18 de dezembro de 2025

A Luisinha Carneiro vive em Kharkiv

(Texto lido na apresentação do anuário de relações internacionais "Janus", relativo a 2024/2025, em 18 de dezembro de 2025)

Vai para 13 anos, na FNAC do Chiado, coube-me fazer apresentação de uma edição da Janus. Tinha acabado de chegar da embaixada em Paris, dirigia então o Centro Norte-Sul, do Conselho da Europa, e disse naturalmente que sim à pessoa que me fez o convite. Essa pessoa era o Luís Moita. 

Há gente de quem, com o tempo, sentimos cada vez mais saudades. O Luís é uma delas. Há dias, quando troquei mensagens com alguém que acabou de assumir uma determinada função, essa pessoa respondeu-me: "Tenho-me lembrado muito do nosso Luís Moita. Faz-me falta o seu conselho, que seria sábio". 

A Janus, para mim, continua a ser o Luís. Recordo aqueles telefonemas, amigos mas pressionantes, ao fim da tarde: "Conto com o teu artigo! Quero-te na Janus deste ano". Foi graças ao Luís que tenho um bom lote de textos publicados nas Janus. De alguns orgulho-me, de outros fico com a esperança de que os não leiam. 

Disse também que sim ao convite que o Luís Tomé e o Fernando Jorge Cardoso me fizeram para estar hoje aqui. Fiz isso por duas fortes razões. Desde logo, como tributo à memória do Luís Moita, mas também pelo facto de ser para mim um orgulho - e digo isto com a maior sinceridade - estar na função de presidente do Conselho Diretivo do "Clube de Lisboa / Global Challenges", neste ano em que, pela primeira vez, o Clube e o Observare se juntam para editar a Janus. 

Quero assim saudar e congratular-me por esta "joint venture" e quero também dizer que não podiam ter encontrado melhor editora do que a Patrícia Magalhães Ferreira. Sei do que falo. Parabéns a todos. 

Pediram-me para abordar o tema que é um chapéu temático da Janus deste ano: as guerras mediáticas e as guerras esquecidas. 

A questão, vale a pena dizê-lo, é uma triste banalidade: há guerras a que somos muito sensíveis, outras há de que ninguém fala. Daqui se pode concluir que há países tão infelizes que até as suas tragédias, por maiores que elas sejam, convocam menos comoção do que a que é dada a outros países, mais "felizes" pela atenção conferida ao seu sofrimento. 

Este tema - esta assimetria na atenção - está mais do que estudado. Tem sido abordado na sua perspetiva mediática - onde é que estão as televisões, os repórteres de guerra, o que abre os jornais televisivos e o que entusiasma os colunistas? E, naturalmente, o agravamento dessa desigualdade, na atenção e no "escândalo", tem vindo a ser cobrado, cada vez mais, aos agentes políticos. 

Resta saber se esta exposição da hipocrisia tem alguma consequência ou se, muito simplesmente, já há um efeito de cansaço e de normalização das atitudes, por muito chocantes que elas tenham começado por ser. Diga-se o que se disser, uma coisa é clara: no plano mediático e no plano político, com um a influenciar o outro, há uma hierarquização das guerras, dos conflitos, até dos mortos. Uma das razões é, claramente, de natureza geográfica, da nossa proximidade face ao fenómeno. 

É a síndrome Luisinha Carneiro, que o Eça de Queiroz já identificou. 

Para quem não conhecer ou não se lembrar, vou ler - peço apenas cinco minutos do vosso tempo - um texto notável dos Bilhetes de Paris, em que Eça descrevia o ambiente num salão de província em que alguém lia, num jornal, as grandes tragédias que então assolavam o mundo: 

Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração! 

Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. 

Em torno da mesa, outras senhoras costuravam. 

Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. 

Era uma dessas semanas também em que pela violência da natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a terra. 

Ela lia as catástrofes, lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. 

«Na ilha de Java, um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas …». As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa; e ninguém comentou, sequer se interessou, pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! 

Depois, mais perto, na Hungria, «um rio transbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!». A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada pelo oiro da luz. 

Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas… Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. 

E ela mesma então teve um oh de dolorida surpresa. No sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilado causara três mortes, onze ferimentos…». Uma curta emoção, já sentida, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança. 

A leitora, tão cheia da graça, virou a página do jornal doloroso e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno… E, de repente, solta um grito e leva as mãos à cabeça: 

– Santo Deus!... 

Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando: 

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela-Vista… Esta manhã! Desmanchou um pé! 

Então a sala inteira se alvoroçou num tumulto de surpresa e desgosto. 

As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltronas; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela-Vista, buscar notícias por que ansiávamos. 

Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia. 

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. 

Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela-Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume. 

A síndrome Luisinha Carneiro é o que aqui nos une, nesta ocasião, que justifica a minha intervenção. Quando, daqui a horas, o nosso governo nos vier reportar as incógnitas que vão decorrer, para o dia seguinte da comunidade portuguesa, da ação militar americana que se prepara contra a Venezuela, vamos assistir à síndrome Luisinha Carneiro em ação. 

É o que nos toca, o que nos mobiliza, são os nossos. Alguns dirão que não há nada mais natural: preocuparmo-nos com o que nos está próximo. O problema não está aí: é perfeitamente óbvio que possamos dar prioridade às questões que afetam a nossa diáspora, seja na Venezuela ou na Guiné Bissau. 

A questão é, contudo, outra: a nossa política externa não se esgota nestas minudências luso-portuguesas, que convocam um palácio sempre cheio de Necessidades. A nossa política externa passa hoje, nas grandes questões, para muitas das quais não somos chamados, ou somos chamados apenas para fazer número, essencialmente por Bruxelas. E é para aí, para o diferente grau de preocupação visível na cara dos líderes europeus, quando falam da Ucrânia ou quando falam das chacinas em Gaza ou do descaso pelos direitos dos palestinos na Cisjordânia, que eu quero chamar a atenção. 

É a síndrome Luisinha Carneiro? Kharkiv é já ali, Khan Younis é mais longe e há por lá menos jornalistas? Ou os ucranianos são loiros e de olhos azuis "como nós", às tantas são mesmo cristãos "como nós", e os palestinos não escapam à islamofobia com que as extremas-direitas europeias, cada vez com mais êxito, incendeiam os discursos de certo populismo? 

Há uma priorização dos riscos, de que decorrem opções geopolíticas. Mas há - vamos chamar os bois pelos nomes - "double standards". Um morto em Kiev comove mais do que meia dúzia de adolescentes fuzilados por snipers do Exército israelita. É muito evidente que o empenhamento em levar à barra do TPI, na Haia, Vladimir Putin é muito maior do que a determinação idêntica de ali conduzir Netanyahu. 

E, no entanto, militares à parte, em pouco mais de dois anos, terão morrido 70 mil civis em Gaza, para uma população de menos de 3 milhões, e, em quase quatro anos, morreram 15 mil civis na Ucrânia, para uma população de 40 milhões. 

Isolo estes dois casos porque é preciso dizer bem alto que eles contribuíram para o deperecimento moral de uma entidade como a União Europeia, que nos tínhamos habituado a olhar como um referente multilateral de justiça e de respeito pelos Direitos Humanos. 

Longe vão os tempos em que a Europa unida se dava ao luxo, como "soft power" moral que se arrogava ser, de lançar juízos equinânimes sobre tudo o que se afastava dos padrões rígidos afinados em Bruxelas. Eu ainda sou do tempo da DG VIII e do condicionamento rigoroso da ajuda por motivos políticos! Onde isso vai! 

Mas o mundo não se esgota entre a Ucrânia e a Palestina. Muitos outros conflitos, bem mais letais em termos absolutos, permanecem hoje à margem da nossa atenção e à margem da União Europeia, por onde se escoa boa parte da nossa vontade diplomática. E da nossa coerência, convém lembrar. 

No Sudão, segundo a ONU, vive-se, em 2025, a pior crise humanitária do mundo: mais de 150 mil mortos, 14 milhões de deslocados internos e risco de fome generalizada, afetando 21 milhões de pessoas. A cobertura mediática ocidental é mínima, se comparada à Ucrânia. E que dizer da escassíssima vocalidade, para estes casos, do Serviço Europeu de Ação Externa? 

No Iémen, há 18 milhões de pessoas a necessitar de assistência. 

No Sahel (Mali, Burkina Faso, Niger), as insurgências jihadistas e os golpes de Estado causam milhares de mortes anuais, com violência a espalhar-se para as costas ocidentais da África. 

Em Myanmar, a guerra civil depois do golpe de 2021, afeta 20 milhões. 

Estes conflitos são “esquecidos” não por falta de gravidade, mas porque não mobilizam audiências ocidentais. Razões? Distância geográfica, complexidade étnica e ausência de alinhamento direto com grandes potências. 

Aí está a síndrome Luisinha Carneiro, em todo o seu esplendor. 

Que fazer?, como perguntava um cavalheiro cuja bibliografia é hoje escassamente popular? Simples: cada um deve fazer aquilo que lhe compete ou que julga dever competir-lhe. 

A nós, Observare e Clube de Lisboa, de acordo com aquilo que temos à nossa mão, compete-nos estudar, divulgar, mobilizar e manter atentas as consciências. Sabemos que, também nós, nunca conseguiremos escapar, por completo, à síndrome Luisinha Carneiro. Mas temos a obrigação de teimar em mostrar que há mais mundo para além daquele que mais facilmente emociona o nosso egoísmo estratégico. 

Era também isto que o Luís Moita nos ensinava: a não desviar o olhar. 

