As questões que se prendem com o modelo das instituições da União Europeia e com o seu processo de reforma tanto podem ser vistas numa perspectiva vasta, numa leitura radical de mudanças estruturantes a introduzir no seu formato jurídico, como numa perspectiva menos ambiciosa, de adaptação gradualista dos actuais mecanismos àquilo que se prevê virem a ser as exigências funcionais próximas.
A primeira destas leituras tem, naturalmente, uma importância vital para o desenho da União Europeia do futuro e, em particular, para suscitar nos meios de reflexão política, e através deles nas próprias opiniões públicas, o debate permanente sobre os modelos desejáveis de ordenamento institucional, à luz das várias concepções teóricas que, agora como no passado, foram sempre a semente da ambição europeia. É uma tarefa reconhecidamente de longo prazo, mas que se torna essencial desenvolver, nomeadamente em Portugal, onde o défice de aprofundamento dos temas europeus é uma incontestável evidência e onde, frequentemente, se assenta a reflexão teórica em alguns mitos bloqueantes da livre formulação política. Essa é, por exemplo, a tarefa que o Movimento Europeu tem vindo a levar a cabo e que parece importante estimular e promover.
Mas o objectivo deste texto é confessadamente menos ambicioso. O seu propósito é traçar, à luz da experiência portuguesa recente e da projecção possível das necessidades do futuro imediato, algumas linhas sobre as adaptações que a União Europeia que hoje temos tem que encarar, para acrescer a sua funcionalidade e a sua democraticidade, particularmente num momento em que a Europa comunitária decidiu expandir-se com uma dimensão inédita, quer quantitativa, quer qualitativamente.
Todos temos consciência que o debate de natureza institucional sempre constituiu um permanente elemento de tensão dentro da União. Uma tensão que parte das várias perspectivas sobre o conceito de legitimidade das instituições, sobre as leituras diversas do equilíbrio interinstitucional desejável, mas que, igualmente, reflecte as ópticas que coexistem sobre o modo como a diferenciada realidade que são os Estados Membros deve projectar-se no processo de decisão e controlo da máquina da União.
Se os equilíbrios saídos de Maastricht foram já de difícil aceitação em alguns Estados Membros, como os debates internos e os processos referendários vieram a provar, é evidente que as exigências decorrentes da perspectiva de uma União alargada a mais de 20 Estados traz, com certeza, algumas necessidades acrescidas a ponderar.
É importante que sejamos claros desde o início e que não neguemos a realidade que se nos impõe: uma União Europeia que assuma a sua constante expansão tem de conduzir um sucessivo repensar das suas instituições e, a nosso ver, essa reflexão deverá, ela própria, ter uma dinâmica que acompanhe o próprio percurso de exigências que a União é chamada a enfrentar em cada momento.
Isto significa que não temos, num dado momento, que desenhar uma União para sempre, nem criar necessariamente uma espécie de fórmula evolutiva fixa que se aplique a todas as mutações futuras. Uma das ideias comuns que se nos afigura mais peregrina e sem sentido, mesmo com um certo grau de arrogância histórica, liga-se à concepção de que parece competir a esta geração europeia a responsabilidade de definir para sempre o modelo da Europa do futuro, de prever todos os mecanismos para uma União com 30 ou mais membros, como se não fosse mais do que provável que futuras Conferências Intergovernamentais venham a repensar, a curto ou a médio prazo, todo o modelo que, num certo tempo, se tenha julgado adequado à realidade de então.
Daí que haja uma primeira prevenção a fazer: não se queira aproveitar o próximo alargamento como argumento, e instrumento de oportunidade, para subverter alguns dos equilíbrios que vinham sendo mantidos. Convém que alguns Estados membros, muito em particular os de maior dimensão, não procurem utilizar o alargamento como pretexto para reforçarem o seu poder relativo no mecanismo decisório, o que é muito diferente do legítimo interesse de não verem diluída a fatia de poder de que hoje gozam. Ora o que parece estar a preparar-se é uma espécie de rectificação de contas “a posteriori”: apoiados na ideia de que os últimos alargamentos foram degradando o seu poder relativo, delapidando a posição de que alguns beneficiavam desde o Tratado de Roma, parece agora estar a gizar-se como que uma acção de retomada desse poder perdido, à luz de uma invocação de legitimidade que assenta maioritariamente no argumento demográfico. Se o debate for por aí, vamos com toda a certeza a caminho de uma crise política séria no seio da União.
