20 de dezembro de 2024

Entrevista à revista "Must.


Aque horas se costuma levantar? 

Em regra, tarde. Desde que saí da função pública, recusei todos os convites para atividades “from-nine-to-five”, para tarefas executivas. E foram alguns. Desde há 12 anos, sou dono de grande parte do meu tempo, coisa que não tinha sido durante 41 anos. Leio muito e preciso da noite para ler. Assim, tento que o meu dia comece sete horas após o momento em que me deito. Aliás, decido a hora a que me deito e a que quero acordar em função da agenda do dia seguinte. E ponho dois despertadores, para não ter surpresas. Se nada tenho marcado para a manhã, acordo quando acordar.


O que costuma refletir/ponderar/pensar nos primeiros minutos acordado?

Não sou um intelectual das manhãs. Nunca tive ideias geniais ao acordar. Só tenho sono. Não acordo logo, vou acordando. Eu sou como a madrugada: o dia vai nascendo dentro de mim. Verdadeiramente, só acordo cerca de uma hora depois de despertar.


Qual é a sua rotina quando se levanta?

Começo por olhar o iPhone e o iPad, para ver se houve chamadas ou mensagens relevantes. Depois, verifico os emails. Durante a noite chega um mínimo de duas dezenas de emails. Mas quase nada a que seja necessário responder: são essencialmente alertas e notícias, de várias partes do mundo. Umas leio logo, outras guardo para mais tarde, muitas nunca as chego a abrir. Mas procuro ser rápido na resposta a emails que me dirigem.


Que tipo de pequeno-almoço costuma tomar?

Ninguém vai acreditar: não sou eu quem decide. Tanto pode vir fruta como uma torrada com manteiga ou doce ou um iogurte. Ontem, foi Bolo Rei. É sempre um “happening”. No final, em regra, um café expresso.


Costuma haver algum tipo de atividade antes de começar o dia?

Rigorosamente nada. Não sou dado a ginásticas ou coisas assim. É a única coisa em que sou fiel seguidor das ideias de Churchill.


Como são os seus trajetos? Como os faz? A pé, automóvel, transportes…

Em regra, ando em três meios de transporte: de carro, de carro ou de carro. Ando muito pouco a pé e raramente de transportes coletivos. Ando muito de táxi e de Uber/Bolt. Sou um bom cliente da Radiotaxis. Sei que este comportamento não está na moda.


Tem algum tipo de preparação prévia antes do trabalho?

Não tenho rotinas diárias. Tenho tarefas em empresas, que podem ocupar o dia todo ou uma parte do dia. E que ocorrem pontualmente, algumas com atividades separadas por semanas. A maioria são em Lisboa, outras são fora, às vezes no estrangeiro. Antes dessas reuniões, há bastante material para ler e, algumas vezes, trabalho escrito para executar.


A que horas começa a trabalhar?

Trabalho quando entendo. Cada dia é diferente do outro. Às vezes tenho que escrever, na maioria dos casos leio informações e tomo notas durante algumas horas. Posso começar essa atividade depois de acordar, deixá-la para a tarde ou mesmo para a madrugada, onde o trabalho parece render sempre mais. É de madrugada que me surgem algumas ideias geniais. Depois, durmo “sobre” elas e, no dia seguinte, constato, em geral, que eram ideias banais.


Quais são as suas principais tarefas e responsabilidades?

Executo estudos de consultoria estratégica para que sou solicitado, faço parte de órgãos de gestão e supervisão de empresas, sempre em áreas não executivas. Faço comentário sobre temas internacionais na comunicação social, quando a isso convidado e se tenho interesse e disponibilidade para o fazer. E faço palestras e intervenho em debates.


Como gere o seu tempo?

Depois de décadas em que a decisão sobre o tempo não me pertencia, uso a liberdade que ganhei de uma forma um pouco caótica, mas altamente satisfatória. Na véspera de cada dia, arrumo a respetiva agenda, que é imensamente variada.


Como lida com a pressão e o stress?

Bem e mal. Como ficou demonstrado pelo momento de entrega deste inquérito, trabalho sob pressão do tempo e sob algum stress. Às vezes, aceito demasiadas coisas, para serem feitas simultaneamente, e isso traz-me uma pressão desagradável. Já pensei corrigir-me, mas sou cada vez mais tolerante com os meus defeitos, os quais, às vezes, já nem vejo como tal.


Qual é a parte favorita e menos agradável do trabalho e porquê?

Sempre gostei de trabalhar. Durante bastante tempo, trabalhava muito e de forma rápida. Sempre fiz o meu trabalho com alguma satisfação, como um desafio perfeccionista perante mim mesmo. Às vezes, quando vejo mal aproveitado o que me obrigou a algum esforço, fico desagradado. Mas passo à frente. Não esqueço nem perdoo agravos, mas dou-me ao luxo de, na maior parte das vezes, não tirar desforço. Não dou a confiança de me aborrecer (muito) àqueles que me tentam prejudicar.


Tem alguém que o acompanha quando trabalha?

Atualmente não. Já trabalhei com equipas com muitos colaboradores e percebi então o meu principal defeito: a dificuldade em delegar, salvo nas escassas pessoas em quem conseguia ter plena confiança. E nunca soube trabalhar em grupo. Sei que é politicamente incorreto estar a admitir tudo isto, mas, dizia já não sei quem, só a verdade é revolucionária. E esta é a pura verdade.


Costuma fazer pausas? Para?

Faço muitas pausas, às vezes em demasia, com efeito negativo na concentração. Sinto que há em mim defeitos comportamentais que se agravam com a passagem do tempo. Aproveito as pausas para fazer coisas que me satisfazem mais do que aquilo que estou a fazer. E resisto pouco a esses impulsos.


Interrompe o trabalho para almoçar? O que costuma comer e onde?

Se estou envolvido num trabalho, o almoço pode esperar. Mas também posso continuar a trabalhar durante a refeição. Em regra, almoço fora de casa umas três vezes por semana, com amigos ou em almoços de trabalho. Alimento-me sem critérios dietéticos e com escassas preocupações de saúde: em regra, o que me apetece é, curiosamente, aquilo que sei que me faz mal. Cada vez resisto menos às tentações. Que culinária? Cozinha tradicional portuguesa, com tinto a acompanhar. Às vezes um whisky no fim. Não me trato mal...


Como lida com eventuais críticas e elogios?

Reconheço que a modéstia não faz parte das minhas maiores qualidades. Mas aceito críticas que ache inteligentes e pertinentes, desde que feitas sem um manifesto desejo de ser desagradável. Levo as observações muito a sério, em especial se vindas da parte de quem me merece respeito e cuja autoridade profissional reconheço.


O que diria sobre a ideia de que as pessoas com quem se relaciona profissionalmente têm de si?

Só perguntando-lhes. A única coisa que eu gostaria que elas pensassem de mim, para além de todos os critérios de avaliação que possam ter sobre o fruto do meu trabalho, é que faço tudo a que me dedico com afinco e seriedade. O resto, o saldo e a qualidade do que faço, é algo que eles têm o direito de julgar. Sou muito menos tolerante para os juízos de caráter.


Ao longo do dia, dá importância às redes sociais?

Bastante. As redes sociais são a minha principal fonte de chamada de atenção para os temas internacionais do dia. Utilizo várias redes sociais, onde comento mas onde raramente interajo. Não consigo ter tempo para a interlocução com os leitores. Não sei se lamento.


Tem hobbies ou atividades que faz regularmente?

Quase nenhuns, salvo algumas tertúlias almoçantes, com amigos. Vejo muito pouco televisão, leio livros, sempre em papel, leio jornais, mas já quase só online, e escrevo o meu blogue diário. Ah! E vou a concertos musicais. E, claro, visito livrarias e restaurantes. Gosto de sair de Lisboa nos fins de semana e ficar numa pousada ou num hotel, a flanar, a ler, a comer, a conversar.


A que horas costuma terminar a atividade profissional?

Nunca, na realidade. Ou melhor, essa atividade só para ao deitar. Pensando bem, trabalho mais de oito horas por dia, sete dias por semana.


"Leva” trabalho para casa?

Trabalho essencialmente em casa, pelo que não abandono o “lugar de trabalho”. Quando viajo, a minha velha pasta, além do iPad que me liga ao mundo, vai atulhada de coisas para ler e para escrever. Levo o “escritório” comigo, às vezes até para a sala de espera de um médico. E, sempre, para o Alfa Pendular, de e para o Porto, onde gosto muito de viajar.


Costuma conversar com alguém sobre a sua atividade no final do dia?

Em casa, com a minha mulher, quando ela tem paciência para ouvir-me falar de algumas das várias coisas que faço. Mas a Star Crime, a 24 Kitchen e a Mezzo interpõem-se muito.


Costuma viajar com frequência nas suas atividades profissionais?

Viajo bastante pelo país, que conheço como creio que muito pouca gente conhece. Parte dessas viagens é por razões profissionais ou por atividades “pro bono”, que algumas vezes aceito. As viagens profissionais ao estrangeiro não são muito frequentes, acontecem apenas uma meia dúzia de vezes por ano, tal como para outras tarefas interessantes como palestras, colóquios, seminários para que sou convidado. Mas sou cada vez mais criterioso na aceitação desses convites, pagos ou não.