 

22 de junho de 2025

Bibliografia pessoal atualizada (dezembro 2025)


     Livros próprios (8)

* "Diplomacia Europeia - Instituições, Alargamento e o Futuro da União'', prefácio de Mário Soares, ed. Dom Quixote, Lisboa, 2002

* "Uma Segunda Opinião - Notas de Política Externa e Diplomacia'', prefácio de Jorge Sampaio, ed. Dom Quixote, Lisboa, 2007

* ''As Vésperas e a Alvorada de Abril'', ed. Thesaurus, Brasília, 2007

* ''Tanto Mar? - Portugal, o Brasil e a Europa", ed. Thesaurus, Brasília, 2008

* ''Apontamentos", ed. Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2009

* ''Saudades Nossas'', ed. do autor, Vila Real, 2016

*''A Cidade Imaginária", prefácio de Manuel Cardona, ed. Biblioteca Municipal, Vila Real, 2021

*''Antes que me Esqueça - a diplomacia e a vida", prefácio de Jaime Gama, ed. Dom Quixote, Lisboa, 2023 


     Livro em co-autoria (1)

* ''O Caso República'', com António Pinto Rodrigues, ed. autores, Lisboa, 1975 


    Capítulos em obras coletivas (60)

* ''Portugal e a Conferência Intergovernamental para a Revisão do Tratado da União Europeia,'' ed. MNE, Lisboa, 1996 

"Testemunho nos 90 anos do ISCSP", ed. ISCSP, Lisboa, 1996

* ''Os desafios do Alargamento", in "O Desafio Europeu: Passado, Presente, Futuro,'' coord. João Carlos Espada, ed. Principia, Cascais, 1998 
 
* "Regulamentação e Supervisão", in "Euro - a Nova Moeda no Mundo,'' ed. Grupo Mundial-Confiança, Lisboa, 1998 

*"O que é a Agenda 2000", in "A Agenda 2000 da UE: as suas implicações para Portugal", ed. Conselho Económico e Social, Lisboa, 1998  

"O Projeto Europeu: um Olhar de Portugal", in "O Desafio Europeu - Passado, Presente e Futuro", ed Principia, Cascais, 1998

* ''Desafios de Portugal na Agenda da União Europeia", in "A Diplomacia Portuguesa face ao Sec. XXI'', ed. Instituto Diplomático do MNE, Lisboa, 1999 

* ''Internacionalização - Uma Opção Estratégica para a Economia e as Empresas Portuguesas'', ed. FIEP, Lisboa, 1999 

* ''A Nova Face da Europa,'' in Brasil-Europa, Lisboa/Rio de Janeiro, 1999 

* ''As negociações da Conferência Intergovernamental e o equilíbrio de poderes", in "A Conferência Intergovernamental'', ed. Conselho Económico e Social, Lisboa, 2000 

* ''Outlining Perspectives for Regional Co-Operation", in "The Northern Dimension after Helsinky", ed. Ministry of Foreign Affairs of Finland, Helsínquia, 2000 

* ''La Politique Européenne du Portugal" in "Rencontres Européennes de Pologne", ed. Fondation Robert Schuman, Varsóvia, 2000 

* "An European Vocation" in ''Portugal - A European Story'', coord. A. de Vasconcelos, ed. Principia, s. João do Estoril, 2000 

* ''Presidência Portuguesa da União Europeia e da União da Europa Ocidental em 2000", in "A Diplomacia portuguesa: perspectivas e prioridades,'' ed. Instituto Diplomático do MNE, Lisboa, 2000 

* '''The Portuguese Presidency and the Intergovernmental Conference", in "Rethinking the European Union - IGC 2000 and Beyond,'' ed. European Institute of Public Administration, Maastricht, 2000 

* "The Portuguese EU Presidency in 2000'', ed. Ministry of Foreign Affairs, Lisbon, 2001 

* ''The Interests of Small and Large Member States in the context of Institutional Reform", in "Europe's Constitution - a framework for the future of the Union,'' ed. Herbert Quandt Foundation, Bad Homburg v.d. Höhe, 2001 

* ''A imagem de Portugal na União Europeia", in "A Imagem de Portugal", ed. Instituto Diplomático do MNE, Lisboa, 2001 

* ''The Euro and the World,'' ed. Almedina, Coimbra, 2002 

* ''International Terrorism: the view from Portugal'' ed. K.R. Gupta - Atlantic, ''New Delhi, 2002'' 

* ''União Europeia nas Nações Unidas", in "A União Europeia: os caminhos depois de Nice,'' ed. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2002 

* ''Trás-os-Montes e Alto Douro - Conversas sobre o Passado e o Futuro'', org. Pedro Garcias, ed. Público e AMTMAD, Lisboa/Bragança, 2002 

* ''Applicability of OSCE CSBMs in Northeast Asia Revisited,'' ed. Institute of Foreign Affairs and National Security, Seul, 2003 

* ''The Search for Conflict Prevention in the New Security Circumstances - European Security Mechanisms and Security in Asia'', ed. OSCE, Viena, 2004 

* ''The Search for Effective Conflict Prevention'' Ministry of Foreign Affairs of Japan, Tóquio, 2004 

* ''A Europa nas Nações Unidas", in "Os Portugueses nas Nações Unidas,'' coord. C. M. Branco e F. P Garcia'','' ed. Prefácio, Lisboa, 2005. 

* ''Uma Constituição Indispensável?", in Portugal no Futuro da Europa,'' org. Paula M. Pinheiro, ed. Gabinetes do Parlamento Europeu e da Comissão Europeia, Lisboa, 2006 

* "Os Tratados de Amesterdão e de Nice", in ''20 Anos de Integração Europeia'' (1986-2006), coord. N. A. Leitão, ed. Cosmos, Lisboa, 2007 

* ''Crónica dos Noventa", in "Procópio,'' ed. Bar Procópio, Lisboa, 2007 

* ''Testemunho", in "A Revolução Europeia por Francisco Lucas Pires,'' ed. Gabinete do Parlamento Europeu, Lisboa, 2008 

* ''Pensar Portugal no Mundo'', ed. Comissão Parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas da Assembleia da República, Lisboa, 2009 

* ''Respostas", in "25 Anos na União Europeia'', coord. E.P. Ferreira, ed. Almedina, Coimbra, 2011 

* "A Europa e a política externa da Administração Obama", in "Potências Emergentes e Relações Transatlânticas", coor. Mário Mesquita e Paula Vicente, ed. FLAD / Tinta da China, 2012

* ''Portugal numa Europa em mudança", in "Portugal, a Europa e a Crise Económica e Financeira Internacional'', coord. J. R. Silva, com A. Mendonça e A. Romão, ed. Almedina, Coimbra, 2012 

* ''Segurança e Defesa Nacional - Um Conceito Estratégico'', coord. L. Fontoura, ed. Almedina, Coimbra, 2013 

* ''Diplomacia Económica", in "Portugal no Mundo'', ed. Fundação AEP e Fundação de Serralves, Porto, 2014 

* "O lugar de Portugal", in ''Pontes por Construir - Portugal e Alemanha'', coord. L. Coelho, ed. Bairro dos Livros, Porto, 2015 

* ''A Encruzilhada Europeia", in "A Globalização do Desenvolvimento,'' ed. Clube de Lisboa e Instituto Marquês de Valle Flôr'','' Lisboa, 2017 

* ''Diplomacia - os próximos 100 anos", in "Olhar o Mundo'', coord. A. Mateus, ed. Marcador, Lisboa, 2017 

* ''Os Interesses Permanentes dos Portugueses'', coord. L. V. de Oliveira, ed. Associação Círculo Dr. José de Figueiredo, Porto, 2017 

* ''O Tempo e o Medo", in "Crónicas da Visão (1993-2018)'', ed. revista Visão, Lisboa, 2018 

* ''Estratégia de Segurança Nacional - Portugal Horizonte 2030'', coord. N. Lourenço e A. Costa, ed. Almedina, Coimbra, 2018 

* ''Portugal na Nova Balança da Europa", in "Conferências do Chiado,'' 2º ciclo, ed. CidSenior, Lisboa, 2018 

* "Embaixadores 'políticos' e diplomatas em governos portugueses", in "Estudo da Estrutura Diplomática Portuguesa", coord. Luís Moita, Luís Valença Pinto e Paula Pereira, ed. Observare, Lisboa, 2019

* "A Segunda Presidência portuguesa. A Agenda de Lisboa", in ''As Décadas da Europa'', coord. J.R. Lã, A. Cunha e P. S. Nunes, ed. Book Builders, Lisboa, 2019 

* ''A Imagem de Portugal'', coord. L. V. Oliveira, ed. Associação Círculo Dr. José de Figueiredo, Porto, 2020 

* "Saudades do Luís", in "Homenagem a Luís dos Santos Ferro", ed. Grémio Literário, Lisboa, 2020

* ''A China, os EUA e nós", in "Conversas Globais'', coord. P. Pinto, ed. Bertrand, Lisboa, 2020 

* "Abril no meio da vida", in "Antologia - o 25 de Abril de 1974. Testemunhos, coord. C. Almada Contreiras e F. Mão de Ferro, ed. Colibri, Lisboa, 2020

* ''A Europa no limiar do século XXI: a segunda Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia: 2000", in "Cova da Moura - A Casa dos Assuntos Europeus'', ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2021

* ''Um Homem solidário", in "In Memoriam de Otílio de Figueiredo'', coord. A.M. Pires Cabral e Elísio Neves, ed. Grémio Literário, Vila Real, 2021 

* ''Património Mundial - 20 anos depois. História, Cultura e Património do Douro'', org. L. V. de Oliveira, ed. Amigos de Ventozelo, Régua, 2022 

* ''Soberania e Consciência Nacional", in "A Diplomacia e a Independência de Portugal,'' coord. J. R. Lã, A .L. Faria e A. Cunha, ed. Book Builders, Lisboa, 2022 

* ''... e a Europa aqui tão perto", in "Europeus - Portugal, a Europa e o Mundo,'' coord. F. Rollo e F. Seixas da Costa, ed. Assembleia da República, Lisboa, 2023 

* ''Memória sobre a Segunda Presidência", in "Portugal e as Presidências do Conselho da União Europeia,'' coord. Reinaldo S. Hermenegildo, ed. Fronteira do Caos, Porto, 2023. 