Mas talvez valha a pena analisarmos estas questões por partes. Quais são os problemas, ditos de natureza institucional, com que a União se confronta nos dias de hoje ? Que tipo de disfunções é possível identificar ? Que desafios novos não é viável enfrentar com as actuais instituições e com o modo como elas actuam ?
A lista não é de todo pacífica, tanto mais que temos que somar as dificuldades actuais com os novos problemas previsíveis num futuro quadro de alargamento, embora, pelas razões apontadas, seja conveniente ter uma noção moderada da dimensão dessa abertura da União, isto é, a ideia de que não será expectável que haja, num cenário de 12/15 anos, mais do que 20 ou 21 Estados membros. Mas tentemos abordar tais questões uma-a-uma.
Começaria por dizer que há hoje um largo reconhecimento que o recurso às votações por maioria qualificada no âmbito do Conselho é um imperativo essencial de eficácia funcional da União. Com efeito, já na União a 15, e, por maioria de razão, numa União alargada, o processo decisório não pode continuar a estar refém da atitude de um qualquer país, atitude essa que pode nada ter a ver com a matéria que estiver em discussão mas, muito simplesmente, com a necessidade táctica de tornar a União prisioneira da vontade unânime, a fim de garantir lucros negociais noutro contexto (o comportamento britânico no caso da BSE é um exemplo flagrante). Isto sem discutir, por ora, a questão do chamado “interesse vital” e sem elucubrar sobre se o chamado compromisso do Luxemburgo permanece ou não em vigor.
Mas aceite o princípio de que a maioria qualificada deve ser a regra, a questão estará agora em saber-se que tipo de decisões devem ficar sujeitas à unanimidade, quer por um juízo positivo de subsidiariedade, quer por imperativos constitucionais de ordem nacional que continuem a impor-se. Convém, contudo, que tenhamos claro que o âmbito das decisões que se mantêm por unanimidade é hoje já muito restrito, particularmente se pensarmos que está previsto um quadro evolutivo no âmbito do Justiça e dos Assuntos Internos, o qual, a prazo, pode aumentar significativamente a lista de temas a sujeitar à maioria qualificada.
Mesmo assim, reconhece-se que temos que ir mais longe. Tudo indica que a União não será operacional se não procedermos, no futuro, a uma maior extensão da maioria qualificada. Tendo, porém, em atenção a relutância de alguns Estados em prescindirem da unanimidade em certos domínios, julga-se que deveria ser melhor explorado o sistema do estabelecimento de calendários de transição, segundo os quais algumas decisões continuariam a ser tomadas por unanimidade até determinada data, passando a partir daí a maioria qualificada, com ou sem cláusulas excepcionais de salvaguarda. É um método algo voluntarista, que introduz o factor tempo e possibilita uma adaptação gradativa.
É evidente que, neste domínio, restará sempre por resolver a questão das decisões de natureza institucional mais estruturante, aquilo que alguns designam mesmo como as questões para-constitucionais da União. O espaço de manobra é, aqui, muito mais limitado porque, como antes se disse, estamos por vezes perante matérias que, dentro dos Estados, constituem reservas de competência parlamentar própria e, em outros casos, se prendem a idiossincrasias difíceis de ultrapassar.
A nosso ver, este é o tipo de questões que só pode ser superado através de um processo de reforma institucional muito mais profundo, ligado a uma substancial alteração qualitativa do formato da União, que não cabe no modelo de reforma gradualista em que se baseia o quadro de negociação que tem vindo a ser seguido. Só um acto refundador da União, envolvendo não apenas os Governos, mais igualmente os Parlamentos Nacionais, poderia criar condições políticas para uma mutação institucional que permitisse tocar estas questões mais sensíveis. Mas, realisticamente, haverá actualmente condições para lançar este tipo de debate entre os Quinze, com um mínimo de exequibilidade ?
