Ao contrário de uma convicção generalizada, a União Bancária, que a Europa tem atualmente em construção, não emergiu de uma evolução natural da União
Monetária. Ela foi,
muito simplesmente, a
resultante da reação à
crise financeira que, a partir de 2007, ameaçou fragmentar a Zona euro.
Essa reação derivou de uma decisão política, titulada pelos líderes alemão e
francês, numa celebrada reunião em Deauville, em 19 de outubro de 2010, na
qual foi decidido desligar o risco
soberano do risco bancário, sem que previamente tivesse sido feita uma ponderação
objetiva do impacto económico, social e político dessa medida sobre as diferentes economias do euro.
Foi
desta forma – que veio a provar-se
precipitada e reveladora do modelo decisório que hoje marca o seu processo de funcionamento
– que a Europa avançou para a integração
bancária, assente na centralização, a nível da Zona euro, das funções e responsabilidades de supervisão
e de resolução de bancos em
dificuldades, isto é, a venda de parte
deles a outra instituição bancária sem os encargos mais pesados. Note-se
que, na execução desta política, as instituições europeias não seguiram sempre
procedimentos e critérios uniformes, nomeadamente no tocante aos tempos para decisão concedidos às diversas
autoridades nacionais.
Este passo foi ainda dado sem que, em simultâneo, se tivessem
capitalizado e operacionalizado os fundos
destinados a suportar as operações de resolução
e de
garantia dos depósitos. Na verdade, enquanto os Mecanismos únicos de Supervisão e de Resolução estão em
vigor desde 1 de janeiro deste ano, os Fundos Europeus de Resolução e de Garantia de Depósitos
apenas estarão operacionais a partir de 2024. Ao mesmo tempo, no âmbito do
Mecanismo de Resolução, foi
adotado um princípio que passou a envolver acionistas, credores obrigacionistas
e mesmo depositantes não garantidos, em caso de necessidade de recapitalização
dos Bancos em dificuldades – o chamado bail-in, ou seja, a conversão em capital de créditos e depósitos bancários a partir de certo montante, com óbvia
perda para credores e depositantes.
É hoje
uma evidência que o modo apressado como a Europa avançou para a União Bancária
está a ameaçar, de
forma crescente, a
coesão dos mercados financeiros da Zona Euro. Esta evolução reveste-se de particular complexidade e risco para as
economias menos eficientes, mais
frágeis e mais endividadas,
as
quais, como é o caso da portuguesa, enfrentam bloqueamentos estruturais e desequilíbrios
financeiros profundos, cuja superação não
tem prazo visível, estando,
simultaneamente, a braços com movimentos de reorganização e
redimensionamento dos seus mercados bancários, também eles longe de concluídos. A lógica apontaria no sentido inverso, isto é, que aos setores mais
débeis da banca europeia, ligados a Estados fortemente endividados e saídos de dolorosos
processos de ajustamento, fosse concedida alguma “discriminação positiva”, com
vista a facilitar e estimular a respetiva recuperação.
Aquele passo induziu, além disso, dois efeitos
aparentemente irreversíveis na nova ordem bancária europeia. Por um lado,
enfraqueceu a indispensável relação
de confiança entre aforradores/investidores e os seus bancos, gerando um nefasto e persistente clima de volatilidade e incerteza. Por outro, centralizou
a nível europeu as decisões relativas à resolução de bancos em dificuldades, sem, no entanto, deixar de manter nos países
de origem dessas mesmas entidades os
respetivos efeitos e custos – sejam eles financeiros, políticos, sociais e
mesmo de confiança e credibilidade. A tudo isto se soma um incompreensível
mecanismo de responsabilidade solidária nos sistemas bancários nacionais –
porquê nacionais, se a ação bancária é transnacional europeia, como a própria
concentração do essencial da supervisão no BCE o indica? – que põe em causa a
solvabilidade dos bancos mais sólidos, com a sua eficiência “punida” por eventuais
erros alheios.
Uma
situação absurda
Veio
assim a criar-se uma situação absurda: é exigido às entidades nacionais que continuem
a ser responsáveis pela estabilidade financeira interna dos seus países mas, ao
mesmo tempo, retiram-se-lhes
os recursos e os instrumentos indispensáveis para a poder assegurar. Como consequência, os bancos das economias devedoras
mais frágeis, que têm sido forçados a absorver o forte impacto negativo dos
programas de ajustamento, passaram, de
imediato, a ser
mais vulneráveis a situações de instabilidade, que podem originar saídas de
capitais.