* ''Uma visão europeia", in Segurança - da Europa ao Indo-Pacífico'', ed. Clube de Lisboa / Global Challenges, Lisboa, 2024. 

* "Conversa entre Joões", in "A Vida é um Rebuçado para Chupar até ao Fim - João Soares, 75 anos", ed. Perspectivas & Realidades, Lisboa, 2024

* "Portugal, seis meses na Presidência da União Europeia", in "E se falássemos da Europa?", coord. Margarida Marques, ed. Tinta da China, Lisboa, 2025

* ''Assim estamos", in "O que faz falta - 50 anos de Arquitetura Portuguesa em Democracia'', org. Jorge Figueira e Ana Neiva, ed. Casa da Arquitectura, Matosinhos, 2025. 

* ''Uma Europa sem otimismo", in "75 Anos da Declaração Schuman - Que Futuro para a Europa?,'' coord. Ana Catarina Mendes, ed. Uma Parceria, Lisboa, 2025 



Capítulo em obra coletiva em co-autoria (1)

* ''Portugal", in "Europe’s Coherence Gap in External Crisis and Conflict Management'', com Patrícia Magalhães Ferreira, ed. Bertelsmann Stiftung, Guetersloh, 2020 
   


Textos em publicações académicas, técnicas ou profissionais (*) (50)


* ''Britain and the Opposition to the 'New State','' in "Portuguese Studies", Vol. 10, ed. King's College, Londres,1994

* "Portugal e a Conferência Intergovernamental para a revisão do Tratado da União Europeia", in "Política Internacional", nº 12, Lisboa, 1996 

* ''Portugal and the New Europe'', in CFSP Forum, nº 1/97, ed. Institute für Europäische Politik, Bona, 1997 

* ''UEM - Um projeto político-económico numa Europa solidária", dossiê "União Económica e Monetária,'' "Europa - Novas Fronteiras", nº 1, ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, 1997

* ''Tratado de Amesterdão - História de uma negociação'', in "Política Internacional", nºs 15/16, Lisboa, 1997

* "Portugal e a nova agenda europeia", in "O Economista", nº 19, Lisboa, 1997  

* Creating a flexible approach'', in "The Parliamentarian Monitor", Londres, 1997 

* ''Conferência intergovernamental. A perspectiva portuguesa da negociação do Tratado de Amesterdão", dossiê "Da Conferência Intergovernamental ao Tratado de Amesterdão'', in "Europa - Novas Fronteiras, ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, 1997

* ''Direitos Cívicos e Sociais e o Tratado da União Europeia'', in "Desenvolvimento", nº 8, ed. Instituto de Estudos para o Desenvolvimento, Lisboa, 1997

* ''O Tratado de Amesterdão e a segurança comum europeia", dossiê "Política Externa e de Segurança Comum,'' in Europa - novas fronteiras", nº 3, ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, 1998

*"Reasons for sharing the Enlargement burden", in "European Voice", Bruxelas, 1998

''O Alargamento da União Europeia'', in "Anuário", ed. Ordem dos Economistas, Lisboa, 1998 

* ''Para uma Cidadania de novo tipo", dossiê "Cidadania Europeia,'' in "Europa - Novas Fronteiras", nº 4, ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, 1998

* "A reforma das instituições comunitárias", in "Política Internacional", nº 17, Lisboa, 1998  

* ''Portugal e o Desafio Europeu,'' in "Nação e Defesa", nº 85, ed. Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, 1998

*"A Europa e a política externa portuguesa", in "Política Internacional", nº 20, Lisboa, 1999  

* ''O Mercado Interno e a Harmonização Legislativa'', in Anuário, Ordem dos Economistas Portugueses, Lisboa, 1999

* "A Esquerda e a Nova Europa", in "Portugal Socialista", nº 219, ed. Partido Socialista, Lisboa, 1999  

* ''Vésperas de Abril,'' in "Camões", Instituto Camões, Lisboa, 1999

* "Presidência da União Europeia", in "Economia Pura", nº 9, Lisboa, 1999  

* "Uma reforma indispensável?", dossiê "Reforma Institucional", in "Europa - Novas Fronteiras", ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, 1999

* ''Europa - o fim da História?'', in "Política Internacional", nº 22, Lisboa, 2000 

* "Europa 2000 - a Presidência Portuguesa'', in "ELO - Cooperação e Desenvolvimento", nº 32, ed. Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Económico e Cooperação,  Lisboa 2000 

* ''Perspectivas de evolución del proyeto de integración europea,'' in "Diplomacia", nº 84, Academia Diplomática de Chile, Santiago de Chile, 2000 

* "Presidência Portuguesa da União Europeia: um balanço", in Anuário, ed. Ordem dos Economistas Portugueses, Lisboa, 2000

"A Política Externa Portuguesa e a Europa", in "Lusíada", nº 1, ed. Universidade Lusída, Porto, 2000

* ''O potencial da Europa média'', in "O Mundo em Português", nº 16, ed. Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Lisboa, 2001

* ''Portugal e o Tratado de Nice - notas sobre a estratégia negocial portuguesa'', in "Negócios Estrangeiros", nº 1, ed. MNE, Lisboa, 2001  

"O Fim da História?", in "Política Externa", nº 3, S. Paulo, 2001/2002

* ''Da Democracia na Europa'', in "Ideias à Esquerda", Lisboa, 2003

* "Desafios ao Multilateralismo", in "Janus - Anuário de Relações Exteriores", ed. Universidade Autónoma de Lisboa / jornal Público, Lisboa, 2004

* ''A Europa e o "amigo americano"'', in "Egoísta", nº 16, ed. Grupo Estoril, Estoril, 2004

* ''O Alargamento e a Política Exterior Europeia", dossiê "A PESC e o alargamento da União Europeia'', in "Europa - Novas Fronteiras", nº15, ed. Centro Jacques Delors, Lisboa, 2004

* ''OSCE - retrato institucional e funcional'', in "Negócios Estrangeiros", nº 7, ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2004

* ''As novas fronteiras da Rússia'', in "O Mundo em Português", ed. Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais, Lisboa, 2004

* ''Central Asia - Not always a Silk Road to Democracy'', in "OSCE Magazine", Viena, 2004

* ''Portugal e o Tratado Constitucional Europeu'', in "Relações Internacionais", nº 2, ed. IPRI, Lisboa, 2004

* ''As Novas Ameaças à Segurança", in "Revista Militar", Lisboa, 2005

* "Portugal e a Política Externa Brasileira", in "Política Internacional", nº 29, Lisboa, 2005

* "Portugal na PESC: Presente e Futuro", dossiê "A Nova Diplomacia'', in "Janus - Anuário de Relações Exteriores", ed. Universidade Autónoma de Lisboa / jornal Público, Lisboa, 2006 

*"The role of OSCE in conflict prevention", in "Bulletin Peace Studies Group", Coimbra, 2007

* "Um Tratado para outra Europa", in "Política Externa", nº 16, S. Paulo, 2008

* ''Europa: o dilema institucional", in "Janus", nº 15, dossiê "As Incertezas da Europa'', ed. Universidade Autónoma de Lisboa / Observare - Observatório de Relações Exteriores, Lisboa, 2013

* "A Europa é possível?", in "XXI - Ter Opinião", ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2014

* "Um retrato dos Açores", in "Relações Internacionais", nº 44, ed. IPRI, Lisboa, 2014

* "Brasil: uma surpresa anunciada", in "Janus - Anuário de Relações Exteriores", nº 17, dossiê "Integração regional e multilateralismo", ed. Universidade Autónoma de Lisboa / Observare - Observatório de Relações Exteriores, Lisboa, 2015/2016

* "A Europa infiel", in "Egoísta", nº 57, Grupo Estoril, Estoril, 2016

* "Schengen e as ilusões europeias", in "XXI Ter Opinião", nº 6, ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa, 2016

* "Refletir na desordem", in "Prémio", Lisboa, 2021

* ''Diplomatas e Diplomacia na obra de Eça de Queirós,'' in Colóquio Letras, Ed. Fund. Calouste Gulbenkian, 2022

(*) Não inclui textos publicados em diários, semanários ou mensários.


Textos em outras publicações (3) (*)

* ''Em Lisboa, vá pela sombra", in "Bica", nº 0, Lisboa, 2016

* ''Em Lisboa, pare, escute e olhe o ruido", in "Bica", nº 1, 2016

* "Sete maravilhas", in "Intelligent Life", ed. The Economist / Expresso, Lisboa, 2011

(*) Não inclui textos publicados em diários, semanários ou mensários.