Ligado a esta questão da maioria qualificada está, naturalmente, o problema da co-decisão com o Parlamento Europeu. É hoje um dado adquirido que o Parlamento deverá poder pronunciar-se, em regime de co-decisão, em todos os casos de natureza legislativa em que o Conselho haja decidido por maioria qualificada. O Tratado de Amesterdão deu já, neste domínio, alguns passos significativos, ao conceder ao Parlamento a possibilidade de poder passar a pronunciar-se sobre um conjunto muito mais vasto de matérias. Somos de opinião que esta tendência é praticamente indiscutível e, por esta via, o âmbito de poderes do Parlamento Europeu ver-se-á, no futuro, ainda mais substancialmente reforçado. Convém, além disso, referir que a articulação Conselho-Parlamento ficou, nesta última Conferência Intergovernamental, muito mais simplificada, ao eliminar-se o chamado procedimento de consulta e ao reduzir-se o procedimento de cooperação apenas à área da União Económica e Monetária e, neste caso específico, pela razão formal de a Conferência ter assumido o compromisso de não tocar nas respectivas regras. Além disso, cremos que tem sido menos mencionada a evolução que se registou no próprio funcionamento da co-decisão, tornando-a mais fácil e operativa, dando ao Parlamento um maior poder ao garantir que, sempre que o Comité de Conciliação não aprove um projecto comum, a proposta de acto legislativo será considerada rejeitada.
Estas referências mais de pormenor destinam-se a evidenciar que os poderes do Parlamento Europeu foram, no quadro do Tratado de Amesterdão, bastante reforçados, o que nos parece ir na linha correcta de uma maior legitimação democrática das decisões. O caminho para a generalização da co-decisão é o caminho certo, embora muito provavelmente tenham, no futuro, de ser encaradas novas iniciativas em matéria de simplificação desse mesmo processo, que impeçam que o peso burocrático dos mecanismos acabe por afectar o fluir operativo da articulação entre as duas instituições.
Mas se as questões da maioria qualificada, e da correspondente co-decisão, são importantes, parece ser útil trabalharmos aqui um tema que lhes está a montante e que sempre se revelou de uma grande sensibilidade - o problema da ponderação de votos no Conselho.
Trata-se de uma questão que combina elementos de natureza operativa e dimensões que tocam de perto aspectos de simbologia predominantemente nacional. Teoricamente, os Estados são iguais no plano internacional, as soberanias equiparam-se e essa é a regra a respeitar. Mas é óbvio que, desde o início das instituições comunitárias, o poder dos diversos Estados membros no quadro decisional do Conselho foi diferenciado, num equilíbrio difícil de definir mas que, basicamente, reflectiu como que uma ponderação mais ou menos objectiva do seu poder - lido este numa perspectiva múltipla, que incorpora elementos demográficos, de peso económico e outros porventura não assumidos, entre os quais os contributivos não são os mais despiciendos.
Com os sucessivos alargamentos, o peso relativo dos maiores Estados no processo decisório acabou por sofrer alguma erosão e a possibilidade de esses Estados verem a sua gestão do orçamento e do processo legislativo bloqueada por minorias foi sendo agravada. Isto teve naturalmente a ver com a circunstância de se ter registado a entrada de países de menor dimensão que, não obstante não disporem de um poder de voto comparável ao dos grandes Estados, acabam, no plano teórico, por poderem conseguir dificultar, se conjugados, a formação de maiorias qualificadas susceptíveis de fazerem aprovar decisões.
Esta “pressa” que subitamente parece ter contagiado alguns Estados, no sentido de avançar na reforma institucional, tem, a nosso ver, uma justificação de oportunidade. Agora que a União se prepara para um alargamento sem precedentes, verifica-se que os maiores Estados da União sentem alguma urgência em proceder a uma reforma institucional prévia que evite que, através de uma simples extensão do modelo anterior, se acentue a tendência que tem prevalecido em seu desfavor.
Esta é a realidade formal que temos que enfrentar, ainda antes do próximo alargamento, como está previsto no próprio Tratado de Amesterdão. Aparentemente, a situação é compreensível e não há razão para que não nos mostremos abertos a considerá-la.
Mas vamos por partes e atentemos em algumas realidades.
Desde o Tratado de Roma que ficou fixado que os “grandes Estados” têm o mesmo número de votos. Tratou-se de um compromisso que foi prevalecendo, mas que nada obriga a que se mantenha. Por que razão se há-de hoje diferenciar Portugal da Suécia - Portugal com 5 votos, a Suécia com 4 votos - que têm entre si uma diferença de população de 1,5 milhões, e se há-se manter com igual número de votos a Alemanha e a Itália, que têm uma diferença de população de 24 milhões ? Se se disser que o argumento não é apenas demográfico, mas também de potencial económico e contributivo, então mais razões haveria para a Suécia estar mais próxima de Portugal. E, por maioria de razão, mais longe deveria a Itália ficar da Alemanha. Estas são algumas contradições que o actual sistema tem e que tornam difícil a sua abordagem em termos objectivos.