Há muita diferença entre os dias da semana e os fins de semana?

Quase nenhuma. Apenas, em regra, não tenho reuniões ao fim de semana. Mas os sete dias são, em absoluto, idênticos, no tocante à leitura ou escrita ou outro trabalho.


Quais são os seus hábitos de jantar? Horário e exemplo de menu?

Janto muito em casa. Já fui bem mais, mas ainda sou um regular frequentador de restaurantes. Gosto de conhecer novas casas, tomo nota de recomendações, mas, crescentemente, fujo dos locais que sei que andam em voga. Sendo conhecido, entre amigos, como alguém que visita muitos restaurantes, adoro poder dizer, quando me perguntam o que achei de um determinado lugar de que toda a gente fala: “Não sei, não conheço, nunca fui lá!”. Horários? Gosto de ir pelas 20.30/21.00. Reservo sempre (sempre! e quando não aceitam reservas não vou), não fico em filas, não espero por uma mesa mais de cinco minutos. Menus? Assumo que sou um mau gastrónomo, sou muito tradicional e conservador, nada variado nas escolhas, pouco ousado perante experiências sensoriais novas.


O que faz antes de dormir?

Verifico a agenda do dia seguinte, olho o “Público” on-line e consulto alguns sites de notícias. E leio, no mínimo, aí umas 20 páginas de um dos vários (muitos) livros que tenho “em curso de leitura”, como costumo designar essa otimista tarefa que, em muitos casos, não chega nunca a ser concluída.


A que horas se costuma deitar e quantas horas dedica ao sono?

Como referi, deito-me quase sempre muito tarde, a menos que tenha tarefas a fazer cedo na manhã seguinte. Mas não tenho uma hora certa de ir para a cama. Procuro dormir sete horas por noite, mas às vezes não consigo, precisamente porque a irregularidade me prejudica o sono. Mas, não obstante esse preço, faço essa opção na vida.


Como mantém o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional?

Já fui “workaholic” e até quase “stakanovista”, cometendo então o erro de esperar que outros o fossem também. A minha vida foi sempre um todo: nunca parei o trabalho a uma certa hora, para depois iniciar o resto do meu dia. Nas 24 horas do dia, vou colocando aquilo que me apetece. Ou que tenho de executar. Faço parte das pessoas para quem trabalhar nunca foi um peso para a sua vida quotidiana. Além disso, fiz parte de uma espécie em extinção: as pessoas que sentiam um grande orgulho em serem servidores do Estado. Gostei muito de ter sido funcionário público (como o meu pai e o meu avô), mas tem sido imensamente enriquecedor trabalhar no setor privado, onde a “accountability” é muito mais rigorosa. Aprendi a admirar quem arrisca o seu dinheiro em negócios.


Vê-se a ter outra atividade?

Na vida, em 53 anos de trabalho, gostei de tudo aquilo que fiz. Mas admito que me teria sentido muito bem a fazer outras coisas. Sou muito adaptável e desafio-me a mim mesmo. Sou altamente competitivo comigo e – palavra de honra! – rigorosamente nada com os outros. Não faço parte das pessoas que proclamam: “Não gosto de perder, nem a feijões”. Perco e ganho com imensa naturalidade e, às vezes, até me sinto um pouco envergonhado quando ganho.


O que mais gosta e menos gosta do que faz?

O que mais gosto é, no final das tarefas, ter a consciência íntima de que fiz as coisas bem. Tenho alguma frustração quando sinto que fiz as coisas tão bem quanto sabia e podia, mas que, afinal, isso não foi suficiente para ter atingido o objetivo que pretendia. E que assim desiludi quem em mim confiou para a execução desse trabalho. 

12 de dezembro de 2024

"Breve Infinito - O Cais Anterior"

 


Apresentação do livro “Breve Infinito – O Cais Anterior”, de João Miranda. Grémio Literário, Lisboa, 11.12.24 

Hoje lembrei-me muito de um amigo que tenho, uma pessoa muito conhecida. Um dia, ao vê-lo intervir num determinado contexto, achei estranha essa sua incursão por zonas em que eu lhe não conhecia hábitos e, com a confiança grande que temos, disse-lho. A resposta foi desarmante: "Sabes, nos dias de hoje, com a idade que tenho, salvo sobre algumas ciências exatas, já falo um pouco sobre tudo". 

Sinto-me hoje como esse meu amigo. É que ver-me a apresentar um livro de ficção é algo tão estranho que só uma grande inconsciência me pode levar a esta ousadia. A idade, de facto, fragiliza-nos as defesas e abre espaço a ousadias que, com um pouco mais de serenidade, nunca levaríamos à prática. 

A culpa é minha, é verdade, mas é muito mais do João Miranda, que me levou a esta posição em que aqui estou agora. Prometo ser breve. 

O João é meu camarada de tropa. Fizemos juntos o 25 de Abril. Depois, perdemo-nos de vista. Cada um foi à sua vida, ele pela banca, depois de ter andado por outras guerras, eu pela ação externa do Estado, depois de ter a banca como meu primeiro emprego. Já nem recordo bem como nos reencontrámos. Sei que um dia dei por mim na cave da falecida "Férin", onde ele apresentava um livro que intitulou "O homem que inventa setembros". O João teve o bom gosto de se acolher à sombra do local onde o Artur Curvelo vendeu, ou tentou vender, o "Esmaltes e Jóias", na "A Capital", do Eça. Espero que com maior sucesso. 

Depois disso, eu e o João fomo-nos vendo pelas redes sociais, às vezes num registo de muro das lamentações, outras vezes no comentário ao quotidiano político, coisa que costuma entreter os reformados, que acham que já ganharam altura, distância e inimputabilidade para se darem ao luxo de olhar o mundo com uma suposta autoridade crítica. 

Até que chegou o "Breve Infinito – O Cais Anterior". Um dia, que por acaso era uma noite, o João perguntou se eu estava disponível para fazer a apresentação do livro. E eu, sem conhecer a obra, sem medir a irresponsabilidade do gesto, disse que sim. Só quando pus os pés na realidade é que me dei conta de que estava quase a entrar nas "ciências exatas" do outro meu amigo. E quando acabei de ler o texto, aí sim, percebi que tinha passado a linha vermelha da prudência mínima. 

O que acabo de dizer, como já perceberam, é um pouco subtil "disclaimer" para atenuar o eventual impacto negativo do que vou dizer a seguir. 

Sei que chocarei a maioria dos presentes se disser que não sou um regular leitor de obras de ficção, salvo de algumas memórias políticas que quase sempre se inserem nesse mundo inventivo. Não excluo que um livro que publiquei há um ano possa sofrer desse possível pecadilho... 

O livro do João Miranda, para um leigo da literatura como eu sou, é um objeto estranho. Os senhores, que o vão ler, perceberão melhor isso depois. Não vou contar o livro, mas sempre direi que o João procura ancorar o cruzamento, a partir de um cais que é um cenário recorrente, entre pessoas que combinam a banalidade e a simplicidade da vida com o salto mais exaltante para outros mundos. 

O leitor tem de estar atento, porque se combinam, numa escrita culta e temperada por referências, algumas muito atuais, figuras que se acolhem em vários tempos. O recorte no presente de algumas personagens é-nos elucidado e colorido pelo recurso ao seu passado, havendo por ali, além de alguns espaços oníricos, "flashbacks" sem os quais a trama seria menos compreensível e menos rica. 

O João carreia para o texto, e para as suas personagens, onde há muito poucos nomes, muitos quadros de referência que fizeram parte da sua, da nossa geração. Estão por ali o Maio 68, a guerra do Vietnam, mas também a guerra colonial e outras, muitas coisas, que nos sao comuns. E a música, onde a sua música clássica surge, a espaços, a pontuar situações, mas também a música de contestação ao fascismo, nosso ou daqui ao lado, em Espanha. E o jazz, também muitas vezes por ali. 

O João - deve ser da idade - traz para o texto diversas notas de um tempo atual que a todos nos diz muito, mas, curiosamente, evita dar-lhe excessiva importância, não levando as coisas muito a sério, deixando no ar uma ironia relativizadora a marcar essas referências. A prova mais provada desse jogo, quase depreciador da gravidade dos temas, é o frequente recurso que faz a expressões comuns, às vezes colocando-as em moldes de trocadilhos. Repito: deve ser da idade, porque eu próprio me vejo tentado, muitas vezes, a abordagens semelhantes. Sem, contudo, o pôr na escrita ficcional, porque cada um nasce para o que é. 

Este livro, no fim de contas, acaba por ser um manual de gestão de solidões, quer as que atravessam quem vive as suas vidas, mais ou menos estranhas, ao lado de alguém, quer as dos solitários que, para compensarem o seu isolamento, criam mundos imaginário que, afinal, os enchem de gente à sua volta. O João retrata bem essas solidões diferentemente acompanhadas. 