Prefácios (17)


* "Portugal na União Europeia - Décimo Ano", ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros", Lisboa, 1996

* "Acordo de Schengen - Presidência Portuguesa", ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 1997

* "Acordo de Schengen - Textos fundamentais", ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 1998

* "Elucidário do Tratado de Amesterdão", ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2000

* "Guia para o Exercício da Presidência Portuguesa", ed. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Lisboa, 2000

* "Em Tempos de Inocência - Um Diário da Guiné-Bissau", de António Pinto da França, ed. Prefácio, Lisboa, 2006

* "Os Mistérios do Abade de Priscos e outras 80 Histórias Deliciosas da Gastronomia Portuguesa", de Fortunato da Câmara, ed. Esfera dos Livros, Lisboa, 2013

* "Joaquim Pinto - o barbeiro do poder", de Paulo António Monteiro, ed. A.23, Lisboa, 2018

* "A Guerra nos Balcãs - Jihadismo, Geopolítica e Desinformação", de Carlos Branco, ed. Colibri, Lisboa, 2016

* "A Falar de Viana", ed. Câmara Municipal de Viana do Castelo, Viana do Castelo, 2016

* "Delito de Opinião, desde 2009 - Uma antologia", vários autores, ed. BookBuilders, Lisboa, 2018

* "Crónicas da Minhas Teclas", de Antunes Ferreira, ed. Prelo, 2014

* "Europa", de Adolfo Casais Monteiro, ed. Nova Renascença, Porto, 2000

* "Portugal - A European Story'', coord. A. de Vasconcelos, ed. Principia, Cascais, 2000

* "Uma Década Kafkiana", de Defensor Moura, ed. Autor, Viana do Castelo, 2024

* "Diplomacia de Defesa", de Maria do Rosário Penedos, ed. Chiado, Lisboa, 2017

* "Tentação da Prosa", de Luís Filipe Castro Mendes, ed. Exclamação, Porto, 2024










13 de junho de 2025

Uma Europa sem otimismo

Contribuição para o livro "75 Anos da Declaração Schuman - Que Futuro para a Europa", organizado por Ana Catarina Mendes

Nunca tirei a limpo se não era apenas um mito urbano, mas lembro-me de ouvir dizer, ainda no tempo da ditadura, que era uma temerária ousadia trazer afixado nas traseiras dos automóveis um autocolante azul, comprado para além dos Pirinéus, com estrelas amarelas e os dizeres "Europa Unida", creio que em francês. 

Essa Europa, com liberdades e partidos que organizavam democraticamente as suas sociedades, para onde então muitos iam "a salto" para melhorar a vida ou fugir à guerra, contrastava com a matriz autoritária que prevalecia entre nós e no nosso único vizinho terrestre, que dela nos separava. 

A Europa não éramos nós; era então, para nós, uma pátria política alheia e longínqua. Não partilhando eu, à época, o sonho europeu como ideal social e humanista, tenho apenas a ideia de que as tais estrelas no autocolante azul me eram vagamente simpáticas, quanto mais não fosse pela virtualidade de provocarem o desagrado da ordem entre nós estabelecida e que eu cedo aprendera a contestar. 

Mais tarde, já por ocasião da minha maioridade cívica, eu alimentava uma leitura do processo político europeu que combinava um atávico soberanismo com uma forte desconfiança no processo integracionista do Mercado Comum. O marxismo rudimentar que, no final da adolescência, eu usava como receita interpretativa do mundo, lia o projeto europeu como uma espécie de perverso modelo capitalista transnacional, tutelado pelos americanos, que se opunha aos "amanhãs" que eu achava que deviam cantar de uma outra maneira. A verdade é que, por esse tempo, tal como no poema de Régio, eu não sabia bem por onde ia, apenas sabia que não queria ir por ali. 

Talvez por isso, a "Europa connosco", surgida pouco depois de Abril, pela mão dos socialistas, começou por entusiasmar-me pouco. Demorou uns bons anos até ser conquistado pelos méritos do projeto integrador europeu e perceber, em especial depois de começar a trabalhar no seu seio, que era nele que residiam as políticas que melhor podiam ancorar, não apenas os nossos desenvolvimento e bem-estar, mas igualmente a nossa liberdade e os quadros institucionais para a proteger. Atenuar a fezada em algumas fantasias políticas e começar a valorizar as comezinhas liberdades burguesas fez o resto. 

Quando terei lido a Declaração Schuman, publicada quando eu tinha apenas dois anos de idade? Não sei bem. Dela ficaram-me, para sempre, impressões fortes, que agora recordo numa releitura, nestes seus 75 anos. Desde logo, a memória trágica de uma guerra recente, verdadeiro "leit motiv" do exercício. Depois, a centralidade do papel da França e na Alemanha, com a questão, que para nós era estranha, do carvão e do aço. Pouco mais, confesso. 

Como a muitos de nós, o nome de Robert Schuman surge sempre associado ao de Jean Monnet, como o tandem impulsionador do processo de unidade europeia. Há aqui uma "injustiça" histórica: falta Josef Stalin na fotografia. Foi também o medo ao vizinho do outro lado da "cortina de ferro" que funcionou como o primeiro cimento da unidade conseguida do lado de cá. Afinal, como se está a constatar nos dias de hoje, a História, às vezes, repete-se mesmo. 

A Europa comunitária é um ser mutante e a Declaração Schuman já o anunciava, ligando sempre o entusiasmo mobilizador aos sucessos que fossem sendo conseguidos. As "trente glorieuses" que, mais tarde, consagraram esse êxito, geraram aquilo que podemos qualificar como o otimismo europeu - que, diga-se, foi o lado da Europa que mais atraiu a minha geração. 

A Guerra Fria travou bastante o projeto saído de Roma, em 1957, mas a queda do Muro veio permitir o extraordinário passo de Maastricht, com o Mercado Interno a realizar-se em fundo. Com isso, veio um período de imensa ambição política, com Schengen e a Moeda Única. E seguiu-se o grande alargamento, com as ambições a Sul e o cavalgar da globalização como fonte de riqueza, para sustentar um modelo social ímpar. 

Até um dia. Como que por um pouco suave milagre, o otimismo começou a esvair-se. A Europa-solução passou a Europa-problema. As aberturas comerciais passaram a ser culpadas das disfunções económicas nacionais, a abertura das fronteiras converteu-se no bode expiatório das tensões demográficas. Veio a crise financeira e as suas sequelas, como a austeridade e a quebra da solidariedade intra-europeia. Alguns países foram-se fechando, ocorreu o Brexit, o populismo tomou a agenda política, as relações exteriores da União abandonaram a agenda solidária e passaram a pautar-se por lógicas de interesses. A guerra na Ucrânia fez o resto. 

Esta não é a Europa otimista que, no passado, me convenceu a abandonar o meu soberanismo primário. É uma Europa tensa, abalada por discursos de medo e de desconfiança. O conjuntural abandono pelo antigo "amigo americano" tornou-nos ainda mais inseguros, propensos a cair nos braços tutelares dos "grandes" países que, por este lado do Atlântico, fazem de grandes potências. Não sei se uma Europa da defesa nos tornará mais "europeus". Conseguiremos fazer das nossas fraquezas forças, sem perdermos a alma do nosso projeto? Logo veremos. Mas não tenho a certeza de que Schuman se reconheceria na Europa melancólica e angustiada que por aí anda.

Socialistas europeus

Intervenção na reunião dos deputados europeus do S&D - Group of the Progressive Alliance of Socialists and Democrats

Lisboa, 11 de Junho de 2025

Painel: The Global Role of the EU in the New Geopolitical Landscape – Challenges Ahead and Opportunities in Building New Progressive Partnerships



Thank you very much for your invitation. It is a pleasure for me to contribute to this very timely debate. 

I took the title of this panel seriously: “The Global Role of the EU in the New Geopolitical Landscape”. Today, this is a crucial issue, as it relates to the credibility of Europe as a political actor. 

I was told I could speak my mind here. Therefore, I will completely set aside the "langue de bois" I often employed during my four decades as a professional diplomat. I imagine that some of what I am going to say may not be to everyone’s liking. That’s life! 

I have focused my notes, for these 10 minutes, on the EU’s external image – the principles and values which, in my view, must be upheld if we want to make a difference, particularly as socialists. 

Let us begin with America. 

The arrogance shown by the Trump administration, although not surprising, has reached a level that surpasses our worst expectations. But let us be honest: the United States has always been arrogant towards Europe – sometimes with smiles, at other times with harsh words. Europe, feeling that its core security depended on Washington if things went wrong, consistently showed a high degree of complacency towards the attitude of "the American frien" — and I am not referring to the Wim Wenders film. 

For many decades, Europe has been aware of its inability to play a meaningful role on the international stage, as a collective entity, without the United States at its side. For that reason, Europe accepted Washington’s "à la carte" multilateralism, and the opportunistic use the United States made of the United Nations, according to its own convenience. 

I know that not all European countries reacted in the same way to American arrogance, but the outcome of the collective European will invariably ended up favouring the continuation of American exceptionalism. 

And let us be clear: for many years, and on many issues, Europe never really minded being subordinate to American will on the global stage. Sometimes this was out of deference, particularly when it came to defence. At other times, it was about efficiency, as American leadership made things easier to get done. 

Decades of experience dealing with American diplomats have led me to the conclusion that, for them, it is almost a surprise when we dare to suggest that our interests may not coincide with their own. 

There has never been a true balance in the transatlantic relationship. We all know that. 

For a long time, Europe remained convinced — and many still are — that it was in America’s own interest to ensure the security of the European continent. That is why, for years, Europe showed little concern for the issue of “burden sharing” in defence. America had long been a European power and behaved as such. And it was no ordinary power. America was NATO, and NATO meant European security. The NATO that Sweden and Finland have wanted to join is different from the NATO that exists today. NATO meant Article Five of the Washington Treaty, its automaticity. That NATO, as things stand today, no longer exists. 

The Russian invasion of Ukraine may have been the last moment when Europeans saw the United States caring about a major European strategic interest. Europeans — especially those who remember all too well their traumatic past with Moscow — were reassured to see America on their side, defending the current government in Kiev. But they may have been misled: Biden may have been the last American president to see European security as a core component of the US’s global strategic calculations. 

This war seemed more than convenient for the United States: it contained Russia, cut off access to cheap energy, undermining Europe’s competitiveness, sold its own gas, subsidised its arms industry, involved no American “boots on the ground,” and — for once — put America on the “right side” of History, which has not always been the case in the past. And, not least, it helped erase the memory of Afghanistan. 