Uma segunda questão prende-se com o objecto das decisões. Todos nós podemos entender que haja uma diferenciada ponderação no processo decisório quando tratamos de matérias de natureza estritamente económico-social. A quantidade de população de um país como a Alemanha tem, muito naturalmente, que ser tomada em especial conta quando estamos a definir um qualquer regime que se aplica à generalidade dos cidadãos europeus e, num caso destes, é mais do que óbvio que o peso da vontade portuguesa na decisão final seja menor. Mas valerá a pena questionarmo-nos sobre se essa mesma desigualdade decisória, de raiz predominantemente demográfica, se justifica tão fortemente quando estão em causa temas de outra natureza, como as questões de Política Externa e de Segurança Comum ou de Justiça e Assuntos Internos. Note-se que, nestes casos, trata-se de áreas que sempre foram tidas como atributos essenciais da soberania do Estados e dos seus sistemas tradicionais de decisão autónoma e cuja partilha decisória, em termos europeus, não pode deixar de ter presente essa realidade essencial. Será legítimo que, numa votação sobre um qualquer tema de política internacional, o voto de Portugal e o de, por exemplo, a Espanha devam ser substancialmente diferenciados? E quem diz de Portugal e da Espanha, diz naturalmente de Portugal e da Finlândia.
O processo de ponderação de votos no Conselho, e as diferentes tendências que à volta dele existem, também não podem ser entendidos se não se perceber a natureza do que se está a tratar e o diferenciado posicionamento dos países nesse contexto. Vou tentar explicar o que me parece evidente, à luz do caso português.
Como é sabido, o processo de utilização do orçamento e da definição das grandes linhas de natureza legislativa parte da conjugação maioritária de interesses, as mais das vezes reflectindo o grau de desenvolvimento dos Estados. Assim, as prioridades de mobilização de fundos ou os requisitos que envolvem um determinado instrumento jurídico definem-se, numa lógica que é indiscutivelmente democrática, em torno de um padrão maioritário de interesses que, como disse, tem muito a ver com o grau médio de desenvolvimento económico, social e mesmo científico-tecnológico de cada país. Com o último alargamento - à Áustria, à Finlândia e à Suécia - o bloco mais desenvolvido dentro da União reforçou-se substancialmente e foi notório um deslocamento do padrão médio de interesses dentro da União. O novo padrão entretanto criado tem vindo a ser reflectido, nos últimos anos, de forma crescente nas propostas da Comissão Europeia e, de modo ainda mais claro, nas tendências de voto prevalecentes no seio do Conselho. Repare-se que não falamos necessariamente de um contraste entre grandes e pequenos países: há países de pequena ou média dimensão que estão perfeitamente protegidos nesse padrão maioritário e há países de maiores dimensões - como é frequentemente o caso da Espanha - que se situam no outro grupo.
Para os países menos desenvolvidos dentro da União, para aqueles que frequentemente se não revêem nesse novo padrão médio de interesses, o quadro decisório que daí deriva acaba por funcionar como um elemento de marginalização. Ao não ver acolhidas as suas preocupações naquilo que a União define como orientação, a tendência para a periferização acentua-se e a sua excentricidade agrava-se. No passado, o funcionamento da unanimidade, em muitos sectores, protegia esses Estados membros desse mesmo risco, obrigando à sistemática formação de compromissos no seio do Conselho e, a montante deste, à consideração pela Comissão dessas posições minoritárias na preparação das suas propostas. Com o alargamento das decisões por maioria qualificada esse cenário torna-se, como é compreensível, cada vez mais gravoso para os Estados que se situam à margem desses interesses centrais.