Para quem, como eu, nasceu na província, embora em terra sem cais com brumas por onde não me apareciam raparigas flutuantes a anunciar amanhãs ideais, este texto parece situar-se num contexto urbano fora das grandes urbes, mesmo que pontualmente fuja dessa geografia. Digo isto porque sempre achei que as narrativas assentes nas cidades grandes, embora por vezes reconduzidas ao microcosmo dos bairros, têm uma natureza muito diferente das da província. Ali, nas cidades ou vilas pequenas, há mais transparência, menos privacidade, bastante mais crueldade nos olhares críticos, porque são permanentes, rigorosamente vigiados pela filosofia intrusiva da vizinhança. Este é, para mim, um livro que comporta um olhar sobre um mundo de província - e, podem crer, isso faz toda a diferença. Embora aqui, verdadeiramente, o vizinho espreitador seja o autor. 

Como referi no início, não sou um leitor habitual de ficção, salvo aqueles Eças e Camilos que nos absolvem, repetidamente, desse pecado. Por isso - e vou ser totalmente franco - quero dizer que o meu olhar de leitor viciado na não-ficção perdeu-se, algumas vezes, no saltitar das tramas e no elaborado cruzar dos tempos. Andei frequentemente para trás, para perceber se me tinha enganado ou se era a escrita do João que tinha feito isso deliberadamente. Este é um livro e um texto - aviso já - que exige alguma atenção ao leitor, em especial até que ele conseguir fixar, no palco central das personagens, o eixo básico da narrativa. É um livro que exige algum trabalho, como é da natureza das obras sérias, não é um livro ligeiro de literatura "soft". É bom que saibam ao que vão. 

Eu sou amigo do João mas, na realidade, conhecemo-nos mal. Mas o que é interessante é que, tendo lido este livro, e o livro anterior, e porque fico com a ideia de que ele não cuida muito em esconder-se por detrás do texto, fiquei agora a conhecê-lo muito melhor, nos seus hábitos - eu não bebo Lagavulin, porque sou dado a whiskies com menos peat -, nos seus classissismos - como no uso do latim com alguma ousada "aisance", que há muito já se perdeu por aí, e também nas suas, às vezes insconcientes, derivas geracionais. 

Se os miúdos ainda lessem livros, adorava assistir a uma conversa entre pessoas na casa dos 20 anos sobre este texto. Seria fascinante ouvi-los e perceber o que eles guardariam desta narrativa. É verdade: quem ainda conhece a Jeanne Moreau ou sabe onde se afogou o Barão de Forrester ou viu o bigode orquestral do Xavier Cugat? E tantas outras coisas do género caídas no texto. 

Mas eu creio, embora podendo estar errado, que, ao escrever o que escreveu e da forma como o escreveu, o João desistiu deliberadamente de ser entendido para além de algumas fronteiras, não apenas geracionais, mas igualmente culturais. E é preciso assumir isto com frontalidade, como dizia o Batista Bastos, que também já ninguém sabe quem foi. 

Meu Caro João. Disse o que pensava, à minha maneira. Acho que fizeste muito bem em fazer esta nova incursão na área da ficção. Acho que o nosso amigo Baptista Lopes, que um dia me pagou um belo cozido à portuguesa para me convencer, sem sucesso, a escrever e publicar um livro com a editora ele, está de parabéns ao ter atracado o seu barco editorial no teu cais anterior. Mereces um cozido. Leva o Antunes, leva o médico esquerdalho, o Preto engraxador, os senhores arquitetos e o homem da Camoniana que nunca mais se esqueceu do Quartier Latin. E leva, claro, a rapariga e o catraio, que tratava o homem por velho. 

Ah! Eu não sabia o que era azereiro! Nem nunca usei a palavra azabumbante. Já aprendi com o teu livro! Nem nunca fui a Tisnov, na República Checa e não Chéquia, como agora dizem. Mas conheço Algar do Carvão. 

Parabéns, meu caro João. E ficamos à espera de mais livros.

4 de outubro de 2024

"Um Mundo Dividido"

(Entrevista a Helena Tecedeiro, para o “Diário de Notícias”) 

Antes da Conferência de Lisboa - nos dias 10 e 11 na Gulbenkian - sob o tema Um Mundo Dividido, o DN foi ouvir o embaixador Francisco Seixas da Costa, presidente do Clube de Lisboa. 

Dos EUA à China, do Médio Oriente à Ucrânia e à Europa, pequena volta pelos desafios do nosso mundo.

Estamos a pouco mais de um mês das presidenciais nos EUA. O mundo vai ser muito diferente se vencer Kamala Harris ou Donald Trump, ou nem por isso? 

Eu acho que vai ser muito diferente se ganhar Donald Trump. Mas se ganhar Kamala Harris, provavelmente também não será business as usual. Uma nova presidente americana, sobretudo alguém que estava relativamente abafada pelo presidente, vai querer introduzir essa nota de diferença na atitude americana, quer no plano interno, quer na política externa. No quadro dos dois cenários de guerra que vivemos, provavelmente na questão da Ucrânia haverá um sentimento de continuidade que fará respirar fundo os europeus. No caso do Médio Oriente, e tendo em atenção aquilo que já se viu, pode haver alguma diferença na atitude face a Benjamin Netanyahu, e é possível esperar alguma ligeira mudança. Digo ligeira porque acho que nos EUA desde há 30 ou 40 anos que não verificamos uma diferença de posicionamento das administrações, republicanas ou democratas, face ao essencial da questão israelita. A exceção é uma ala mais à esquerda no Partido Democrata, que, a meu ver bem, se escandalizou com o tipo de collateral casualties que Israel provocou em Gaza, para utilizar um understatement

Essa ala ganharia peso numa administração Harris 

A administração Biden foi uma construção de várias alas democratas para vencer Trump. Algumas alas mais radicais - de Bernie Sanders, de Elizabeth Warren ou de Ocasio-Cortez - prescindiram de alguma expressão e preferiram apostar em alguém que tinha condições para derrotar Trump. Esse alguém acabou por se autoprestigiar ao longo dos quatro anos e condicionou a evolução dessas alas. Veremos o que vai acontecer com Kamala Harris, tendo em conta que ela era uma caução mais liberal dentro do ticket americano. Olhando em perspetiva a política americana, a sensação que tenho é que Biden era, em função da sua experiência, o condutor da sua própria política. Harris pode vir a representar mais a média das posições do Departamento de Estado e da Defesa, nos próximos quatro anos. Ela não tem a experiência internacional que Biden invocava internamente. Se acaso for Trump a ganhar, vai mudar, como já anunciou, a questão ucraniana. E no caso de Israel, das duas uma, ou continua na mesma linha que seguiu no passado, isto é, o mais concessionista possível, ou poderá repensar a questão. Não há sinais de que Netanyahu ficasse descontente se Trump ganhasse. Há só um problema entre a agenda israelita e a agenda de Trump. Este deu sinais de não querer a América envolvida em novos conflitos, no sentido de boots on the ground, homens no terreno. Mas pode fazer uma espécie de sublocação no sentido de dizer que Israel toma conta do Médio Oriente, e os EUA dão-lhe todos os meios para tal. Isso tornaria Israel numa espécie de poder subordinado. Para muitos americanos, Israel é uma espécie de enclave ocidental naquela região. Por outro lado, há um sentido de resistência, de que há um grupo que está ali a lutar contra os vizinhos que, mais ou menos, o detestam. E isso tem expressão, particularmente, no caso de um país do qual, quer republicanos, quer democratas, estão mortos por se livrar, que é o Irão. Pode ser que Trump cometa a ousadia de dizer a Israel: tratem do caso do Irão. Eu diria que já há grandes potências europeias mais ou menos predispostas a aceitar que Israel fizesse o dirty work por elas, para acabar com a ameaça nuclear no Irão. Um terceiro cenário é a questão da Ásia Pacífico e a relação com a China. Não sabemos como é que a decisão será tomada perante situações de maior tensão. Temos consciência que a decisão com Trump é mais unipessoal e que com os democratas há uma contextualização e uma abordagem mais racional e mais ponderada. Mesmo tendo muitas dúvidas sobre certos comportamentos da administração americana nos últimos quatro anos, nomeadamente na Ucrânia, acho que Biden foi o adulto na sala que impediu que posições mais extremadas, quer dos Bálticos, quer da Polónia, pudessem vir ao de cima e por isso mesmo é que se viu por parte de Zelensky algum mal-estar perante a prudência de Biden. Em relação à China tudo dependerá do grau da ameaça. Eu nunca vi declarações muito concretas de Trump relativamente a Taiwan, vejo-as mais em relação à China. Como é que ele vê a chamada "ambiguidade estratégica" face a Taiwan? O grande drama que podemos ter com Trump - e que podemos ter com Putin - é o processo decisório estar muito centrado numa pessoa. Devo confessar que me assustei no outro dia ao ver Putin declinar a nova doutrina nuclear russa, porque a noção de ser um “vaipe” de natureza pessoal faz-me ter consciência que o processo decisório na Rússia é menos democrático hoje do que no tempo da União Soviética, em que tínhamos o Politburo, o Comité Central, etc. Ora a matriz americana, em matéria de poder do presidente, confere-lhe uma liberdade quase sem limite, portanto, um presidente americano pode guinar para um lado ou para o outro, e nós já vimos o que foi Trump durante quatro anos. 

