Como Twain disse um dia a propósito de um anúncio prematuro sobre a sua
morte, parecem muito exageradas as notícias sobre a iminente desaparição da
diplomacia.
Deixando embora os créditos da mais velha profissão do mundo para outras
artes, essa vetusta gestão dos “rituais de entendimento” à escala internacional,
como lhe chamou Paulouro das Neves, tem-se constituído, ao longo dos séculos,
como um eficaz instrumento na prevenção e resolução de conflitos, sendo que,
quando em absoluto os não consegue evitar, é da sua natureza e missão conseguir
manter abertos, por cima de todas as dificuldades, os canais possíveis de contacto
e diálogo.
Nunca se saberá quantas guerras a diplomacia evitou, mas é uma evidência
que ajudou a pôr termo a muitas e, de um modo ainda hoje bem visível, ajudou a que
algumas fortes tensões internacionais se mantivessem a níveis de intensidade capazes
de poupar muitas vidas.
O século XX testemunhou, não apenas a exponencial multiplicação da rede
diplomática bilateral à escala global, pela quase dupla centena de países que,
em especial, o processo descolonizador fez emergir, mas igualmente consagrou o
surgimento de uma diplomacia multilateral permanente, terreno de afirmação e
representação, política e negocial por excelência, onde os pequenos e médios
Estados ganharam um estatuto de equidade relativa que não deixa de ter
consequências no equilíbrio da ordem internacional.
Marcada por um “template” com clara origem europeia, a prática
diplomática (e consular) internacional conseguiu aculturar, num modelo
basicamente similar, todo o resto do mundo, graças, em especial, à adoção
generalizada desse valioso referencial normativo que foram as Convenções de Viena
– sobre relações diplomáticas e consulares.
Não vale a pena inventariar as mudanças cumulativas que a prática
diplomática foi sofrendo ao longo dos tempos, a começar pela diluição da
exclusividade de representação da vontade do “soberano”, que os agentes diplomáticos
contemporâneos praticamente deixaram de ter. A crescente facilidade nas
comunicações, das pessoas e das mensagens, o progressivo estabelecimento de uma
“comunidade” mediática e de análise dos fenómenos políticos, com projeção quase
instantânea à escala global, a prática generalizada das relações diretas entre
os setores especializados, públicos ou privados, dos vários países, que muitas
vezes deixaram de passar pela coordenação da rede diplomática, tudo isso, e
muito mais, contribuiu para desenhar um novo perfil para a atividade
diplomática contemporânea – e, por maioria de razão, para os tempos que aí virão.
O trabalho dos diplomatas profissionais é hoje escrutinado com muito
maior rigor e exigência, porquanto estes estão, cada vez mais, sujeitos a modelos
de “accountability”, na aplicação dos quais se joga a própria legitimidade da
sua existência como classe professional autónoma. A diplomacia é hoje chamada a
mostrar, de forma cada vez mais transparente, o valor acrescentado que a sua
ação pode trazer à proteção dos interesses que lhe cabe proteger e promover.
Essa evolução da prática diplomática, como se tornou flagrante nas
últimas décadas, acabou por simplificar muita da “coreografia” que,
historicamente, envolvia a ação dos seus profissionais e marcava a imagem de
“glamour” (mas também, por vezes, de alguma superficialidade generalista) que a
diplomacia tinha aos olhos exteriores. Alguma dessa “liturgia” da profissão é
ainda preservada, dado que isso constitui um relativo suporte para o mútuo
respeito por procedimentos que, no fundo, padronizam e regulam o exercício da mesma
atividade por cidadãos oriundos de culturas muito diversas. No entanto, a vida
diplomática dos nossos dias tende a simplificar certos rituais protocolares, a
dar mostras de alguma contenção na exibição dos faustos que fizeram a sua
glória de outras eras, isto é, procura assumir-se, cada vez mais, como um terreno
para a execução adequada e sóbria da dimensão externa das políticas públicas
dos Estados.
É neste contexto que uma nova visibilidade da ação diplomática, através
da chamada diplomacia pública, se procura hoje crescentemente estabelecer,
através de uma utilização das novas tecnologias e ferramentas mediáticas
(blogs, Twitter, Facebook, etc), procurando tornar mais eficaz a mensagem
política que intervem nos vários segmentos (especializados, etários, esferas
culturais, etc) do espaço público externo.
A nível pessoal, confrontado com uma observação mais atenta do seu
trabalho e movimentação profissional, quer pela comunicação social quer pelos
cidadãos e instituições, o diplomata contemporâneo tende, em especial nas
sociedades com serviços públicos mais eficientes, a ser crescente avaliado em
função de uma “performance” por objetivos, na sua tarefa de execução da
política externa que lhe compete pôr em prática. Em particular, o seu papel de
coadjuvação dos operadores económicos, bem como de um conjunto cada vez mais
diversificado de interesses estatais e não-estatais com projeção na área
externa (ONG, expressões diversas da sociedade civil, academia), obriga-o a uma
constante atualização e a uma diversificada capacitação informativa que, muito
frequentemente, parece poder conflituar com os ciclos da sua rotatividade entre
postos e entre estes e a sua capital – modelo que a experiência consagrou até
hoje como relevante, como forma de ser mantida a alguma “frescura” no olhar
profissional sobre as realidades externas em que o diplomata opera.