Acresce aqui um pormenor de que pouco se fala, mas que é importante ter em consideração. Como atrás se disse, a tendência prevalecente vai no sentido de submeter a co-decisão pelo Parlamento Europeu todas as decisões de natureza legislativa em que o Conselho decida por maioria qualificada. Sem que isto pareça uma provocação, gostávamos de deixar claro que esta maior intervenção do Parlamento Europeu funciona, na prática, como uma reponderação subliminar do poder decisório dos países. Para sermos mais claros: se uma determinada decisão é submetida ao Conselho, aí o peso de Portugal é de 5 votos e o de um país, como por exemplo a Alemanha, é de 10 votos. Trata-se de uma relação de 1 para 2. Mas logo que essa medida é submetida a co-decisão, estão presentes 25 deputados portugueses e 99 deputados alemães, logo uma relação de cerca de 1 para 4. Dir-se-á que nem sempre os deputados de cada país votam uniformemente. Isso, de facto, pode ocorrer, mas a tendência geral, naquilo que verdadeiramente importa, vai no sentido inverso: com o aumento de poderes do Parlamento Europeu, o trabalho dos “lobbies” nacionais é cada vez mais evidente e a lógica de funcionamento dos grupos políticos, que, no passado, marcou muita da prática do Parlamento, é hoje muito menos patente e decisiva.
É neste quadro de dificuldade de representação que deve ser entendida a relutância de um país como Portugal em se associar a mudanças no quadro da ponderação de votos que possam revelar-se dramáticas para a preservação dos seus interesses. É que há um limiar de representação no quadro do Conselho abaixo do qual é totalmente inoperativo funcionar, isto é, em que não há a possibilidade potencial de garantir que os tais interesses periféricos ou marginais podem ter uma tradução institucional suficientemente sólida para garantir a possibilidade de gerar uma minoria de bloqueio ou para forçar um compromisso que a evite. Esta é uma questão-chave para um país como Portugal.
Embora por razões opostas, é também neste contexto que deve ser entendida a importância atribuída por outros Estados à reforma da ponderação de votos antes do alargamento. Esses Estados, representados hoje confortavelmente no tal padrão médio de interesses que hegemoniza o orçamento e a produção legislativa, temem que o aparecimento de um grupo de Estados com um nível de desenvolvimento mais baixo - logo, também marginais face ao tal padrão médio de interesses - possa vir a revelar-se como um conjunto que, aliado aos países menos desenvolvidos da actual União a Quinze, venha a provocar minorias de bloqueio no processo decisório que hoje dominam.
As coisas são tão simples como isto - e não vale a pena ter quaisquer ilusões. Esta questão não releva de qualquer perversidade mas, pura e simplesmente, da natural projecção de interesses no seio da União. É que por vezes as pessoas esquecem que a União Europeia é uma união de representação de interesses nacionais que, pelo simples facto de estarem institucionalmente conjugados, representam em conjunto mais do que a soma das partes. É por isso que alguns afirmam, e bem, que na União Europeia, dois mais dois são bastante mais que quatro.
Mas porque essa representação de interesses nacionais é legítima, é natural que para ela tenhamos que encontrar uma acomodação institucional consensual. Julgamos que essa acomodação é possível, por uma de duas vias alternativas.
A primeira é um quadro de nova ponderação de votos que, com algumas rectificações, satisfaça minimamente o desejo de não degradação excessiva das posições dos maiores Estados. Essa reponderação deve, no entanto, partir do princípio básico de que qualquer alargamento traz naturalmente uma diminuição generalizada de poder de decisão e, na nossa perspectiva, tem de conformar-se à ideia de que não é possível aos maiores Estados recuperarem o seu poder originário.
A segunda alternativa tem uma raiz mais demográfica e é vulgarmente designada por dupla maioria. Nessa perspectiva, a distribuição de votos far-se-ia por uma projecção simples do modelo actual, passando no entanto qualquer maioria qualificada futura a necessitar de ser confirmada pela presença nessa maioria qualificada de um conjunto de Estados representando uma percentagem mínima de população da União.
Durante a última Conferência Intergovernamental mostrámo-nos abertos à consideração de qualquer destas hipóteses, dependendo naturalmente a nossa opção da forma real dos modelos que viessem a estar em discussão.
Como é sabido, o Tratado de Amesterdão prevê a possibilidade desta questão da ponderação votos ser articulada, antes do alargamento, com a questão da dimensão da Comissão Europeia, caso o primeiro dos próximos alargamentos não incorpore mais do que cinco países. Nesse caso, os cinco Estados membros que hoje designam dois Comissários passariam a indicar apenas um mas, em contrapartida, ver-se-iam reforçados na ponderação de votos no Conselho.