Desta
forma, tem vindo a consumar-se uma fragmentação dos mercados bancários da Zona
euro, que o BCE tem procurado combater, com consequências desfavoráveis sobre o
custo do capital bancário e do financiamento destas economias. Estas questões ganharão
uma extrema importância quando o BCE quiser um dia inverter a sua política
monetária – nos dias de hoje assente em taxas de juro artificialmente baixas
e numa injeção maciça de liquidez. Nessa nova conjuntura, a reação natural dos mercados,
com a subida imediata das taxas de juro, penalizará as economias mais
vulneráveis.
É
neste contexto que devem ser avaliadas as implicações para a nossa economia da
forma como a Europa do euro está hoje a constituir a União Bancária.
Deixámos
de poder controlar o movimento de reorganização e de redimensionamento dos
nossos bancos e do nosso mercado bancário, embora tenhamos de assumir os custos
do processo de ajustamento.
Mantemos a responsabilidade de assegurar a
estabilidade do nosso sistema financeiro – incluindo o mercado bancário – sem que
dispunhamos dos instrumentos jurídico-regulamentares e operacionais necessários
para intervir, tudo isto num contexto de fortíssimas restrições orçamentais.
O caso Banif
As
condições em que se verificou a venda do Banif ao grupo espanhol Santander
ilustram isto de forma exemplar. De acordo com todas as informações conhecidas,
tanto a Comissão europeia – através da Direção-geral da Concorrência – como o
BCE interferiram e terão influenciado decisivamente a solução que veio a ser
adotada.
No plano formal, isto é inadmissível, sem sustentação na
letra dos tratados. No plano dos princípios, trata-se de
um gesto que comporta um grau de intrusão nos equilíbrios internos de um Estado
que nada pode justificar.
O custo
desta operação para o país atingiu um valor que continua a ser incompreensível,
à luz da dimensão do próprio Banif. De facto, os fundos públicos injetados neste
Banco atingiram os 3,3 biliões de euros – 1,1 biliões no primeiro aumento de
capital + 2,2 biliões a anteceder a venda ao Santander. Se, para além disso,
considerarmos as garantias de 750 milhões de euros concedidas ao Santander e
relativas a parte da carteira de crédito, descontando os escassos 150 milhões
pagos pelo comprador, atingimos o extraordinário valor líquido de 3,9 biliões
de euros de custo desta operação para o Estado português. A projeção destes
valores num cenário orçamental como o nosso traduz uma violência sem
precedentes e um descaso com os equilíbrios macro-económicos de um país que ainda está a acomodar os graves
efeitos de um duríssimo ajustamento.
Igualmente
surpreendente foi o “hair-cut” de
cerca de 65%, imposto pela Direção-geral da Concorrência aos ativos do Banif
transferidos para o “veículo” criado e que forçou as referidas injeções de
capital.
Tal
como foi concretizada, a venda do Banif deixa uma grave interrogação, nunca
respondida, sobre que razão levou as instâncias europeias a forçar uma solução
que sabia resultar numa fortíssima penalização dos contribuintes portugueses. O
sentido dessa intervenção revela-se, aliás, em evidente contradição com o
objetivo essencial do Mecanismo de Resolução, que foi criado para cortar a
ligação entre o risco bancário e o risco soberano e, deste modo, tem como
objetivo proteger os contribuintes.
O que
se passou legitima suspeitas graves. Houve, de facto, a intenção de ajudar a
desenhar uma centralização bancária a nível ibérico, remetendo o mercado
financeiro português para uma situação de subalternidade? E de o fazer à custa dos contribuintes
portugueses?
Dúvidas
e questões
Para
além das questões de soberania com que, à revelia e nalguns casos em oposição
ao espírito e mesmo à letra dos Tratados, os países mais vulneráveis – porque
menos eficientes e mais endividados - estão a ser confrontados, a evolução da
União Bancária está a colocar a nossa economia perante dois tipos de
interrogações.
A
nível externo, que decisões
devemos adotar e que alianças devemos procurar, de modo a reduzir a nossa atual
vulnerabilidade ou mesmo impotência, perante decisões tomadas a nível da Zona
euro que condicionam o nosso futuro económico e social? O condicionamento,
quase preconceituoso, do tecido de relações de setores da banca nacional com
países terceiros coloca em causa a natural liberdade de procura de espaços de
crescimento de negócio que aproveitem as vantagens comparativas decorrentes de
quadros históricos de relações externas.
A
nível interno, que devemos fazer para estabilizar o nosso mercado bancário de
modo a, simultaneamente, restaurar a confiança dos aforradores e dos
investidores e assegurar níveis adequados de financiamento da atividade
económica?