Estava a falar de Putin e de como, se lhe der um “vaipe”, como diz, pode carregar no botão do nuclear a qualquer momento. Para a Europa a Rússia é a maior ameaça? 

Acho que a maior ameaça que a Europa tem é a sua própria unidade. A Europa vive neste momento numa pulsão anti-Russa e num medo à Rússia. Dito isto, e vou dizer algo que é politicamente menos correto, há dois desfechos possíveis na guerra da Ucrânia, ambos desfavoráveis à Ucrânia. Um é a bielorrussização da Ucrânia, que era o sonho de Putin, que falhou em 2022. A segunda “solução” para a Ucrânia é aquela que J.D. Vance avançou e que é a meio percurso entre a entrada na NATO e na UE e a bielorrussização, isto é a Ucrânia continuar como um país independente mas perder territórios para a Rússia num acordo de paz. Seria apenas uma estabilização da situação no terreno, uma espécie de guerra congelada. Devo dizer que não subscrevo uma leitura trágica para a Europa perante uma situação desse género. E digo esta coisa que pode parecer simplória mas que é uma síntese: se Putin não consegue chegar a Kharkiv, como é que vai chegar a Varsóvia? Dito isto, será uma solução justa para a Ucrânia? Essa é outra questão. Tenho, sim, uma leitura trágica se a Ucrânia caísse para o lado russo. Porque a Bielorrússia já é um país dependente e se a Ucrânia caísse, a situação era profundamente detrimental para a segurança dos países nessa fronteira. Conheço bem aqueles países e quando se está lá, percebe-se melhor porque é que eles têm esta obsessão em relação à Rússia. Não é só produto de uma russofobia militante. Foi a obsessão em relação à Rússia que os levou a ir para a NATO. Eles perceberam que a evolução da Rússia foi-se densificando numa matriz autoritária que os preocupou. Matriz essa que veio a confirmar-se com a invasão da Ucrânia. Agora, a questão é a seguinte, Trump vai impor uma solução. Zelensky pode protestar, os europeus podem protestar, mas é indiferente. Pode manter Zelensky no poder em Kiev, perdendo algumas regiões, não sei, mas que o mundo vai ser diferente, vai. E isto tem uma constatação terrível, que é que nós não temos verdadeira autonomia relativamente à autodeterminação do nosso futuro. Estamos dependentes de umas eleições americanas que decidem o nosso futuro em matéria de segurança. 

A Europa parece começar a perceber isso, ainda vai a tempo? 

Não é que vamos a tempo ou não - a Europa não é um país, a Europa tem dentro de si diferenças profundíssimas de perspetivas. Os últimos alargamentos, introduziram na UE uma diferença de perspetivas que cria uma grande tensão. Esses países trazem para a UE todas as suas idiossincrasias, algumas muito respeitáveis, que têm a ver com a sua proximidade geográfica. Eu não acredito na capacidade da Europa de criar uma estrutura de segurança e defesa. A Europa foi gerida durante muito tempo como se fosse um condomínio de que França e Alemanha eram sempre membros da Administração. Ora a França e a Alemanha hoje não se dão entre elas da mesma maneira, têm posturas muito diferentes. A França vive uma crise interna e um isolamento grande - é o único poder nuclear, é a única potência com capacidade de projeção de forças. A Alemanha vive na necessidade de uma reconversão rápida, que vai ter um tournant político para o ano. Estamos numa mudança rápida, e não tenho a certeza que consigamos um consenso interno na UE para os esforços financeiros que isso exige. Como aliás para o alargamento à Ucrânia. Das duas uma, ou isentamos a Ucrânia das grandes políticas da UE e portanto fica sem beneficiar delas, ou damos, e a Ucrânia torna-se um dos maiores países da UE, com mais deputados do que muitos outros, e no processo decisório torna-se um fator decisivo que vai confortar um pilar leste-europeu, centrado na Polónia, que pode desequilibrar por completo a UE que hoje conhecemos. 

Vemos muitos países europeu, a virarem para a extrema-direita. É um cenário que também pode desestabilizar a ideia que tínhamos da UE?

Eu acho que essencialmente vai afetar o nosso património moral de valores. Tínhamos criado a ideia de uma vontade de acolhimento que se ligava a uma certa noção de que é preciso imigração para o funcionamento do país. Depois assistimos ao medo que isso criou em determinados países europeus e a tensões de natureza social a que isso levou, quer no quadro de uma imigração ou de refugiados de origem muito diferente, quer na evolução interna das sociedades em que muitos já nasceram. No caso da França, das pessoas que têm atitudes de comunitarismo radical, muitas já lá nasceram. São filhos de gente que veio do norte da África mais do que da África subsaariana. 

Estamos em 2024, mas recordo-me bem de em 2000 estarmos a discutir a chegada ao poder de Jorg Haider na Áustria. Na altura foi o pânico na Europa. 

Foi o pânico, mas ele estava sozinho. E lembro-me que o país que mais impulsionou Portugal, na estava na presidência da UE na altura, a tomar atitudes radicais contra a Áustria, foi a França. Porquê? Porque estava muito preocupada com a subida da então Frente Nacional. Nós achávamos que era uma coisa residual. O que estamos a dar conta é que esta barreira moral e ética de princípios e valores que tínhamos por adquiridos na UE se desfez rapidamente. E desfez-se à esquerda e à direita. A Sahra Wagenknecht [fundadora da Aliança Sahra Wagenknecht na Alemanha], por exemplo, é muito interessante. Ela vem do Die Linke mas introduz um fator de conservadorismo de esquerda. E isto levanta uma questão que em França aconteceu que é a transferência de eleitores do Partido Comunista para a Frente Nacional. Depois levantou-se este mito da ligação da imigração à criminalidade. Porque temos tendência para achar que quem vem para a nossa terra não pode ter a sua quota de delinquência. Ora bem, há tantos imigrantes delinquentes como nacionais portugueses delinquentes. Nós em Portugal não estávamos habituados a viver com imigração oriunda de países que tivessem matrizes de natureza cultural e religiosa muito diferentes das nossas. Estávamos habituados a viver com pessoas que vinham de Angola, Guiné, Cabo Verde, Moçambique, etc. Começámos a habituar-nos, embora houvesse já alguma rejeição, aos brasileiros, mas esta onda de hindustânicos começou a criar uma diferença na paisagem, em particular, os trajes muçulmanos nas nossas ruas. Não estávamos habituados porque não havia fluxos muçulmanos para cá. E por isso o cartaz da manifestação organizada pelo Chega há dias, é um cartaz que tem elementos passíveis de acusação criminal, porque associa a imigração à insegurança e junta imagens que são fatores de indução de medo e terror. Acho isto muito perigoso. Voltando à questão, em todos os países há partidos com ramificações à extrema-esquerda ou à extrema-direita. Mas durante muitos anos a extrema-esquerda não era, e continua a não ser, equiparada à extrema-direita. Porque não tem agendas de ódio, a não ser aos ricos. A extrema-esquerda não é racista, não é xenófoba. 

Agora tem um pouco em relação a Israel… 

Sim, sim. Mas é um caso pontual. E há ali mais antissionismo do que antissemitismo. Portanto, a extrema-esquerda era mais falável do que a extrema-direita. O que damos conta, neste momento, é que a extrema-direita tem várias declinações. Temos a extrema-direita da senhora Meloni, que é atlantista e pro-ucraniana, temos a extrema-direita anti-ucraniana, contra os imigrantes. A extrema-direita dá uma resposta radical aos problemas, quase sempre com valores que fogem do mainstream. Vai ser possível travar isto? Já se percebeu que mecanismos como aquele que há 24 anos criámos por causa da Áustria não funcionam. Já se percebeu que a UE só tem capacidade para reagir em relação a certas derivas quando o comportamento de um partido ou de um país abala o mainstream da Europa. Foi o caso da Hungria relativamente à questão ucraniana. Mas já não foi o caso da Polónia, com derivas graves em matéria de separação de poderes, de ataque à liberdade de imprensa, etc. Por isso, diria que há a possibilidade de estes movimentos, apesar de estarem divididos - no Parlamento Europeu têm três grupos diferentes -, a certa altura virem a obstaculizar agendas importantes, a principal das quais é a transição energética e a questão climática. Temos esses partidos ligados a questões de reacionarismo agrícola, isto é, de tentativa de não fazer as mudanças na agricultura devido ao seu custo económico. Em Portugal já assistimos a esse discurso, e há sinais disso no Parlamento Europeu. 

Falámos há pouco da China e de como a questão de Taiwan pode ser a próxima frente de batalha. A China está empenhada em disputar aos EUA o lugar de superpotência mundial? 