Embora este compromisso não seja um bom sinal para a independência da Comissão - o “trade-off” entre o Conselho e a Comissão revela, à evidência, a importância da “representação” nesta dos Estados membros - é, pelo menos, uma via para a recuperação da equidade da presença de nacionais dos Estados dentro da Comissão, o que parece ir no bom sentido, pelo menos enquanto a Comissão Europeia tiver a sua actual natureza.
Esta questão, no entanto, se bem que adie o problema da dimensão da Comissão, não resolve o problema central desta instituição que, em nossa opinião, tem uma dupla natureza: de responsabilidade e de legitimidade. Ambas as dimensões são um factor que diminui seriamente a perspectiva de atribuição de poderes acrescidos à Comissão - e este é, a nosso ver, um aspecto central de toda a questão do funcionamento da União.
A responsabilização da Comissão, após a sua designação, é hoje meramente formal. Aquando da crise da BSE, verificou-se que os mecanismos susceptíveis de serem utilizados para sancionar a Comissão eram demasiado radicais para serem exequíveis e hoje há que interrogarmo-nos sobre se, mais cedo ou mais tarde, não teremos que encarar a questão da responsabilização individual dos Comissários. Esta é uma questão muito sensível, por poder ter como consequência uma deriva no sentido de uma maior docilidade dos Comissários perante quem eles individualmente venham a responder, seja o Presidente da Comissão, seja o Parlamento Europeu - já que não é concebível que o sejam perante o Conselho. Mas é um problema a estudar com alguma urgência.
Este problema liga-se igualmente ao papel do Presidente da Comissão. Este foi reforçado ligeiramente no Tratado de Amesterdão e essa decisão talvez tenha derivado da leitura negativa que hoje se faz do funcionamento da actual Comissão, onde, presumivelmente pela ausência de um poder formal de firme coordenação atribuído ao respectivo Presidente, se verifica como que a existência de políticas autónomas e pessoais por parte de alguns Comissários. Esta é uma situação intolerável e que, em lugar de reforçar a Comissão, a fragiliza ainda mais perante as opiniões públicas dos Estados membros, motivando os respectivos Governos a serem restritivos quanto à atribuição de mais poderes a uma instituição que parece não responder perante ninguém.
E aqui entronca uma questão de legitimidade. Repare-se que, ao contrário da perspectiva mais vulgar, ao olhar para a Comissão devemos ver para além das árvores, que o mesmo é dizer, para além dos Comissários. Por detrás destes está toda uma estrutura em que a representação de origem nacional está rigorosamente estabelecida por quotas informais, com desequilíbrios bem pronunciados em favor, não apenas dos grandes Estados, mas igualmente de países centrais da União. Esta é um situação de facto, com que temos que viver, e na qual é necessário inserir a nossa acção quotidiana. No caso português, acresce que a filosofia que presidiu a opções concretas tomadas imediatamente após a adesão - e cuja bondade de intenções não cabe agora julgar - conduziu a resultados, em termos de distribuição de pessoal, que hoje não temos dúvidas em afirmar que dificultam seriamente a defesa de alguns dos nossos interesses essenciais. Mas isso é uma história para contar noutra altura.
Dito isto, retirar-se-á uma conclusão que a muitos parecerá contraditória. Em nossa opinião - uma opinião que apenas compromete o autor deste texto - não é possível dar uma perspectiva de futuro à União, que incorpore uma acrescida integração, sem se caminhar no sentido de um reforço dos poderes da Comissão. Esse reforço só poderá, contudo, ter lugar se e quando a Comissão vier a ser sujeita a um modelo de responsabilização firme, rigoroso e eficaz. Não vale a pena ter no Tratado “bombas atómicas”, como a demissão total do conjunto dos Comissários, quando todos sabemos que a possibilidade de tal ter lugar é meramente teórica. Há que criar sanções de dimensão mais moderada e que, por essa via, possam ser mais eficazes.
Tal como a questão da ponderação de votos, também o problema da designação dos Comissários tem uma dimensão simbólica que não é possível contornar, pelo menos nesta fase da vida da União. Com efeito, a experiência da última Conferência Intergovernamental provou que nenhum dos Governos de Estados de pequena ou média dimensão, por maior que fosse a sua abertura nomeadamente a modelos federais, tinha condições de poder prescindir, ainda que temporariamente, do direito de designar um elemento para o colégio de Comissários. Entre nós, todos estarão lembrados da famigerada história da rotação dos Comissários e do modo como alguns sectores reagiram à simples evocação dessa possibilidade.