Se a
zona euro se arroga o direito de intervir na reorganização do nosso sistema
financeiro, então são-lhe exigíveis
soluções para estas questões.
A
primeira delas diz respeito ao
futuro do
projeto de integração da Europa e do papel que nele está reservado para as economias
mais frágeis e endividadas, que, como a nossa, se encontram a braços com
bloqueamentos estruturais e com desequilíbrios financeiros agudos.
Não é
exagerado afirmar que a forma como a União Bancária está a ser construída aumenta
essa mesma fragilidade, não revela efeitos potenciadores do crescimento e, sem
a menor dúvida, contraria o propalado objetivo histórico europeu no sentido de
um crescimento harmonioso do tecido económico da União. Ora a Europa não foi
construída para agravar os problemas, mas sim para ajudar a resolvê-los. Porém,
a sua evolução, nos últimos 15 anos parece ir em direção oposta.
Está
hoje claro que o salto para uma maior integração financeira através da União
Bancária, sem que fossem adotadas políticas dirigidas aos dois problemas
centrais com que aquelas economias se debatem – endividamento excessivo e baixo
crescimento potencial – está a ser feito à custa da fragmentação dos mercados
financeiros. Só as intervenções do BCE têm permitido controlar, ainda que apenas parcialmente, os efeitos desta
evolução sobre o financiamento global da economia e sobre as condições de
exploração da generalidade dos intermediários financeiros e, em particular, dos
bancos. No entanto, fica evidente que ninguém, a começar pelo próprio BCE e
pela Comissão, parece ser capaz de avaliar, com objetividade, as consequências que
podem resultar do abandono
ou mesmo apenas do enfraquecimento da atual política monetária sobre a
estabilidade dos mercados financeiros da Zona euro.
A
segunda questão refere-se às
respostas a dar, quer aos problemas que estão a afetar o nosso mercado bancário,
quer ao reflexo destes sobre o financiamento da atividade económica e, em
particular, das empresas. Qual o papel que deve ser atribuído ao grupo
financeiro público? Como assegurar a sobrevivência das empresas que, embora
economicamente viáveis, se encontram excessivamente endividadas, de modo a
evitar um agravamento do desemprego? Como impulsionar o desenvolvimento gradual
de fontes e instrumentos de financiamento de empresas, alternativos ao crédito
bancário tradicional? Qual o papel que deve ser neste processo reservado aos “veículos”
especializados na reorganização financeira de empresas, como os fundos? Como
deve ser reorientado o regime fiscal aplicado às empresas, de modo a apoiar o
fortalecimento dos seus fundos próprios e robustecer as suas estruturas
financeiras?
A
clarificação exigível
O país
deve obter, por parte das instituições comunitárias relevantes, nomeadamente do Tribunal de Justiça europeu, a necessária aclaração sobre as margens de ação soberana do Estado
português na gestão da sua posição económico-financeira no quadro da Zona euro,
não sendo aceitável que esta posição seja permanentemente sujeita - de forma
casuística, discricionária e aparentemente inapelável - aos critérios dos
anónimos e não responsabilizáveis aparelhos burocráticos de Bruxelas e
Frankfurt.
Uma
última nota. Não vivemos em tempo de “gestão corrente”. A gravidade do momento
e a importância crítica destas e de outras questões, indiscutivelmente
relevantes e decisivas para o futuro do país, deveria apontar no sentido de uma
clarificação estratégica que, a prazo, balizasse as suas posições no decisivo
tecido de alianças que tem de começar a forjar no quadro das mutações que todo
o tecido europeu parece estar em vias de sofrer. Não pode haver fronteiras
ideológicas intransponíveis, ou prevalecerem obstinações doutrinárias absurdas,
quando, dia após dia, assistimos a um crescente delapidar da nossa capacidade
para poder ter palavra nacional mínima sobre a gestão de um dos vetores
centrais da nossa soberania.
Fernando
Bello
Francisco
Seixas da Costa
João
Costa Pinto
João
Ferreira do Amaral
João
Salgueiro
José
Manuel Félix Ribeiro
Júlio Castro Caldas
Miguel Lobo ANtunes
(texto coletivo publicado no jornal "Público" em 27.5.16)
Os pequenos que se cuidem!...
ResponderEliminarSe não o fizerem vão ser engolidos pelos grandes.
O exemplo dado do BANIF é a melhor prova de canibalismo.
Excelente reflexão que espero fazer "abanar" todos os portugueses e faça agir os responsáveis políticos. Não podemos atirar a tolha ao chão, temos de demonstrar que este caminho é um sufoco que não estamos dispostos a percorrer.
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