Sim, e não é de agora. Quando em 2001 fui para os EUA, fiquei muito surpreendido por haver think tanks em Nova Iorque dedicados à China. Eu ia com a ideia de que a China era um poder que tinha uma relação estável com a Europa, provavelmente tínhamos cometido alguns erros no sentido de lhe dar entrada na Organização Mundial de Comércio, porque a China tem elementos de dumping objetivos que favoreceram a sua ascensão económica, mas nunca pensei que fosse uma questão muito importante para os EUA. Mas era. Fui para lá em fevereiro de 2001, e no dia 11 de Setembro de 2001, os EUA deixaram de falar da China, e passaram a falar do Médio Oriente, e só regressaram à China 20 anos depois. A China tinha um projeto de expansão serena à escala global, de que os EUA se tinham apercebido mais cedo que qualquer outro país, e que criava zonas de influência. Não do ponto de vista militar. A China tem 3 ou 4 bases no estrangeiro, os EUA têm 800. Mas a China era um poder que já tinha tido momentos de afirmação em África, criou a ideia da Nova Rota da Seda, isso foi muito importante para certos países poderem ter acesso a financiamento para infraestruturaa. Era uma forma serena da China entrar e fazer o seu percurso pela Ásia Central, por África, até por países europeus, a Grécia, a Itália, etc. Na guerra da Ucrânia, a China percebeu que não podia evitar pôr-se ao lado, ou pelo menos como colaborante com alguma distância, da Rússia, porque o mundo está a mudar e está dividido. A China percebe que lhe compete a liderança desse outro mundo. Eu não sou nada favorável à ideia de que vai haver um Sul Global tutelado pela China, acho que é um mito. A Índia nunca deixará que a China tenha a tutela desse mundo, e os países do Sul, muitos deles são apenas uma coleção de fragilidades que conjunturalmente estão com a China, mas se amanhã os EUA lhes dessem uma mão, iriam. A China tem aquele desiderato de Taiwan, sublinhou-o muito aquando do Centenário do Partido Comunista, mantém isso como uma obsessão mobilizadora internamente, e os EUA utilizam a questão de Taiwan - que foram eles que criaram, porque quem mudou a titularidade da presença no Conselho de Segurança da ONU em 1971-72 foram os EUA, para entalar a União Soviética, para colocar ao lado da União Soviética um outro poder do mesmo campo, do dito Sul, que o pudesse confrontar. Só que agora estão a vê-los juntos. 

Na altura dava jeito. 

Dava jeito e agora não dá. E por isso os EUA deram apenas aquela garantia vaga da chamada "ambiguidade estratégica", não dizendo exatamente o que farão se e quando a China atacar. Os EUA estão nessa posição, somado ao medo da afirmação internacional da China e da expansão da China no plano internacional, às ameaças que os seus aliados naquela área estão a ver - a Austrália, o Japão, as Filipinas, a Coreia do Sul. Os EUA, a certa altura, pensaram ser possível serem o protagonista da junção destes medos. Barack Obama e Hillary Clinton tinham o projeto do tratado comercial com os países à volta da China, Trump recuou e deixou-os um bocadinho no vazio, Biden regressa de certa maneira aí, e há uma consciência muito grande, transpartidária, nos Estados Unidos relativamente à China. Há um outro problema que a China coloca, que é o não respeito pelo direito internacional no Mar do Sul da China. A China cria verdadeiros desafios ao direito internacional marítimo, e coloca desafios fronteiriços importantes numa atitude agressiva, no limiar da agressão, e numa tensão grande com a sua vizinhança. Os EUA pressentiram, e bem, que a Europa não é a ameaça e estavam voltados completamente para a Ásia. A grande questão volta a ser Trump. Trump não quer tropas lá fora porque pressente que não há vontade nos EUA de ter our boys abroad, e vai querer fazer uma gestão de negociação de poderes, como fez com as Coreias. Portanto, apesar de tudo, acho que os EUA e os militares americanos são os adultos na sala. Se isto der para o torto, são eles que ficam na primeira linha de um conflito nuclear de natureza estratégica, e por isso têm muito cuidado. Agora, pode dar um “vaipe” ao senhor na Rússia. Nos EUA é menos fácil isso acontecer. Mesmo com um Trump "passado dos carretos", as forças armadas americanas teriam um mínimo de bom senso armado. Já na China as coisas são muito mais pensadas, não são tão personalizadas, apesar de tudo, há um poder decisório de valor mais alargado. 

Apesar de Xi Jinping ter puxado a si tanto poder? 

Xi Jinping é um bocadinho o "genérico" do Mao. Eles precisam muito de uma cara para representar o país e o prestígio do país. Mas em tudo o que meta armas nucleares estratégicas, tendo a pensar que há alguma racionalidade quer nos EUA, quer na China, já tenho mais dúvidas sobre uma Rússia acossada e com a noção de que pode estar a sofrer um desafio à sua sobrevivência 

A Conferência de Lisboa vai discutir este mundo dividido? 

Esta conferência é a constatação do óbvio, isto é, o mundo está dividido. Vamos tentar perceber onde é que estas divisões estão, no plano geopolítico, no plano dos grandes equilíbrios, no plano económico, no plano das terras raras, no plano das identidades. É verdade que questões como a guerra, como as migrações, como a abertura e a generosidade face aos refugiados, as questões da nacionalidade, da identidade nacional, os confrontos culturais, impactam sobre a democracia. Se a democracia não é capaz de encontrar mecanismos para gerir essas diferenças, vai rebentar pelas ruas ou vai rebentar pelo mal-estar das populações. Mas já não fomos a tempo nesta conferência de colocar uma questão que para mim é essencial, que é a dualidade de critérios de alguns países e muitos cidadãos na questão da Ucrânia e da Palestina. E isso é, para além de uma hipocrisia, uma quebra moral. Há duas entidades que tiveram esta quebra moral. Uma são os EUA, que na questão da Ucrânia tinham a razão do seu lado, são os grandes vencedores da guerra da Ucrânia, pela contenção da Rússia, pela venda do gás, pelo armamento e por não ter boots on the ground, e também pelos princípios morais que defendiam. Quando os EUA mudam para a questão da Palestina, perdem a razão moral. A Europa, a mesma coisa. Há muitos países europeus onde a questão israelita tem dimensões trágicas, históricas, o que leva a que esteja para além da racionalidade. Em França, por exemplo, o antissemitismo é muito forte, à esquerda e à direita. O antissemitismo tinge às vezes alguma esquerda, mas há outra, à qual eu pertenço, que é antissionista. A meu ver, o antissionismo é uma opção perfeitamente válida, lógica e discutível no plano internacional. O antissemitismo, que é uma forma de racismo, da mesma forma que a islamofobia o é..

26 de agosto de 2024

Conversa entre Joões

Creio que foi no final dos anos 80. O meu amigo João Sobral Costa, um gigante de bondade que há muito se foi, disse-me: "Há dias, em conversa com o João Soares, dei conta de que vocês não se conhecem pessoalmente. Tempos de corrigir isso!" Há muito que ele me dizia que eram amigos e camaradas, na "tendência" que, no PS, se reunia em torno de João Soares.

Era de facto um pouco estranho que, sendo o João Soares e eu praticamente da mesma idade (embora eu leve um inultrapassável ano de avanço), nunca tivesse ocorrido encontrarmo-nos, na Lisboa da vida associativa universitária e dos cafés desse tempo. Verdade seja que tínhamos estado a poucos metros um do outro, com a polícia de choque por agitada companhia, no funeral de Ribeiro Santos: o João, valente, com o caixão às costas, eu, aselha na fuga, levando uma bastonada de um cívico nas minhas costa - única marca física da repressão anti-fascista de que me posso orgulhar. E, creio que também sob o mobilizador "patrocínio" do capitão Maltez, ambos tínhamos estado numa noite movimentada de 1969, à porta da Sociedade Nacional de Belas-Artes.

Na política, os nossos caminhos, se bem que sempre do mesmo lado da estrada, haviam começado por ser algo diferentes. O João andou por um heterodoxo e para mim sempre misterioso GAPS, eu passeava-me ideologicamente pelo MES, olhando então o PS e as suas declinações, como uma mera opção "reformista", demasiado burguesa para os meus gostos radicais de então. 

Foi nesse jantar em casa do João Sobral Costa, esse capitão de Abril que nos faltou à festa dos 50 anos, que conversei pela primeira vez com o João Soares. O anfitrião, contente da vida pelo encontro proporcionado, excelente cozinheiro que era, entrava e saía da sala, de avental (na ocasião, era o de cozinheiro, entenda-se), servindo de compère à cena. Lembro-me de termos falado das duas Angolas que então se combatiam, confirmando não termos a mesma visão das coisas que se passavam por lá.

Foi assim que conheci o João Soares. Desde então, com percursos políticos mais comuns, fomo-nos vendo mais amiúde, de início em Viena e em Paris, onde eu pousei e ele passou, e depois, bastante mais, já em Lisboa. Como ministro fez-me um honroso convite, que agradeci mas não pude aceitar. Entretanto, amesendamos regularmente a conversa numa tertúlia que não tem outra agenda que não seja a amizade e o gosto pela conversa bem disposta. Continuando assim a conversa que há quatro décadas começou em casa do João Sobral Costa.

Um forte abraço de parabéns pelos 75 anos, meu caro João Soares. Já passei por eles e fiquei com boas recordações.