Mas porque essa sensibilidade permanece, afigura-se irrealista e inexequível a aventada proposta de criar uma Comissão de 10 ou 12 Comissários, teoricamente desligados dos países de origem. Prosseguir agora na sua discussão não tem qualquer sentido, o que não significa que não tenhamos que pensar, numa perspectiva de médio prazo, em limites para o alargamento da Comissão. Aliás, o que ficou estabelecido em Amesterdão vai já nessa linha, ao fixar um quadro de 20 comissários como o único compromisso aceitável neste estádio da discussão.
Referimos as três instituições centrais: o Conselho, o Parlamento e a Comissão. Não referimos o Tribunal de Justiça, nem órgãos como o Tribunal de Contas, o Comité das Regiões ou o Comité Económico e Social. Isso deve-se à circunstância, constatada durante a última Conferência Intergovernamental, de que as questões de natureza institucional que verdadeiramente importam pouco têm a ver com estas estruturas e que nada de essencial está em causa, quer no respectivo modelo de funcionamento actual, quer no seu posicionamento no quadro interinstitucional. Isso não exclui que futuras Conferências Intergovernamentais não venham a abordar, de novo, o respectivo quadro de competências e a debruçarem-se sobre algumas propostas para a respectiva reforma.
Alinhar-se-ão de seguida cinco notas breves, sobre outras tantas questões de natureza institucional. São pistas de reflexão, assentes em inventários de problemas, mais do que em respostas concretas. Mas é esse o espírito de um texto que se destina a provocar a reflexão.
A primeira nota diz respeito a um tema que não tem a ver com alterações ao Tratado, mas que é de importância central na funcionalidade da União. Refiro-me ao caótico estado organizativo da coordenação feita pelos Conselhos “Assuntos Gerais” e pelo Conselho “Mercado Interno”. Estes dois Conselhos de Ministros, de natureza horizontal, estão hoje mergulhados em agendas sem sentido, desmotivadoras da presença dos ministros, o que acaba por os transformar, no primeiro caso, em pouco mais do que um Conselho PESC (em que o que é importante se discute exclusivamente durante o almoço e quase sempre sem sentido decisório) e, no segundo caso, numa espécie de fórum acompanhador das medidas de simplificação do mercado único. O papel coordenador horizontal destes Conselhos parece ter-se perdido por completo e vive-se hoje um tempo de actuação desgarrada dos vários formatos sectoriais do Conselho.
A segunda questão prende-se com o papel dos Parlamentos Nacionais. O novo Tratado comporta um Protocolo sobre esta matéria, mas com um âmbito que fica muito aquém daquilo que se me afigura ser o modelo necessário para uma possível organização, à escala comunitária, dos diversos parlamentos nacionais. É óbvio que a diferenciada tradição de projecção externa dessas assembleias não favorece a descoberta de um formato comum de representação, o que é provado pela dificuldade que a própria COSAC tem em definir tal modelo de intervenção. Mas não é menos verdade que a crescente atenção que, a nível nacional, se concede às matérias europeias e o contínuo debate em torno dos limites da subsidiariedade vão, com toda a certeza, despertar cada vez mais a atenção destes parlamentos e aumentar a vontade para uma projecção comum. Resta saber de que modo é possível realizar tal projecção sem, por um lado, tornar mais pesado e sinuoso o mecanismo de decisão comunitário e, por outro lado, sem criar um conflito de competências com a esfera própria do Parlamento Europeu.
A terceira questão prende-se com a possibilidade de começarmos a reflectir sobre os modelos futuros cooperação reforçada, isto é, os mecanismos de natureza institucional susceptíveis de enquadrarem uma adesão diferenciada às políticas da União. Alguns dirão que é cedo, que se trata de um terreno perigoso e que pode ser disruptor do próprio tecido da União estar a estimular um domínio que, em princípio, pode romper a sua própria homogeneidade. Não pensamos que esse seja, necessariamente, um debate inconveniente. Temos uma leitura da cooperação reforçada que não é necessariamente negativa, tanto mais que, naquilo que ficou consensualizado em Amesterdão, ficaram fixadas cláusulas de salvaguarda que nos parece suficientes, e para a definição das quais o nosso país julga ter dado uma contribuição decisiva. A mensagem que aqui deixamos é simples: se bem aproveitada, a cooperação reforçada poderá revelar-se um modelo interessante para resolver alguns dos problemas que todos teremos de enfrentar no próximo alargamento.
