crescente desconfiança na bondade do modelo integrador, revelam que a mudança é o nome do jogo, embora comece a ficar patente que poucos se reveem já num único modelo de caminho.
O lugar de Portugal
Portugal surge, nesta constelação de posições, numa situação pouco invejável, por virtude da expressão conjugada de várias debilidades. Há que assumir que muitas delas resultam de políticas nacionais que, a prazo, se revelaram erradas ou mal ponderadas nos seus efeitos, as quais agravaram a nossa fragilidade como país e, por essa via, potenciaram as nossas dependências.
Essa fragilidade económico-financeira acabou por colocar Portugal, de uma forma por ora sem aparente solução alternativa, no conjunto de países mais dependentes da Europa, condicionando ao extremo a sua margem internacional de manobra, como ficou bem evidenciado durante o período de ajuda externa.
O peso insuportável da atual dívida soberana é hoje iludido por uma conjuntural possibilidade de refinanciamento, que se sabe dependente, em absoluto, de fatores que não controlamos e cuja eventual evolução negativa, nomeadamente pela variação dos humores dos mercados, terá imediatos e dramáticos impactos nas nossas contas públicas.
A endémica falta de crescimento e o não surgimento de sinais de reforço sustentado da competitividade da nossa economia reforçam um panorama de forte incerteza que se reflete sobre as avaliações dos mercados, ameaçando em permanência o custo do refinanciamento da dívida. Com as limitações conhecidas ao investimento público, o país vai agora testar a eficácia de uma política assente em estímulos orçamentais à procura, sem que, no entanto, se vislumbre uma perspetiva de geração de um novo ciclo de investimento produtivo, travado este pela persistência de custos negativos de contexto que não parecem em vias de alteração, onde se relevariam, pela sua determinante importância, a instabilidade fiscal, a burocracia e a complexidade dos procedimentos administrativos de licenciamento, tudo isto num quadro de insuficiências persistentes do sistema de Justiça.
O estado a que chegou o sistema bancário nacional, como resultado de erros e más práticas de gestão, públicas e privadas, bem como das orientações inadequadas com que a Europa do euro tem vindo a reagir à crise, confronta hoje o país com uma incessante sucessão de más surpresas, que ainda se não percebeu onde terminarão e que custo global os contribuintes irão ter de assumir. A isto se soma, em tempo mais recente, a constatação de que as autoridades bancárias europeias parece terem optado em definitivo por uma “iberização” centrada em Madrid dos ativos remanescentes nesse âmbito. A nosso ver, isso deveria ter já provocado um alarme em Portugal, atentas as consequências estratégicas muito graves que daí podem resultar. Neste cenário, parece legítimo que o país se interrogue, com alguma frieza estratégica, sobre o destino futuro dos escassos instrumentos bancários que lhe podem conferir alguma capacidade de intervenção autónoma no setor, como suporte de opções de política económica que ainda dele dependam.
Some-se a tudo isto, finalmente, o facto da capacidade exportadora nacional não ter por ora condições para poder continuar a crescer para além de determinados limites, asfixiada por uma oferta de crédito temerosa e sem estratégia evidente, agora também fortemente limitada pelos constrangimentos que afetam alguns dos mercados-alvo, que se haviam revelado o seu sustentáculo nos últimos anos. Aliás, num desses principais mercados, há hoje que contar com “nuvens” políticas que têm condições de geração de uma “tempestade” de efeitos imprevisíveis.
Que fazer?
Assumimos a consciência de que o país perdeu, por opção, grande parte dos instrumentos de exercício autónomo da sua soberania e da relativa liberdade nacional em matéria de escolha de política de que dispôs noutros contextos históricos. Mas também sabemos que a isso correspondeu, pela positiva, um salto qualitativo importante que trouxe aos portugueses oportunidades, bem-estar e um conjunto muito variado de vantagens de que hoje usufruem. É esse saldo positivo que cremos que está hoje em sério risco, por virtude de se terem alterado substancialmente os pressupostos que estiveram na base de algumas escolhas entretanto feitas.