O caso da integração continental, em que um país como o nosso está
inserido, merece aqui uma palavra especial. O estabelecimento daquilo que é hoje
a União Europeia veio criar uma realidade radicalmente nova, com que os seus
Estados membros se vêm confrontados. Por um lado, as instituições comunitárias
funcionam como uma estrutura multilateral de natureza regional, onde se
processa a concertação de posições nacionais que define a linha coletiva, por
consenso ou maioria. Porém, a própria União exerce hoje uma ação externa
autónoma, em representação das suas instituições coletivas, em paralelo com as
diplomacias nacionais dos Estados que a compõem, que naturalmente prosseguem os
interesses próprios de cada um. A coerência entre todas estas dimensões é um
desafio da maior importância.
O modelo funcional da União, por seu turno, acaba por ter efeitos na
natureza do tecido das representações diplomáticas que esses Estados mantêm
entre si, conduzindo a um crescente “downsizing” dessas estruturas. Isso é
potenciado pela intensidade dos encontros e comunicações dos responsáveis
políticos e técnicos de todos esses países, numa movimentação que passa frequentemente
à margem das estruturas diplomáticas bilaterais, bem como pela circunstância do
tecido legislativo e os procedimentos administrativos serem cada vez mais
similares e transparentes em todos os Estados, dispensando a “leitura”
especializada das embaixadas.
Duas outras dimensões da diplomacia tradicional podem ser referidas como
afetadas pela existência da União Europeia. No plano da sua proteção, o facto
de um cidadão da União poder hoje recorrer aos serviços consulares de outros
Estados membros desestimula, de certo modo, a multiplicação das redes
consulares nacionais (muitas vezes integradas nas unidades diplomáticas), em
especial no caso de Estados de menor dimensão. Também a tendência para posições
conjuntas dos Estados da União em algumas estruturas multilaterais, cuja adoção
é decidida na coordenação comunitária em Bruxelas, tende a desvalorizar o
trabalho das missões nacionais nessas instâncias, com eventuais impactos na sua
densidade em matéria de pessoal e estruturas.
Em conclusão, a continuar a ser aprofundada, ou mesmo apenas que preservada
no seu modelo atual, a União Europeia vai apresentar um desafio interessante à
criatividade transformadora das máquinas diplomáticas dos seus Estados membros.
Se me é permitida uma reflexão prospetiva, diria que tudo parece indicar
para que as representações externas bilaterais venham, em geral, a perder algum
sentido naquilo que era parte da sua vocação tradicional.
Nas décadas passadas, já se tinha verificado a desaparição da sua função
negociadora, avocado por missões ad hoc. Agora, e cada vez mais, parece
evidente que as tarefas de observação e informação, em especial na área
política, surgem grandemente afetadas na sua valia pela qualidade analítica da
informação aberta disponível, ou mesmo pelos serviços de entidades privadas com
canais de recolha de dados muito mais eficientes que muitas embaixadas (embora,
a disponibilidade de serviços oficiais de “intelligence”, por parte de certos
países, continue a ser muito valiosa).
Restam três dimensões onde a função dos diplomatas parece dificilmente
substituível.
Por um lado, a proteção e promoção de interesses, humanos ou
patrimoniais, do Estado, dos cidadãos ou de entidades privadas. O aumento
exponencial das viagens internacionais coloca desafios sérios em matéria de
segurança e proteção dos cidadãos e, cada vez mais, a promoção dos interesses
económicos (investimentos, comércio, turismo) e da imagem e prestígio dos
Estados (cultura, diplomacia pública) se torna importante e, muitas vezes, só
pode ser assumida a nível nacional.
Por outro, a função de representação ou presença política do seu Estado
perante aquele em que está acreditado. A grande maioria dos países não está
integrada nos circuitos de contactos regulares (pessoais ou por comunicações)
entre os respetivos dirigentes politicos, pelo que o papel de representante
pessoal do chefe do Estado ou da vontade do governo é, muitas vezes,
indispensável para o tratamento de certo tipo de questões. A dimensão humana da
atividade diplomática permanece um valor acrescentado insubstituível.
Finalmente, alguma mudança se pressente na diplomacia multilateral, onde,
ao que tudo parece indicar, residirá muita da decisão futura com impacto na
vida corrente dos Estados – e, por maioria de razão, no plano da prevenção e resolução
dos conflitos entre eles. Neste domínio, a tendência poderá não favorecer o
modelo tradicional do diplomata generalista e, cada vez mais, a função poderá vir
a ser exercida por quadros técnicos cada vez mais especializados, em novas
“carreiras” diplomáticas a funcionarem em paralelo com a clássica “carreira”. Essa
“nova” diplomacia já hoje tem grande expressão e caberá aos Estados saberem
compatibilizar a sua existência com o modelo tradicional.
A diplomacia, nas suas variadas formas evolutivas, está aí para ficar.
Durará 100 anos? Ninguém sabe, mas a História provou a resiliência dessa
“espécie” vocacionada para a simpática tarefa de harmonizar a vida dos Estados
e dos povos.
(Texto incluído na antologia "Olhar o Mundo", coordenada por António Mateus, ed. Marcador, 2017)
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