Was this the ideal war for America? Trump and his camp clearly do not think so. 

But let us return to the moment of the Russian invasion. 

On the Ukrainian issue, Europe and the US initially stood eye to eye. They defended the same interests and, at least on paper, shared the same values. Perhaps for this reason, Ukraine became a unifying factor for the European continent. It allowed Europe, with few dissenting voices, to speak with one voice — beyond just the EU — rallying other like-minded democracies, even from outside Europe. It was, in many ways, a good moment. 

For some time, many believed that this alignment on solid values and principles could be the foundation upon which Europe might build a respectable foreign policy — becoming a force for good, untainted by the duplicity of the United States, and worthy of the ethical tradition of European civilisation. 

They were profoundly mistaken. The war in Palestine proved them wrong. The shameful spectacle that Europe has displayed over the Palestinian issue has, in a short time, destroyed the moral authority that Europe had been building as a political actor — an authority strengthened by its stance on Ukraine. 

Double standards, in the end, seem to be the defining feature of this European Union. A life lost in Ukraine, it seems, is not the same as a life lost in Gaza. Europe clearly applies a hierarchy in the way it views deaths caused by violence. 

And there are more double standards. Putin is the subject of an arrest warrant from the International Criminal Court, and Europe applauds — rightly so. Netanyahu receives a similar warrant, and we do not see Europe mobilising to support its enforcement. On the contrary: Europe seems embarrassed, almost uncomfortable, looking the other way. 

Half of the weapons used by Israel to kill Palestinians come from Europe. Many people are dying in Gaza. But political Europe has also died in Gaza. In fact, political Europe committed suicide there. 

What moral authority can Europe claim in the future to lecture third countries on human rights and the protection of minorities, to impose conditions on development aid, when it behaves as it does towards a state like Israel? 

Why don’t we see the European Union demanding that Israel comply with UN Security Council resolutions — for example, on settlements in the West Bank? Why doesn’t Europe speak out against the nuclear weapon that Israel keeps hidden? If Europe truly believes that it disagrees with Israeli policies, why does it not use the bilateral tools at its disposal to apply pressure on Tel Aviv? Or is it simply that, no matter what Israel does, Europe will always end up divided and ineffective? That is what we call objective complicity. 

Let me now address another delicate point. 

It would be more comfortable — or less inconvenient — for me not to do so, but we must put an end to this kind of taboo. You know as well as I do why this eternal complacency towards Israel persists in many parts of the international community. We know that some European countries are bound by the tragic memory of the Holocaust. But the memory of those countries is not the memory of all Europe. 

We know that public opinion today is often held hostage by the spectre of antisemitism, as if openly denouncing radical Zionism and criticising the fanatics who promote it in Israel were somehow the same as being antisemitic. 

Defending Palestinian rights is not siding with Hamas. It is not ignoring the terrorist nature of some of its actions, such as the criminal abduction and use of civilians as bargaining chips. That is a rhetorical trap we must not fall into. We must be able to resist this dishonest tactic that shows up in political discourse every day. 

What is happening in some European countries — namely, the prohibition of public support for the Palestinian cause — is unacceptable, when judged against the values of freedom that we all — especially those of us in this political sphere — are supposed to uphold. 

I come from a country where antisemitism is not an issue. I belong to a diplomatic corps that proudly honours one of its historic figures, Aristides de Sousa Mendes, who saved thousands of Jews from nazi persecution. The threat of being labelled antisemitic does not frighten me. 

Antisemitism is a vile form of racism, as is Islamophobia or the persecution of other ethnic groups. But antisemitism is not somehow above them all. 

That is why I feel completely free to say, without mincing words, that the cowardly behaviour of the diplomacy that claims to speak for the European Union, in the face of Israel’s criminal actions in Gaza — call these mass killings “genocide” or use another term — does not represent me. Not as a European, not as a Portuguese citizen, not as a democrat, and certainly not as a socialist. 

My Europe deserves a better diplomatic face. It deserves a decent one. Not this one. 

Thank you very much for your attention.

31 de maio de 2025

Europa: gerir a diversidade

Intervenção inicial na conferência "As múltiplas crises da União Europeia", promovida pelo Beira – Observatório de Ideias Contemporâneas Azeredo Perdigão, em Viseu, em 31 de maio de 2025

Para poupar tempo, e para ser mais rigoroso, vou começar por ler um texto não muito longo que preparei para esta ocasião. 

Pediram-nos para falar das crises da Europa. Escolhi, nesse contexto, falar da diversidade europeia e do modo como ela impacta nas crises que o continente atravessa. 

Sou muito pouco dado a citações, mas permitam-me que comece com uma: 

"A situação na Europa, na realidade, nunca deixou de ser medonha. Tem-no sido melancolicamente e apaixonadamente todo este século. Tem-no sido em todos os séculos. A crise é a condição quase regular da Europa. E raro se tem apresentado o momento em que um homem, derramando os seus olhos em redor, não julgue ver a máquina a desconjuntar-se, e tudo perecendo, mesmo o que é imperecível- a virtude e o espírito." 

Quem escreveu isto foi o meu colega de profissão, José Maria Eça de Queiroz, em 1888. 

Por isso, e acreditar no que ouviram, há muito que não estamos sozinhos, nesta sombria constatação de descalabro europeu. 

Mas, para sermos verdadeiros, talvez não valha a pena, mesmo com apoio de clássicos, deixar-nos vencer pelo desânimo. E constatar o óbvio. 

E o óbvio é que Europa, neste caso a Europa unida num projeto multi-nacional vai para 70 anos, foi e é um magnífico modelo, que deu décadas de paz, de progresso e de desenvolvimento a centenas de milhões de pessoas, em várias gerações. 

Esquecer isto, marcados pelas dificuldades conjunturais, é uma patetice. A Europa é um caso de sucesso e, muito provavelmente, está apenas a ser vítima dele. A atual diversidade europeia é a sua riqueza, mas é também a sua fraqueza. 

A Europa de 1957 era composta por seis países derrotados na guerra que tinha terminado pouco mais de uma década antes, com um, no seu seio, que fingia ter saído vencedor: a França. Essa Europa dos seis era unida por um cimento longínquo, mas poderoso: o receio do regresso à guerra e àquilo que estava para além da chamada "cortina de ferro". Costuma-se dizer que Stalin, além de Monnet e Schuman, é também um dos responsáveis pela unidade europeia. 

O primeiro alargamento, feito da ambição para ganhar escala, alterou qualitativamente a Europa: o Reino Unido foi sempre um parceiro relutante à partilha de soberania que o projeto requeria, a Irlanda passou a ser aí o primeiro país neutral e não-Nato, a Dinamarca teve, desde o início, idiossincrasias marcadas por "opt-outs": moeda, política de defesa, justiça, etc. 

A entrada da Grécia, e depois de Portugal e Espanha, o alargamento mediterrânico e pós-ditaduras, não trouxe grandes impactos, nem sequer financeiros. A Europa era então (com exceção da Irlanda) um "clube de ricos". E os "ricos" pagaram, não a crise, mas os diferenciais de riqueza com os novos membros, ajudando a mais estabilidade do espaço geográfico e alargando o mercado de consumo. E todos esses novos Estados eram já membros da NATO. 

Sublinho isto para dizer, que o alargamento seguinte - Áustria, Suécia e Finlândia - que foi financeiramente neutral, por se tratar de contribuintes líquidos, era também securitariamente neutral: nenhum desses países era membro da NATO. 

Negociei o Tratado de Amesterdão com eles já sentados à mesa e constatei que, juntamente com a Irlanda, eles foram um bloqueio a todos os avanços na cooperação em dimensões que tocassem questões de segurança. 

A diversidade começava a acentuar-se dentro do projeto europeu, num momento em que a Europa, depois da queda do Muro de Berlim e das ambições como potência que o Tratado de Maastricht consagrara, passou a ter uma dimensão política muito maior. Do tempo da Europa puramente económica, tínhamos passado para a Europa com o objetivo de gerar uma política externa comum, embora não única, para um mercado interno uniformizador, para um projeto de livre circulação de pessoas, para ambição de uma moeda comum. 

O alargamento aos três estados neutrais que referi foi importante, mas nada que se comparasse com o que estava para vir. 

O "grande alargamento" - 10 países mais dois, três anos mais tarde - trouxe para a União, para além de duas ilhas mediterrânicas que fazem parte de uma outra história, uma dezena de Estados que tinham vivido sob a tutela da União Soviética, entretanto desmantelada. Três deles eram mesmo antigas repúblicas soviéticos. E vamos dizer as coisas com toda a clareza: o alargamento iniciado em 2004 mudou radicalmente a União. 

Esse alargamento não deveria ter ocorrido? Deveria ter sido faseado e progressivo? O ótimo é inimigo do bom. A esses países, o ocidente tinha mostrado, ao longo de décadas, o projeto de liberdade e de desenvolvimento que, do lado de cá do continente, estava a ser desenvolvido. Com toda a naturalidade, logo que puderam, esses países vieram bater à porta, querendo partilhar esse modelo. 

Seria uma imensa hipocrisia se a Europa os não tivesse acolhido. Tive o gosto de ter feito parte de um governo, com responsabilidades específicas nessa área, que foi totalmente favorável a esse alargamento. 

Acresce ainda um fator, de que se fala pouco e que se prende com o calendário da entrada desses países. O percurso de afirmação autónoma desses Estados só foi possível por uma fragilidade conjuntural de Moscovo. Para os países candidatos, a entrada para a União Europeia interessava menos do que a entrada para a NATO. Mas foi aproveitada a debilitação do poder político em Moscovo e os candidatos acabaram por obter dois-em-um. 

A Rússia titubeou, mas acabou por aceitar. Hoje percebemos melhor que foi um silêncio sofrido. 