(Texto para o livro editado nos 75 anos de João Soares)

22 de fevereiro de 2024

Segurança

Apresentação do livro de Nelson Lourenço, "Sociedade Global e Segurança - Modernidade, Complexidade e Incerteza", no dia 21 de fevereiro de 2024

Quero começar por agradecer ao Nelson Lourenço a amabilidade que teve em convidar-me para colaborar na apresentação do seu novo livro.

Eu e o Nelson somos amigos, como também o sou da Ema, desde há mais de 55 anos, das salas e dos belos jardins do ISCSPU - então com um "U" no fim. O país, em 1974, também acabaria por perder o seu "U"... E nós perdemos, para sempre, aquelas bibliotecas, as aulas de Ronga, de Quimbundo, de Tetum, mas também a serenidade da Sala Verde para a conversa, o sossego das mesas de leitura do Centro de Estudos Missionários, os "xes" beirões do padre Silva Rego, a dona Irene da secretaria, o Zé Augusto da portaria e, last but not least, o professor Adriano Moreira. 

E, já que falamos de segurança, também perdemos - eu guardo sempre isso no avesso da minha memória afetiva - também perdemos o capitão Maltez, a entrar um dia por ali dentro, à frente da polícia de choque e saquear a Associação de Estudantes. Perdemos já tanta coisa, boa e má.

Com o tempo e as andanças de ambos, eu e o Nelson também nos fomos perdendo de vista um do outro. Sabíamos onde cada um andava - ele numa brilhante carreira académica, eu pela itinerância diplomática - mas víamo-nos pouco. 

Um dia, o Nelson desafiou-me para integrar uma aventura chamada GRES - Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança. Ele era, e continua até hoje a ser, a alma do GRES, onde temos como figura tutelar o Dr. António Figueiredo Lopes e onde o José Conde Rodrigues participa ativamente com o seu conhecimento académico e político. 

O GRES fez entretanto coisas muito estimáveis, para quem não saiba. E vai fazer mais, em breve, para quem estiver interessado. A minha colaboração no Grupo, devo confessar, foi sempre modesta, como modestas são as minhas competências em alguns dos domínios em que o GRES declina a sua ação, em particular em muito do que excede as dimensões de segurança internacional, domínio onde a vida profissional me rotinou a refletir.

Serve isto para alertar que foi de uma imensa irresponsabilidade ter acedido a participar na apresentação desde livro, correspondendo à também imensa generosidade que foi convite do Nelson. Mas, porque a audácia ainda não paga imposto, vamos então a isso. Serei breve e, para sê-lo, decidi escrever o que estou a dizer.

Cheguei ao fim deste livro com um sentimento duplo. 

Desde logo com a ideia de que há realidades que atravessam o nosso quotidiano sem que nós, no afã desse mesmo dia a dia, cuidemos em sistematizá-las. E que é necessário surgir alguém, munido de ferramentas académicas, para pôr todas essas perceções em ordem. Através do trabalho que resultou neste livro passamos a entender melhor certas coisas que, por fazerem parte do nosso cenário comum de vida, não tínhamos isolado e organizado. 

Lembro-me bem de que, quando comecei a estudar sociologia, nos alertavam para a dificuldade que essa ciência começou por ter, para se afirmar, pelo facto de tratar de coisas comuns, que faziam parte quase inconsciente da nossa rotina, mas que, até ali, não tinham encontrado a dignidade de um tratamento científico. Ao ler este estudo lembrei-me bastante disso. As questões de segurança, para o cidadão comum, estão muito nesse plano.

O segundo sentimento é de alguma preocupação. Embora o Nelson, no seu esforço para não perder o otimismo, caia sempre, no texto, no "dever ser", na possibilidade de se organizarem soluções para os problemas encontrados, como contraponto às disfunções que vai alinhando, na radiografia crítica que faz da evolução das várias dimensões da segurança, devo confessar que, em regra, cheguei ao fim dos vários capítulos, das "lições" em que o livro se divide, com o sentimento de uma acrescida inquietação. É que algumas das derivas detetadas no estudo, para quem for minimamente realista, não auguram nada de bom.

Um leitor comum decantará deste livro uma banalidade que, nem por o ser, deixa de ser uma constatação, uma grande verdade: a segurança, nos dias de hoje, já não é o que era. 

Ao percorrer o texto, o leitor será levado a concluir o óbvio: que, nas sociedades contemporâneas, aquelas que eram algumas das baias que, no passado, sustentavam os mecanismos da segurança coletiva têm vindo a ser corroídas e é cada vez mais problemática, eu diria mesmo improvável, a possibilidade de se vir a restaurar o contrato social que garanta a sua eficácia, aceitação e, mais do que isso, a perceção da sua legitimidade.

Deste livro ressalta a ideia de que a diluição de algumas fronteiras, físicas e outras, que, no passado, isolavam e protegiam de contágio algumas realidades sociais, no seu nível nacional ou outro, ao desaparecerem ou atenuarem-se, geraram dinâmicas que obrigam ao desenho de novos modelos de governança nos domínios da segurança. E que, nesse domínio, estamos a viver um tempo de transição que parece muito longe de resolvido.

Gostava, naquilo que é a minha experiência, na área da segurança internacional, de partilhar agora algo de pessoal. E que vai no mesmo sentido daquilo para que este livro aponta.

Na última década, tenho sido chamado, no âmbito de várias empresas e instituições com ação internacional, a preparar pareceres sobre os riscos seus investimentos externos. Nessa atividade, confronto-me com uma crescente dificuldade, ao procurar identificar a importância relativa das várias variáveis de segurança, a que os responsáveis dessas mesmas empresas devem atentar nas suas opções. Não sou pago para espalhar alarmismos fáceis, mas também não me posso eximir a ser claro nas áreas onde me parece que existem riscos reais. 

As variáveis que costumo utilizar têm uma dupla natureza. 

Por um lado, as questões internacionais que provocam desequilíbrios na segurança política e institucional desses mercados e, por outro, as dinâmicas políticas internas dos vários países, onde às vezes tenho de travar derivas imaginativas que quase relevariam da futurologia. Se lhes disser que os mercados de África e da América Latina fazem parte essencial dessas minhas preocupações profissionais, perceberão melhor a minha inquietação. Noto, aliás, que o Nelson, no seu livro, refere precisamente essas duas geografias, como estando no centro de problemas muito específicos em matéria de segurança que ele desenvolve.

Mas se eu acrescentar que a outro tipo de investimentos pode também não ser indiferente o facto de Trump estar ou não na Casa Branca, acho que isso também ajuda a perceber aquilo que hoje interroga alguns operadores económicos.

Falei da América Latina, da África, dos Estados Unidos. E na Europa? 70 anos sem guerra tinham adormecido a nossa precaução coletiva. E, agora, com a Rússia no estado em que está, como é que vai ser? E o futuro será com a NATO ou vai ter de ser vivido sem as suas teóricas garantias de segurança? E os surtos de terrorismo? E as tensões migratórias, religiosas, identitárias? E os populismos? E a China? E as suas relações cada vez mais tensas com os EUA? E a Europa, vai de arrasto da sinofobia de Washington?

Está tudo mais indefinido. Pensar a prazo é um imenso salto no escuro. Julgo que todos temos um pouco a sensação de que, no passado, tudo era mais facilmente enquadrável, que havia mais constantes em que nos podíamos apoiar, que as linhas tendenciais de evolução de riscos eram mais rapidamente definíveis. Acho que todos temos a tentação de pensar assim apenas porque o passado já lá vai. Mas se metermos uma mão na nossa memória dificilmente encontraremos um tempo em que, nesse tal "bom" passado, alguma vez se viveu o sentimento de não estar em crise.

Mas é verdade: sentimo-nos, nos dias de hoje, um tanto perdidos e menos capazes de entender as dinâmicas de um mundo onde à debilidade do poder enquadrador dos Estados se soma a perda de alguns padrões comuns, de aceitação mais ou menos implícita, que nos davam algum conforto. 

É uma evidência que a Guerra Fria constituía um terreno de serena previsibilidade. Os riscos eram imensos, existenciais, mas pareciam empatados. As tensões ideológicas desenhavam um mundo a preto e branco, onde era fácil saber onde cada um estava. As fronteiras protegiam as visões nacionais, as "nuances" eram muito relativas. O que saía fora dos carris parecia identificável e controlável. Com o ilusório fim dessa mesma Guerra Fria, até a paz eterna pareceu possível. Por um momento, os riscos pareceram atenuados, contidos, comportados num quadro em que o diálogo alargado aparecia como panaceia. O fim das fronteiras, físicas e virtuais, iriam, na visão mirífica desses novos "amanhãs que cantam", criar um éden de entendimento, nessa nova Sociedade Global que o livro do Nelson analisa.

Só que, depois, foi o que se viu. O livro do Nelson Lourenço tem a imensa virtude de nos explicar, às vezes não o dizendo explicitamente, que esse novo mundo maravilhoso foi, afinal, um "trompe l'oeil". E ao mostrar-nos, com a serenidade "rassurante" do "argot" académico, como as coisas, em lugar de se simplificarem, se tornaram afinal muito mais complexas. Ou "desafiantes", como está na moda dizer, quando se pretende disfarçar os riscos perante os acionistas e melhorar os bónus dos KPI. Mas, essencialmente, a meu ver, as sociedades podem estar a perder o fio à meada, o controlo de algumas dinâmicas, algumas já puxadas e conduzidas por pulsões extremistas.