A quarta questão é algo que se nos impõe, mas para que também não temos ainda resposta. Referimo-nos às consequências de natureza institucional que derivarão da passagem à terceira fase da União Económica e Monetária. Cremos que não se poderá deixar fluir esta questão ao sabor dos ventos do futuro, encarando as soluções à medida que os problemas surjam. Temos que nos saber antecipar e começar a lançar, desde já, um debate sereno sobre todas as implicações que se presume possam ocorrer por virtude da introdução do Euro, da maior coordenação das políticas económicas e de emprego, para não falar de outras colaterais que o bom senso aponta como inevitáveis. Começar a discutir estas questões, nomeadamente a nível nacional, é condição para desdramatizar desde o início este debate, o que nos parece imperativo, se não queremos ser confrontados mais tarde com uma pressão externa para a qual temos que fazer um esforço nacional de convicção muito difícil e apressado.
A quinta e última questão pode ser lida num registo simultaneamente egoísta e provocatório. Sem negar qualquer deles, acrescentar-lhes-íamos também um registo de realismo. Referimo-nos, em geral, à questão da posição dos novos aderentes da União face à reforma institucional de que atrás falámos. Todos sabemos que a decisão sobre os modelos institucionais futuros terá que ser tomada a Quinze, isto é, as regras que enquadrarão o alargamento do “clube” competirá sempre aos actuais sócios. Por outro lado, os novos países aderentes têm, por ora, outras prioridades: garantir avanços nos seus processos negociais de adesão, fixar os regimes transitórios ou derrogatórios que se lhes aplicarão e, finalmente, obterem a garantia política de uma data para a adesão efectiva. O que nos interrogamos é se, chegado o momento em que essa adesão esteja garantida e calendarizada, e se esse momento coincidir com a discussão prevista para a nova reforma institucional, não poderá haver nesses países a tentação, em tudo legítima, de procurar fazer ouvir a sua voz no processo de revisão das instituições que decorre em paralelo, no âmbito dos seus futuros parceiros . Ou serão as opiniões públicas desses países indiferentes à ponderação de votos que lhes vai ser por nós atribuída e às regras sobre a representação na Comissão que irão ser-lhes, também por nós, impostas ? Não é esse processo de revisão institucional justificado precisamente pela sua própria entrada para a União ? Não será mais do que legítimo que a sua opinião, ainda que não vinculativa, seja ouvida ? Não foram Portugal e a Espanha associados à discussão sobre o Acto Único, ainda antes da sua adesão efectiva ? Perguntamo-nos se, respeitando um espírito de parceria, será legítimo mudar as regras de um jogo sem, ao menos, ouvir uma das equipas que está para entrar em campo. E porque não utilizar a Conferência Europeia para o alargamento para esse exercício ? São questões que ficam para um debate que, no entanto, sabemos que é tudo menos popular dentro da União a Quinze.
Para terminar, pensamos dever formular um voto de que seja possível relançar em Portugal, sem temores mas também sem equívocos, uma séria e muito aberta reflexão sobre os modelos institucionais da União do futuro. Um debate em que se devem também afastar os fantasmas, em que há que não ter medo às palavras - a palavras como integração, como comunitarização, como aprofundamento e, mesmo, como federalismo. Temos a obrigação de fazer entender aos Portugueses que só têm a ganhar com o avanço para modelos cada vez mais integrados, provavelmente muito diferentes daqueles que o passado testou noutros cenários, mas modelos que fujam ao carácter híbrido daquele em que actualmente vivemos - esse sim, como tentámos provar, gerador de fórmulas de “directório” em que os mais fracos, como infelizmente nós somos, nada têm a ganhar. Dizia alguém, noutro contexto, que os proletários só tinham a perder as suas próprias cadeias. Nós diríamos que os países mais pobres só têm a perder, no projecto europeu, a sua própria fraqueza.
(Publicado na “Política Internacional” (nº 17, 1998). Baseado na comunicação apresentada ao seminário internacional “Reforma institucional e Democratização da União Europeia”, organizado pela Fundação Mário Soares e pela Fundação Friedrich Ebert, Lisboa, em 13 de Maio de 1998)
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