Como antes disse, este, mais do que qualquer outro alargamento, mudou profundamente a União Europeia. 

É interessante pensar que, por muito tempo, esse grande alargamento foi visto como politicamente inócuo para os equilíbrios que existiam na Europa. Alguns pensavam ingenuamente que iria ser uma espécie de "colonização" política do centro e leste europeus, um "template" trazido do ocidente que esses países se limitariam a aceitar. Houve mesmo quem pensasse que a Alemanha - onde já tinha ocorrido um discreto "alargamento" de que ninguém fala, o da Alemanha Oriental - acabaria por ser a potência de tutela dessa nova Europa. 

Todos se enganaram redondamente. 

Logo que entrados na União, esses países carrearam para o seio desta todas as suas ideossincrasias, os seus interesses próprios, a sua geopolítica, os seus receios e os seus ódios. E, claro, as suas afinidades afetivas. Para a generalidade desses Estados, o "amigo americano", e aqui não entra o conceito de Wim Wenders, era muito mais importante do que o clube de amigos europeus. Porquê? Porque Washington era, na prática, a NATO e eles confiavam pouco na ajuda que Bruxelas pudesse dar, se alguma coisa viesse a correr mal na sua relação futura com a Rússia. 

Nos últimos tempos, depois da crise da Ucrânia, não tendo com certeza mudado de opinião sobre quem é o verdadeiro "dono da bola", os países desse alargamento - e vale a pena lembrar que ele ocorreu já há mais de 20 anos - terão percebido que há mais amigos para além do "amigo de Peniche" em que a América se transformou. Com a invasão russa da Ucrânia, e com a tensão político-militar instalada na Europa, muita coisa mudou. 

Alguma diferenciada perspetiva, dentro da Europa, sobre a virtualidade residual da relação com Moscovo, em especial no aspeto económico, atenuou-se. 

Era com isso que Putin contava para poder dividir a Europa, mas enganou-se. 

A guerra na Ucrânia trouxe várias consequências. 

Trouxe uma atitude mais coesa dentro da União Europeia face à ameaça que a Rússia pode significar para os seus Estados membros, embora com graus de risco potencial diferenciados. 

Trouxe, nessa decorrência, um esforço de "decoupling" das dependências até então existentes face à Rússia, em especial em matéria energética. 

Trouxe uma histórica alteração da cultura de segurança e defesa alemã, acabando com uma postura de contenção e retraimento, que vinha de longe e parecia já quase identitária. 

Trouxe um rápido salto em frente, em direção à NATO e à partilha da segurança comum, de dois países nórdicos que antes tinham estatuto neutral que parecia marcar o seu DNA. 

Trouxe, ironicamente, um tempo de reaproximação com um Reino Unido ainda em maturação dos efeitos do Brexit. 

Trouxe uma atitude nova por parte da máquina da União Europeia, financiando ineditamente material para um conflito armado e provocando, surpreendentemente com escasso ruído, uma reversão institucional que deu à Comissão Europeia um protagonismo operativo que considero muito discutível face aos tratados. 

E, finalmente, levou a um discurso - por ora, apenas um discurso - de possível partilha da cobertura de segurança dada pela "force de frappe" francesa, na primeira grande evolução dentro do "gaullomitterrandisme" de Paris. 

Tudo isto a Europa fica credora de Putin, afinal um digno sucessor de Stalin no papel de "cimento" pelo medo. 

Mas voltemos à diversidade, que me propus abordar. 

Num primeiro tempo, as várias "Europas" que referi encontraram na ameaça russa um fator de diluição das várias idiossincrasias nacionais. A emergência da guerra pareceu ter atenuado as divergências e criado um modo comum de atuar. 

Isso foi verdade até um certo ponto. O caso húngaro e, depois, o eslovaco, vieram demonstrar que a ação coletiva mostrava fissuras e divergências, mesmo naquilo que parecia essencial: a atitude comum face à Rússia. Viu-se isso no estabelecimento dos pacotes de sanções, como também nos debates sobre as dependências residuais de Moscovo em matéria energética. E a história promete continuar. 

O resultado das eleições na Roménia sossegou quantos temiam um efeito dominó nesse caminho divergente. Mas nada está adquirido para sempre e essa é uma realidade com que a Europa tem de se habituar a viver. 

A Europa não é um país, é um conjunto heterogéneo de Estados com 27 constituições diferentes, com sistemas políticos de vária natureza, com composições de governo diversas, com calendários eleitorais que nunca poderão ser harmonizados. 

Além disso, por muito que temas como a guerra na Ucrânia possam funcionar como fatores de unidade pontual na ação, em tudo o resto os países europeus, que são unidades democráticas, vivem sob o controlo de opiniões públicas mobilizadas por agendas políticas próprias e até contraditórias, algumas delas marcadas pela sua inserção geopolítica, pelos seus graus de desenvolvimento, mesmo pela sua história. 

Acho algo ingénuo pensar-se que é possível blindar, em definitivo, a atitude europeia, por exemplo em relação à Rússia. Basta pensar o que pode acontecer se, um dia, a Europa acordar com a extrema-direita na liderança da França. 

Dir-se-á que é forçoso encarar modelos decisórios novos, que afastem o empecilho da unanimidade e aumentem as decisões por maioria qualificada. Não consigo deixar de ser muito prudente e sou levado a tentar travar as ambições neste domínio. Romper com a obrigatoriedade da unanimidade em matéria de política externa, para enfrentar a ameaça russa? 

Desafio-os então a tentar passar ao voto por maioria qualificada para a Europa se pronunciar sobre o escândalo em Gaza. Acham que isso seria possível, sem uma grave crise dentro da União? 

Sei, por experiência governativa própria, o que teria acontecido se Portugal não tivesse utilizado, até ao limite, a exigência da unanimidade para tratar da questão de Timor no seio da União Europeia. 

Lamento ter de informar que a União Europeia - que, repito uma vez mais, não é um país - tem e terá sempre limites de intervenção em áreas que tocam a soberania dos Estados que a compõem. Muito longe já fomos, mas haverá sempre limites a respeitar e a política externa é um deles. Pode haver alguns truques, jurídicos ou semânticos, que possam ser utilizados pela Comissão Europeia para fugir a determinados coletes de força impostos pelos tratados. 

Mas eu gostava de lembrar algo que aprendi, ao trabalhar na área europeia: a desejável eficácia das ações nunca pode afetar a legitimidade dos governos nacionais eleitos e tem de estar sempre subordinada à sua aceitabilidade pelas opiniões públicas. 

Temos de perceber uma coisa simples: os eleitorados escolhem deputados que elegem governos que são supostos levarem para Bruxelas as posições nacionais. Não é expectável que essas posições saiam sempre vencedoras, mas é defensável que sejam sempre ouvidas e respeitadas. 

É que se um eleitorado nacional gera um governo cuja ação na Europa se torna, por sistema, irrelevante, na tentativa de afirmação dos seus interesses nacionais ou numa leitura própria dos interesses europeus, ou esse governo se desprestigia internamente ou o país passa a ver a sua inserção na Europa como um ambiente hostil. 

Tudo o que acabo de dizer tem a ver, naturalmente, com os casos húngaro ou eslovaco, mas também com outros Estados onde, um dia, a fadiga dentro da opinião pública, nomeadamente no apoio à Ucrânia, possa vir a manifestar-se. Vêm aí decisões difíceis de natureza orçamental, que terão impactos inevitáveis em algumas políticas públicas, por muito que queiramos edulcorar o cenário. 

Temos de saber viver com a divergência, por muito que isso custe a quem está convencido que tem a razão e a moral do seu lado. 

Como comecei por dizer, a natureza democrática da União, que é a sua força, é também a sua fraqueza. Quisemos um alargamento a todos os azimutes. Temos agora de pagar o preço por essa opção. A União Europeia, pela sua natureza, é diversa. 

Apesar das dificuldades, não estou pessimista com o futuro do processo decisório dentro da União. Preocupa-me muito mais a justeza das políticas, a coerência dos princípios, a coragem, o realismo e a equanimidade nas decisões: face à Ucrânia e face à Palestina, por exemplo. 






29 de maio de 2025

Teixeira Gomes

Quero começar por agradecer o amável convite do Dr. José Alberto Quaresma para hoje aqui estar. É um gosto partilhar esta ocasião com o meu colega e amigo embaixador Luís Castro Mendes. E é também para mim um grande prazer ter o ensejo de falar sobre o nosso comum praticante de profissão, Manuel Teixeira Gomes, uma figura que há muito me interessa e que me habituei a admirar. 

Começo por um "disclaimer". Estou aqui como um mero observador, impressionista e nada especialista, do percurso diplomático e político de Teixeira Gomes. Nem mais nem menos. 

Há uns anos, quando foi editada a biografia de Teixeira Gomes, escrita pelo Dr. José Alberto Quaresma, fui convidado para falar sobre ela, num mano-a-mano com Hélder Macedo, num evento no Centro Cultural de Belém. Foi um exercício que me levou então a refletir um pouco mais sobre a interessante figura de Teixeira Gomes. 

Até essa altura, eu tinha criado, intimamente, algumas referências quase caricaturais sobre Teixeira Gomes. Mas essas imagens não rimavam necessariamente bem entre si. De um lado, estava o autor de ficção de quem eu tinha lido algumas escassas obras e cuja escrita, devo dizer, sempre achei fascinante, original e provocatória, que sabia ter abalado os costumes da época. 

Ora esse autor - e eu não tenho a menor pretensão de ser especialista no domínio literário, diga-se desde já - sempre me havia parecido algo inconforme com a persona do diplomata e do político que conhecia melhor. 