Permitam-me agora que termine com a ligação de um dos capítulos interessantes do livro à nossa atualidade nacional próxima. É, aviso, uma questão polémica. Falo da polícia.

Nesse capítulo, o Nelson desenvolve o tema da relação dos cidadãos com a polícia. E fala da importância de afirmação da autoridade democrática, bem como da confiança que a instituição policial deve inspirar na sociedade. E explica também que, dentro dessa mesma sociedade, a leitura sobre a bondade da atitude e comportamento das polícias está hoje longe de ser uniforme. Por exemplo, numa sociedade multi-étnica, multicultural e com áreas de forte exclusão, há setores que perdem a confiança na polícia, porque entendem que esta os descrimina e os tem por alvos preferenciais na ação repressiva. É a sociedade que se divide perante a polícia.

Ao olhar o que passa entre nós com o comportamento recente dos elementos das forças policiais, pergunto-me qual irá ser o efeito na perceção de segurança dos nossos cidadãos que as atitudes de muitos elementos das forças policiais podem vir a provocar. Quando os polícias incumprem as leis das manifestações públicas, quando apresentam baixas médicas que parece serem falsas, quando ameaçam com o boicote das eleições, dando frequentemente de si próprios a imagem turbulenta, como a que agora estão a projetar, em que medida isto é ou não uma questão que afeta a segurança coletiva? Quando os sites e grupos de Whatsapp ligados a associações policiais refletem a sua adesão a ideologias extremistas, quando se acumulam sinais de praticas discriminatórias da polícia sobre setores étnicos, qual a confiança que essa mesma polícia pode despertar nos cidadãos? 

Faço parte de uma geração que, com orgulho, assistiu à transição e à mudança de qualidade das polícias, de órgãos repressivos ao serviço da ditadura até se tornarem forças prestigiadas de proteção da vida cívica democrática. Esperemos que não se esteja agora a estragar todo esse percurso positivo.

Por tudo isso, meu caro Nelson, embora sabendo que não vais seguir o meu conselho, eu deixar-te-ia, provocatoriamente, a sugestão de que, num próximo livro, possas vir a tratar o tema "Quando a polícia ameaça a nossa segurança".

Muito obrigado pela vossa atenção.

15 de fevereiro de 2024

"Portugal e o Futuro"

Apresentação do livro "O general que começou o 25 de Abril dois meses antes dos capitães", de João Céu e Silva, no dia 15 de fevereiro de 2024

Começo por agradecer ao João Céu e Silva o convite que me fez para intervir na apresentação deste seu novo livro. Uma palavra de gratidão é também devida a Susana Santos, nossa anfitriã, e a Rui Couceiro, editor do livro.

Decidi colocar por escrito parte do que vou dizer, para ser mais sintético e poupar o vosso tempo.

Devo confessar que achei estranho quando recebi o contacto do João Céu e Silva. Não nos conhecíamos, não sou historiador, nem conheci pessoalmente António de Spínola. A verdade é que eu era oficial miliciano ao tempo do 25 de Abril e que andei envolvido em algumas "guerras" desse tempo. Mas fui um ator secundário, às vezes um mero figurante, mas sempre, assumo, um curioso "voyeur" de tudo aquilo.

Como toda a gente, tinha e tenho uma opinião sobre o que então se passou. Uma opinião que se alterou bastante, não necessariamente com o tempo, mas com os novos factos e revelações de que entretanto fui tendo conhecimento. E ainda hoje - por exemplo, com este livro - confesso que continuo a aprender.

Alguma dessa minha leitura dos acontecimentos deixei-a em textos que fui publicando, ao longo dos anos, no meu blogue. Ao que constatei, o João Céu e Silva leu-me e fez o favor de considerar digna do seu interesse essa minha perspetiva. Fico-lhe grato por isso.

De todo o modo, faço esta intervenção com a consciência de que estou a entrar em terrenos que não são os meus. Nesta sala estão pessoas que trabalharam diretamente com Spínola na Guiné - identifico João Diogo Nunes Barata, José Blanco, Carlos Matos Gomes e José Manuel Barroso - mas igualmente um historiador, como José Pedro Castanheira. Assumo, por isso, a minha talvez irresponsável ousadia em tratar este assunto. Mas vamos então a ela.

Começo por dizer onde estava, onde estávamos muitos de nós, há 50 anos. Para um civil fardado, que era o que eu era por esse tempo de 1973/1974, aquela tropa não era a minha guerra: era uma coisa deles, do regime, da ditadura, que nos era imposta. Mesmo em gente mais moderada ou complacente com o regime, não se via, à época, o menor entusiasmo em torno na guerra colonial. A guerra pode ter sido popular nos seus alvores, logo em 1961, mas já o não era mais. Por essa altura, a aventura colonial só era exaltante para alguns meios nacionalistas radicais.

No máximo, as pessoas assumiam a guerra como uma inevitabilidade, a que tinham de adaptar a sua vida. Mas vamos ser claros: a guerra colonial já não motivava praticamente ninguém. Eu diria mesmo que o patriotismo não passava por ali. Havia uma imensa indiferença face ao discurso gongórico do regime. 

Embora na perspetiva dos militares profissionais as coisas pudessem ter outra perspetiva, havia um outro pormenor: para nós, civis, a guerra colonial não tinha feito salientar grandes vedetas militares. O nome então mais conhecido, aliás, entre os generais, era mesmo Kaúlza de Arriaga, não Spínola. Tinha fama de "ultra" e tinha no seu currículo o facto de ter sido um dos operacionais que tinham desativado o golpe de Botelho Moniz, em abril de 1961. 

Spínola era um nome de que também se falava, mas não tinha minimamente a imagem de ser um democrata. Pelo contrário. Persistia mesmo a ideia de que tinha ido como observador na Divisão Azul, na companhia de fascistas ibéricos que tinham estado ao lado da Wermacht, à espera da queda militar a União Soviética. 

Para muita gente da minha geração política, e em termos muito simples, Spínola era um "fascista" como os outros. O seu perfil físico e coreográfico, aliás, confortava esse preconceito. Spínola parecia uma caricatura de si mesmo: o pingalim, as botas, o monóculo. Mas é verdade que, ao contrário de Kaulza, que projetava uma imagem de combatente encarniçado pelo regime, da Guiné chegavam alguns sinais da relativa heterodoxia de Spínola.

Ele fora mandado para lá ainda por Salazar e fora mantido por Caetano. Ao que constava, vinha a assumir algumas tomadas de posição um pouco ao lado do discurso oficial. Com a emergência do caetanismo, havia rumores de que Spínola chegou a estar próximo da linha da ala liberal, enquanto ela durou. E isso era interessante para quem, como era o meu caso, via com agrado o surgimento de fraturas na muralha política do regime.

Contudo, o discurso de Spínola parecia manter uma ambiguidade que dava para tudo. E, repito, ele não era visto como um democrata. Longe disso, tinha mesmo um perfil de recorte autoritário. Isto para dizer que, para quem andava então pelo Portugal europeu fardado à força, opositor ao regime embora sem atividade muito evidente, como era o meu caso, Spínola não tinha uma réstia de credibilidade acrescida face ao resto da hierarquia militar. 

Sabia-se que, na Guiné, ele tinha desenvolvido uma boa ação social, de captação das populações e das chefias tradicionais, mas via-se isso como algo de puramente tático, como a sua forma pessoal de levar a água ao moinho da aventura colonial, cujo estertor nos parecia cada vez mais evidente. Eu era então oficial de Ação Psicológica da minha unidade e, perante o que nos chegava da Guiné, aquilo parecia um "déjà vu". 

Sabia-se, no entanto, que o pessoal militar que tinha estado na Guiné criara, em muitos casos, uma forte admiração pelo homem, até pela coragem física que o general revelava. Mas, repito, daí a vê-lo como um democrata, suscetível de encarnar uma alternativa decente ao regime, ia uma imensa distância.

Quando Spínola regressou à Europa, o facto de ter sido para ele criado o cargo de vice-CEMGFA tinha sido um óbvio sinal revelador da sua força. O regime faz-lhe algum "rapapé", o que provava que a figura de Spínola se tornara incontornável. Saíra da Guiné com prestígio militar, era mesmo uma espécie de vedeta e tenho a sensação de que muitos se interrogavam já sobre o real papel de Costa Gomes nesse tandem. 

Volto a lembrar que esta era a perspetiva de quem não estava no segredo dos deuses das tricas e entendimentos entre o pessoal militar. De quem sabia vagamente das reivindicações corporativas mas desconhecia onde estava Spínola face a tudo aquilo. 

Quando surgiu o "Portugal e o Futuro", que foi um livro que me recordo de ter lido com algum enfado, devo ter dado comigo a pensar: se este homem, nesta posição, escreve e publica isto, é porque tem força para tal. Quando observei que, com a publicação do livro, ele entrou em conflito com o sistema, concluí que dali podia resultar alguma coisa séria.

Quem viveu essa época sabe que então se observavam, com muita atenção, todas as dissonâncias que pudessem emergir no seio do regime. 