Entendemos que Portugal deve repensar urgentemente o seu futuro à escala global. Não se trata de colocar em causa aquelas que são algumas das constantes da nossa ação externa em tempos democráticos, tanto mais que grande parte delas decorrem de determinantes geopolíticas, bem como da livre adesão a valores e alianças que o país assume como fazendo hoje parte integrante da sua identidade. Trata-se apenas de, nesse mesmo quadro, discutir, com abertura e sem tabus, se é ou não necessário vir a sublinhar algumas dessas vertentes de um modo diferente do que tem sido a prática mais recente.
A opção mais óbvia que se coloca é, naturalmente, prosseguir o modelo de alianças intra-europeias que hoje parecem determinar, quanto mais não seja por omissão, o essencial da postura portuguesa nas últimas décadas, e que já se constatou ser independente dos ciclos políticos. Parecem evidentes os limites desse modelo, o qual, em caricatura simplificada, se pode caraterizar por uma ligação preferencial à Alemanha, uma aposta económica no mercado ibérico e a utilização pontual da França como fator compensatório para atenuar os impactos excessivos da dependência central. Este modelo comporta, contudo, um maior ou menor voluntarismo na atitude reivindicativa na Europa e, em especial, perante Berlim, quer no tocante à gestão da flexibilidade nas metas macro-económicas, quer no ressuscitar, em conjunto com outros países que possam vir a assumir idêntica orientação, a questão da mutualização da dívida.
Uma segunda possibilidade seria explorar aquilo que se poderia designar como opção “sulista” dentro da UE, isto é, o favorecimento e aproveitamento de um desequilíbrio no seio dos seus poderes fáticos, com a emergência da França no centro desse processo, em especial se o abandono ou o afastamento acentuado do Reino Unido do eixo europeu de decisão vier a colocar Paris num papel de único poder político-militar com valor significativo, no quadro de uma Europa em tensão securitária, com interesse reforçado pela estabilidade mediterrânica, de onde podem continuar a derivar algumas importantes ameaças a esse nosso flanco comum. Este modelo pressuporia uma evolução da Itália e da Espanha como seu suporte essencial e teria a dualidade face ao bloco setentrional do continente como decorrência inevitável, sendo incerto se a preservação da moeda única continuaria a ser viável nessa visão mais radical.
Outra ideia consistiria em Portugal se afastar, em moldes a estudar, da postura integracionista sem limites que tem seguido nas últimas três décadas, sem prescindir da opção europeia mas reduzindo seletivamente a sua participação em algumas das suas políticas, não podendo naturalmente o cenário de uma saída negociada e calendarizada do euro deixar de figurar no catálogo de opções dentro desse mesmo modelo. Uma orientação deste tipo pressuporia um acompanhamento muito cuidado da evolução da situação britânica, no pressuposto de que o distanciamento de Londres face ao processo integrador, que em qualquer caso e grau sempre ocorrerá, terá forçosamente de conduzir a um restabelecimento de uma sua nova rede de alianças preferenciais no quadro continental, em que o nosso país poderia tomar a opção de se (re)inserir. Este modelo teria como natural pressuposto uma escolha pelo reforço de um realinhamento transatlântico mais intenso, tentando fazer ganhar a Portugal uma nova centralidade, utilizando de forma criativa os Açores, a plataforma continental e a economia do mar como ativos autónomos nessa nova equação, de que Cabo Verde poderia também vir a fazer parte.
No seu conjunto, os signatários, na diversidade de opiniões que é a sua, não se reveem necessariamente em nenhum dos modelos e consideram que todos contêm elementos que poderiam ser conjugados noutros cruzamentos de opções. Também não têm a pretensão de terem esgotado o universo das propostas plausíveis e, por essa razão, estimulariam que ideias expostas neste texto, bem como outras que possam surgir, servissem de base a um salutar debate nacional, para o qual, aliás, seriam muito bem-vindos os atores políticos e quantos, com sinceridade e sem preconceitos, também se preocupam com o futuro de Portugal.
Francisco Seixas da Costa
João Costa Pinto
João Ferreira do Amaral
João Salgueiro
José Manuel Félix Ribeiro
Miguel Lobo Antunes
Caro Embaixador Seixas da Costa,
ResponderEliminarDepois do alerta que me fez em Cascais no passado Domingo sobre o artigo que tinha escrito no Jornal Público foi com muita atenção que o li.
Revejo por inteiro no que refere,mormente o último parágrafo e que foi tema da minha intervenção no Sábado em Cascais.
Cumprimentos
Eduardo de Almeida Faria