Para confundir ainda mais as coisas vinha a surgir a figura, bastante misteriosa e atípica, do quase eremita que decidira acabar os seus dias na Argélia, numa derradeira aventura sobre a qual eu tinha lido, muitos anos antes, um livro apenas razoável de Norberto Lopes. 

A biografia do Dr. José Alberto Quaresma ajudou-me muito e acrescentou bastante ao pouco que eu sabia sobre Teixeira Gomes: trouxe-me a sua geografia sentimental algarvia, as peculiaridades e complexidades da sua vida familiar, as referências detalhadas às suas múltiplas viagens e afinidades eletivas, a revelação da profundidade da sua diversificada cultura. 

Eu tinha consolidado a ideia, reforçada pelos seus retratos - e nós acabamos por ser muito sensíveis a essas influências impressionistas - de estar perante um gentleman frio e distante, uma figura algo atípica no universo dos atores políticos do período convulso da Primeira República. Curiosamente, esse perfil físico parecia-me, como referi, menos conforme com aquilo que ressaltava da sua escrita de ficção. E essa dissonância tinha, para mim, algo de misterioso. 

Ao ter tido o ensejo de entrar, mais profundamente, no mundo que criou e marcou Teixeira Gomes, através daquela biografia, passei a perceber muito melhor a personalidade que se projetava suas diversas dimensões. 

Burguês rico de Portimão, provido de capitais familiares que lhe davam uma grande independência no seio da sociedade crescentemente tensa dos últimos anos da Monarquia, Teixeira Gomes, pelas raízes e pelos ambientes que foi levado a frequentar, era, com naturalidade, uma figura tributária das "luzes", do ativismo cívico liberal que, pouco a pouco, ia minando o rotativismo político e gerando uma surda alternativa ao status quo. 

Em Portugal, o republicanismo foi profundamente ideológico: consubstanciava uma doutrina combativa e salvífica, radicalmente humanista, que desesperava com a influência religiosa obscurantista e afirmava o seu positivismo extremo contra o antigo regime. Foi uma aliança de oportunidade de burgueses esclarecidos com uma classe trabalhadora cada vez mais marcada pelos ventos do radicalismo, nos princípios e na ação política. 

O tempo da Primeira República iria, aliás, trazer ao de cima todas as contradições dessa aliança, imanentes ao equívoco de propósitos que faz parte de todas as revoluções. Esse equívoco é quase sempre essencial ao sucesso dos momentos de mudança - como mais tarde o 25 de Abril veio a provar. 

Sendo um burguês no sentido mais puro do termo, Teixeira Gomes decantou, curiosamente, na sua personalidade, uma espécie de snobe sofisticado, que teve o ensejo, o bom gosto e a sabedoria de se educar sob os quadros culturais mais avançados para a época. 

Imerso no turbilhão dos grupos de jovens muito propensos às novas ideias e doutrinas, trazidas de Paris e do resto da Europa pelo Sud Express, com a bem guarnecida retaguarda económica a permitir-lhe todos os devaneios filosóficos, as viagens confortáveis e as aventuras carnais, Manuel Teixeira Gomes corria o sério risco de se converter num inútil diletante, saltitante entre doutrinas e se cultivava pela espuma dos dias. 

Curiosamente, embora falhando a universidade, Teixeira Gomes não falhou o seu encontro muito sério com a cultura. Soube ligar-se a quem o podia contribuir para a sua formação, frequentou os cenáculos das artes, das letras e da política, em Coimbra, Lisboa e no Porto. Criou também, com o tempo, uma apreciável rede de contactos no estrangeiro, onde ancorava as suas regulares andanças. 

É aliás curioso interrogarmo-nos como é que, no meio desse turbilhão de vida, ele conseguiu decantar o génio de uma escrita rica, gráfica nos detalhes, humana - muitas vezes cruel - no recorte das figuras, das circunstâncias e das paisagens. 

Dir-se-á que o cultivo dos clássicos ajudou muito a isso. Porém, conhecemos exemplos vários em que a imersão nesse mesmo caldeirão de livralhada redundou em escritas pesadas, prenhes de adjetivação redundante, penosamente solene e gongórica. Estava a escrever isto e a lembrar-me de um dos desprezos de estimação de Teixeira Gomes, que foi Júlio Dantas. 

Da imersão nesse mundo da cultura, onde começou a ter reconhecimento, se bem que, às vezes, um tanto reticente, Teixeira Gomes criou uma imagem pública que se foi destacando e se fez notar. 

Curiosamente, o seu surgimento no mundo republicano fez-se de forma pouco impositiva. Para mim, um dos maiores mistérios é perceber como a sua ascensão nos meios republicanos se fez sem aparentemente ter passado por aquele que parecia ser um patamar de iniciação quase obrigatório - a maçonaria. Quase todos os ambientes em que Teixeira Gomes se movimentava eram marcados por esse "template" filosófico e, ao que tudo indica, ele fez questão de saltar essa etapa de credibilização de grupo, então tão na moda. 

De burguês de província, como não me canso de sublinhar, dotado de uma cultura cosmopolita que espelhava nos livros e no convívio, Teixeira Gomes conseguiu desenhar no mundo político em ebulição a imagem de uma espécie de aristocrata da República. E isso dava-lhe uma valiosa independência. Não precisava da alavanca do mundo republicano para viver, não tomava opções políticas com vista a enriquecer. Nisso tinha um perfil idêntico a outros próceres da República, bem abonados de meios, dos quais se distinguia, contudo, pelo manifesto desapego aos lugares partidários e, mais tarde, q cargos de governo. 

Chegada a República ao poder, Teixeira Gomes surge cooptado para representante português em Londres, por razões quase caricaturais. 

Há um texto de João Chagas em que, ressoando a alguma acrimónia, ficaram detalhadas as motivações dessa escolha, embora não fique muito clara a responsabilidade última pela mesma: Teixeira Gomes era um homem inteligente e capaz, tinha um ar "fino", falava línguas e dispunha de uma cultura sempre útil nos salões. 

E aqui trago a esta conversa uma nota sobre a dimensão diplomática do novo regime. 

Portugal tinha então muito poucas representações pelo mundo, embora talvez mais do que seria expectável para um país da sua dimensão, o que a História justifica. Havia já, desde o século anterior, uma carreira criada para tal, dividida entre a parte diplomática e consular. Contudo, aos membros dessa carreira diplomática raramente competiam lugares de representação máxima do Estado nos países onde operavam. Esta estava, até então, em especial nas capitais mais importantes, como que reservada para os representantes pessoais do soberano - e vale a pena lembrar que a República portuguesa foi apenas a segunda, depois da França, numa Europa recheada de monarquias, tirando a bizarria do modelo suíço. 

Se a monarquia portuguesa tinha quase sempre escolhido aristocratas de linhagens mais ou menos adequadas para representar o Estado, esperando aliás que, muitas vezes, usassem bens próprios para retribuir a honra da sua nomeação, a nova República decidiu também selecionar alguns dos seus melhores para, pelo mundo, serem a cara do novo Portugal. Mostrar uma imagem de excelência era essencial para credibilizar o regime. E, claro, era imperativo afastar os representantes da monarquia, aristocratas que, não sendo simples "civil servants", obviamente não davam garantias de lealdade às novas autoridades. 

A República foi rápida a enviar para os escassos postos diplomáticos que o país tinha figuras de topo da sua nomenklatura, gente de elevada qualificação, a que quase sempre aliavam "boas maneiras", que caem sempre bem junto das chancelarias e salões estrangeiros. 

José Cutileiro dizia que dar, no exterior, uma imagem melhor do que aquilo que o país realmente é constitui um dos truques na escolha do pessoal diplomático. 

Foi assim que, pelo mundo, estiveram António Luiz Gomes, Bernardino Machado, José Relvas, Sidónio Pais, Augusto de Vasconcelos, Eusébio Leão, Guerra Junqueiro, entre outros menos conhecidos nos dias de hoje. 

Manuel Teixeira Gomes foi para Londres, onde esteve por dois períodos, intervalados por uma demissão determinada pela ditadura de Sidónio Pais e por uma estada breve em Madrid. 

Londres era, por essa época, o posto chave da diplomacia portuguesa. O comportamento do governo inglês, tido como exercendo uma espécie de tutela sobre Portugal, o que era pura verdade, tornava-se fundamental para a credibilização do novo regime. O reconhecimento da República portuguesa por Londres, que tardava, poderia ter um importante efeito dominó pelo mundo. 

Teixeira Gomes tinha, perante si, a mais difícil tarefa da diplomacia do novo regime, só comparável, embora em escala inferior, à da nossa representação em Espanha, país onde conspiravam quantos, pela violência, queriam restaurar a monarquia. Londres acolhia o rei deposto e muitos aristocratas órfãos do regime derrubado. O embaixador da monarquia, Soveral, um "performer" de primeira água, movimentava-se junto da corte como uma espécie de "embaixador sombra". Lá, como no poema de Bandeira, ele era "amigo do rei"... 

Teixeira Gomes fez então o que deve ter parecido impossível: conseguiu com alguma rapidez o reconhecimento britânico e foi construindo as pontes necessárias para uma colaboração futura entre Londres e Paris. Pode hoje imaginar-se a magnitude dessa tarefa e a sua complexidade. 

Convém pensarmos que, sendo então um homem maduro, na casa dos 50 anos, Teixeira Gomes tinha uma experiência negocial internacional que se limitava à venda de figos secos e de produtos congéneres, sendo completamente inexperiente na prática diplomática. Podemos imaginar que nisso pôs todo o seu bom senso e inteligência a funcionar. Mas isso, às vezes, não substitui a experiência. 