Depois, Spínola e Costa Gomes são demitidos. E dá-se o episódio das Caldas. Recordo, na minha unidade militar, que o modo como os vários oficiais reagiram a esse evento foi visto como um "separar de águas": percebeu-se quem reagiu negativamente ao golpe e quem se "neutralizou" taticamente. 

Simultaneamente, nos contactos entre os oficiais do quadro e os milicianos, sentia-se que se estava a gerar uma aproximação a um momento que parecia cada vez mais iminente.

Mas, devo confessar, na minha perspetiva, que era a de quem estava um tanto distante da realidade da conspiração, as Caldas tinham sido um golpe falhado, inserido no contexto global da revolta que sabíamos estar em curso. Só mais tarde vim a entender a diferença entre as duas coisas.

E chegamos ao dia 25 de Abril, aos seus antecedentes imediatos e aos tempos que lhe sucederam.

Muitos de nós, como disse, acompanhámos todos esses tempos com muita atenção. Tínhamos assistido à chegada do "Portugal e o Futuro", tínhamos, com preconceitos e desconhecimentos à mistura, a tal ideia menos positiva de Spínola, não sendo para nós muito clara a sua relação com a agitação que sentíamos no pessoal do quadro. E posso presumir que, à época, misturássemos as duas coisas.

Apesar de nos julgarmos bem informados, não estávamos: só tínhamos a espuma visível. Mas, apesar de tudo, com todas essas limitações, éramos uns privilegiados. E digo isto porquê? Porque, no 25 de Abril, essa não era a situação do cidadão comum português, que não fazia a mínima ideia de que Spínola tivera de obter luz verde da Pontinha para poder ir apanhar o poder ao Carmo. 

Para o cidadão comum, naquele dia, Spínola foi visto como o "dono" da Revolução. Esse mesmo cidadão tinha uma vaga noção de que Spínola tinha escrito um livro que, no fundo, era contra a continuação da guerra, numa atitude que contrariava a vontade de Caetano, o qual, por essa razão, o tinha demitido. E ali estava agora ele, a sair vitorioso do Carmo, com o poder na mão. 

Horas depois, já pela madrugada, lá surgia ele de novo sentado no centro da Junta de Salvação Nacional, que a RTP nos dava a preto-e-branco. Sem um sorriso, lá estava o mesmo Spínola, mostrando um esgar de autoridade, que só assustou alguns mais atentos, a dizer ao que o novo poder vinha. 

Ninguém sabia do debate que, entretanto, tinha tido lugar na Pontinha, a propósito da linguagem a inserir na proclamação do MFA, nem ninguém fazia ideia de que aquilo que ele dizia era produto de um compromisso. Repito: aos olhos da esmagadora maioria dos portugueses, Spínola era o chefe incontestado da Revolução. Para muita gente, com a edição do seu livro, ele fora o responsável pelo golpe. 

A invisibilidade do MFA, da sua Comissão Coordenadora, que foi deliberada, como sabemos, ajudou muito nessa perceção. Com a preocupação de ter oficiais generais a dar a cara, para "inglês ver", para não dar ares latino-americanos ao golpe militar, os capitães de Abril fizeram o movimento correr esse risco.

Spínola percebeu isso e cavalgou essa mesma perceção enquanto pôde. Desde logo, tentando dividir o MFA, procurando dar força às dimensões militares mais recuadas - parte das quais, valha a verdade, só ficaram de alma e coração com o movimento enquanto ele não se afastou de Spínola. 

Depois, quando viu que a relação de forças dentro da tropa começava a não o favorecer, Spínola, aproveitando a tal perceção pública de que "o 25 de Abril era ele", optou pelo circuito dos discursos catastróficos, com um pouco subliminar anti-comunismo como linha doutrinária básica. Mas já era tarde e o 28 de setembro acabou por colocar um ponto final nessa estratégia.

É na análise de todo este este turbilhão, da Guiné até ao afastamento institucional de Spínola, que o livro de João Céu e Silva revela fortes méritos. 

Desde logo, através de vários testemunhos, traça-nos um retrato da figura de Spínola, do seu perfil militar mas, igualmente, das suas inegáveis ambições no terreno político. A discrição que dele vai sendo feita ajuda-nos a perceber melhor que, por detrás da imagem de um general poderoso e carismático, havia um político inábil, precipitado, algo naïf. Spínola nunca terá percebido que a sua aura militar estava muito longe de o poder conduzir a uma carreira política estável. Spínola era um autoritário. Nunca seria um líder democrático. Não é De Gaulle quem quer...

Um segundo retrato que o livro nos traz é o do spinolismo, desse deslumbre de grupo em torno de um militar corajoso e afirmativo, que arrastou atrás de si muita gente que com ele trabalhou. Mas que também deixou outra gente de fora, de que Vasco Lourenço é talvez a cara mais emblemática. O spinolismo pescou em áreas do Movimento dos Capitães, mas não consegue influenciá-lo de forma marcante. Foi o spinolismo que esteve no centro do golpe das Caldas, mas, até por isso, pela neutralização temporária do núcleo do spinolismo que o falhanço desse movimento representou, ele foi praticamente irrelevante para a execução do 25 de Abril. 

Aliás, a tentativa de recuperação do 25 de Abril, levada a cabo por Spínola e pelos spinolistas, na Pontinha, na noite de 25 de Abril, falhou por isso mesmo. São dois mundos que se tocam, mas que, a partir dessa data, estarão em crescente divergência.

Este trabalho permite-nos também perceber que o objetivo de Spínola ao escrever o livro, para além de se colocar num pedestal, como um militar que queria dar voz aos seus camaradas cansados de dar tempo ao poder político para resolver o problema africano, não era fazer uma revolta: o seu objetivo era fazer evoluir o regime, numa perspetiva reformista. Democrática? Logo se veria. Para o "Portugal e o Futuro" essa não parecia ser a preocupação central. 

O João Céu e Silva fala bastante da ocultação do "Portugal e o Futuro", no pós 25 de Abril. Será deliberado ou será pela sua objetiva irrelevância da sua mensagem, como parece pensar Medeiros Ferreira? 

A importância do livro é o gesto conseguido com a sua publicação ou o seu conteúdo? As suas soluções ainda teriam um mínimo de exequibilidade no tempo internacional de então? Ao publicá-lo, Spínola pensaria que estava a dar uma oportunidade a Marcelo Caetano para, com um apoio militar, tentar uma hipótese de evolução do regime? 

Eu inclino-me para algo que Raul Rego, ao que recordo, disse: "O que Vossa Excelência disse não é novo. O que é novo é isso ter sido dito por Vossa Excelência".

Ninguém mais falou do "Portugal e o Futuro", depois do 25 de Abril? Claro que não. O programa do MFA, mesmo com todos os cuidados semânticos que Spínola lhe introduziu na Pontinha, era a-noite-e-o-dia face ao "Portugal e o Futuro". Por isso, porque a sua mensagem como manifesto para uma solução política está inapelavelmente datada, o livro morre nesse dia.

Sem querer entrar demasiado pela História contra-factual, gostava de terminar especulando um pouco. 

Imaginemos que, por uma qualquer razão, o livro de Spínola não tinha sido publicado até ao momento em que se dá a revolta militar dos capitães. 

E, que, sem livro, portanto, sem a demissão dos dois chefes militares, sem ter havido golpe das Caldas, sem a cena da "brigada do reumático" e - muito importante ! - sem o destaque relativo de Spínola face a Costa Gomes (que o livro proporcionou), o movimento fazia o seu golpe.

Um parêntesis para um ponto muito importante que João Céu e Silva não deixa de destacar: sem o "Portugal e o Futuro" publicado, haveria um setor significativo das Forças Armadas que talvez se tivesse sentido menos motivado para aderir ao Movimento dos Capitães. É que o livro de Spínola, independentemente do seu conteúdo não muito radical sobre a política colonial, acabou legitimar interrogações sobre o fim da guerra. E muita gente, nas Forças Armadas, só aderiu ao golpe porque estava motivada pelo dissídio de Spínola.

Mas imaginemos que, sem o livro, nesse dia do golpe, Costa Gomes era CEMGFA e Spínola vice-CEMGFA, isto é, eram eles a cúpula do poder militar na data do golpe. Como reagiria essa hierarquia militar face ao golpe? 

Sempre se poderia dizer que, de toda a forma, o capitães teriam ido buscar esses dois generais. Mas, nesse caso, sem o "Portugal e o Futuro" a destacar Spínola face a Costa Gomes, sem a cena da entrega do poder no Carmo, seria Spínola a personalidade escolhida para titular o novo regime?

Posso estar enganado mas, sem o "Portugal e o Futuro", estou em crer que Costa Gomes teria sido, muito mais facilmente, a escolha do MFA para chefiar a Junta de Salvação Nacional, como era patente.

Sem o "Portugal e o Futuro", Spínola teria sido Presidente da Junta de Salvação Nacional e, depois, Presidente da República? Acho que não.

Mas a história não se faz de ses, pelo que tudo acabou por acontecer como aconteceu. E, para nos ajudar a compreender o que aconteceu, este livro ajuda-nos muito.