Mas ser um homem do mundo e com mundo, um cosmopolita, um descomplexado frequentador de salões, deve ter contribuído muito para o inegável êxito da sua missão. É que Teixeira Gomes tinha uma "aisance" social facilitada pelos seus meios de fortuna, pelos seus gostos refinados, pelos seus móveis e objetos de arte, pela frequência de mesas e "parties" em que, ao que se pressente, se sentia totalmente à vontade. E, ao que se pode presumir, teria um perfil, em matéria de relações humanas, perfeitamente adequado à função. 

A Inglaterra, verdade seja, vivia num dilema face a Portugal. Por um lado, a natureza do seu regime apontava para a proteção do anterior rei, e para aí se inclinaria o serralho da corte. Isso rimava bem, aliás, com uma opinião pública marcada pelas notícias, que por essa altura corriam na Europa, sobre as prisões em massa que a República teria levado a cabo, bem como acusações sobre trabalho forçado nas colónias. 

Mas, por outro lado, o pragmatismo britânico apontava para a necessidade da normalização das relações. A Inglaterra, que parece que não tem amigos e só tem interesses, como alguém disse um dia, não podia ficar refém de uma restauração monárquica que, manifestamente, dificilmente iria ter lugar. E, para a continuação e proteção desses consideráveis interesses, os ingleses dependiam da boa vontade do novo poder de Lisboa. E o governo britânico, quiçá contrariando a propensão inicial da corte, teve um reflexo de "realpolitik". 

E, um tanto ironicamente, aquela boa vontade florescia já na liderança republicana de Lisboa. Digo ironicamente, para sublinhar o contraste com a atitude contra a "pérfida Albion" e o "contra os bretões, marchar, marchar", ditada pela cena do Mapa Cor-de-Rosa, poucos anos antes. A República, que se reforçara no país pela sua feroz atitude anti-britânica nessa crise, necessitava agora de se aproximar de Londres, para diluir as resistências contra si que persistiam pelo mundo. 

Teixeira Gomes fez esse seu trabalho, e fê-lo de forma muito competente. Pelo meio, teve de gerir a difícil e delicada questão da participação portuguesa na beligerância, no conflito mundial que se instalou. 

No início escassamente convencido da bondade da ideia de Portugal se envolver na guerra, o nosso diplomata acabou por ficar confortável com essa opção, colando-se mesmo, a partir daí, a Afonso Costa. E soube trabalhar a filigrana do acordo que, um tanto a contragosto dos britânicos, procurava assegurar ao nosso país um lugar à mesa do compromisso final, para salvar a soberania colonial e pôr travão às ambições que as potências alimentavam sobre um espaço que tínhamos por nosso. Potências essas que incluíam a Inglaterra, bem entendido. 

Conseguiu mesmo que Londres viesse a invocar a Aliança Luso-Britânica nesse contexto, o que, à época, era tido como uma espécie de seguro de vida político, que a diplomacia de Lisboa sempre persistiu em fingir manter vivo, mesmo em tempos posteriores em que, para o que realmente contava, esse tratado estava mais do que morto. 

Uma nota ainda, esta de curiosidade, para sublinhar o incómodo manifestado por Teixeira Gomes com a banalidade burocrática de muitas das tarefas que era obrigado a executar, quase sempre ligadas a questões de natureza consular. Teixeira Gomes não tinha a menor experiência de administração pública e irritava-se com a lentidão dos processos, a complexidade dos protocolos, além da falta de meios materiais de origem oficial, e, em particular, a escassa qualidade dos recursos humanos. Nem Teixeira Gomes, por essa época, poderia imaginar como essa realidade teve o condão de se prolongar em todos os tempos que sucederam aos seus... 

O nosso diplomata em Londres acabaria por ser chamado, no termo da guerra, ao terreno multilateral, onde Portugal negociou os resultados do conflito. Por aquilo que o nosso país não conseguiu, não obstante uma negociação competente, Teixeira Gomes deve também ter entendido aquilo que um diplomata português acaba sempre, e inevitavelmente, por aprender: a dura realidade do nosso real poder relativo, ou da falta dele, no concerto mundial. 

Só o reconhecimento da qualidade do trabalho levado a cabo em Inglaterra pode, aliás, justificar esse seu posterior envolvimento numa grande negociação. É que, no termo da guerra, Teixeira Gomes era um dos mais qualificados diplomatas portugueses, senão mesmo o mais qualificado. 

Pelo meio, tinha ficado o episódio, aliás para ele bem prestigiante, da sua demissão por Sidónio Pais. Sidónio não tardaria a ser assassinado a poucos metros do hotel no qual antes determinara a detenção do diplomata demitido. Teixeira Gomes abriu uma garrafa de champanhe - e isto não é apenas uma metáfora. 

Olhando em perspetiva, tenho-me perguntado sobre as razões de política interna que terão impedido que Teixeira Gomes tivesse alguma vez sido chamado a ocupar o posto de Ministro dos Negócios Estrangeiros, um lugar manifestamente óbvio para o perfil que criara. Alguns terão também desejado, entretanto, que ele fosse chefe do governo, mas parece que esse não seria o seu desejo. Fica a sensação de que a sua apetência para envolvimento na política partidária e governativa terá sido sempre muito escassa. 

E, talvez por isso, por essa distância face à turbulência de Lisboa, somada ao episódio com Sidónio, a sua estrela terá subido na constelação republicana. 

Teixeira Gomes, com o tempo, ainda em Londres, deixou-se um dia tentar pela Presidência da República, que, ao tempo, se decidia por voto parlamentar. Talvez alguma vaidade e desejo de consagração o tenha empurrado para aceitar a ideia. Verdade seja que ele tinha, entretanto, passado a ser uma figura muito considerada dentro do regime democrático. 

Num tempo político em que, por usura, os atores partidários se iam tornando mais polémicos, o seu perfil algo independente, se bem que nunca partidariamente neutral, acabou por se revelar ajustado a um cargo que passava por um certo consenso parlamentar. 

Os anos de Teixeira Gomes em Belém não terão sido, longe disso, anos felizes. Mas, lendo algumas coisas que escreveu, fico com a sensação de que Teixeira Gomes foi sempre um hábil cultor de uma existência marcada por uma felicidade apenas moderada. De facto, olhando alguns dos seus comentários escritos sobre a sua existência, em especial a epistolografia, Manuel Teixeira Gomes dá ares de ser um eterno desadaptado face àquilo em que se envolve. Fica a ideia de que nada lhe agradava em definitivo, que tudo ficava aquém da sua expetativa. Face ao estado do país, sentia-se claramente um "vencido da vida" tardio. 

Nos dois anos que passou em Belém, marcados por várias crises políticas, com sete tentativas de golpe militar e oito governos, terá percebido que pouco mais poderia fazer, que o regime se encaminhava para um impasse. Para um "pântano", como outros diriam mais tarde. E decide sair de cena, faz este ano precisamente um século. 

Cansou-se mas, vale a pena sublinhar, cansou-se porque se "podia" cansar, isto é, porque tinha dinheiro e possibilidade de continuar, durante algum tempo, a passear pelo mundo, coisa que ele fez sempre de forma confortável e elegante. Eu diria mesmo, como nota pessoal, invejável. 

No imaginário português comum, a derradeira etapa da vida de Manuel Teixeira Gomes aparece quase sempre simplificada, por desconhecimento. Teixeira Gomes não saiu diretamente de Belém para Bougie, onde veio a morrer. Essa é a versão simplificada. Só se fixou em Bougie seis anos - repito, seis anos - depois de ter saído de Portugal, depois de ter viajado, pelo Magrebe que o fascinava e pela Europa em que se educava. 

E por Bougie ficou os seus últimos 10 anos de vida, isto é, entre os 71 e os 81 anos. Noto que ter essa idade, nos anos 30 do século passado, representava um tempo de velhice muito assinalável. 

Não me considero competente para especular sobre a circunstância de alguma da obra mais sensual, às vezes erótica, de Teixeira Gomes ter surgido precisamente nesse período. Mas, sendo Teixeira Gomes, precisamente nesse período de velhice, um cultor da memória do seu Algarve e da sua meninice, talvez tenha recorrido a ela para também praticar o regresso virtual ao seu universo onírico mais prazeiroso. Esse será para sempre parte do mistério do homem. 

A opção por viver em Bougie é talvez dos aspetos mais interessantes desse dandy culto e deliberadamente solitário, mediterrânico e algarvio pela sua raiz, homem de um mundo pelos interesses e gostos. 

Manuel Teixeira Gomes é uma personalidade que se torna mais fascinante à medida que o vamos lendo, que vamos estudando o seu percurso de vida e tentando interpretar o modo como se situou no destino que foi desenhando para si. Para o entender, devemos ter presentes as suas idiossincrasias, que inevitavelmente não podem deixar de comportar - e não quero deixar de o referir - um lado menos simpático da sua vida, que será o comportamento que teve para com a mãe das suas filhas. 

Teixeira Gomes foi uma figura que tinha, com alguma razão para tal, um alto conceito de si próprio. Foi um homem livre, crescentemente solitário, que procurou gerir a vida como queria e sabia que podia querer. 

Foi um autor de imenso mérito, que talvez tenha ficado a dever a si próprio uma obra que poderá ter pensado que não chegou a construir em pleno, prejudicado que foi pelos anos que dedicou à causa pública. 

Foi um estadista, um democrata e um patriota com sentido do interesse nacional, a que o país ficou a dever grandes serviços - e digo isto com a imensa sinceridade de quem o admira. 

O meu - e nosso - colega Manuel Teixeira Gomes sabia que não era um santo, pelo que, estou certo, embora apreciasse que o apreciássemos, zombaria se pressentisse que estávamos a fazer a sua hagiografia. Não foi isso que aqui fiz.

(Intervenção na conferência "Teixeira Gomes, Arte e Diplomacia. Sec. XX- XXI, Portimão, 27 de maio de 2025)