Quero começar por agradecer o convite que me foi formulado pela direcção do Hospital de D. Estefânea para estar aqui presente hoje.
A ideia desta palestra surgiu de uma conversa com o Dr. José Augusto Antunes, que me disse que poderia ser interessante eu poder dar-vos conta de aspectos ligados aos mais recentes esforços multilaterais para atenuar os impactos dos conflitos armados na situação das crianças, no plano mundial.
Este é um tema que diariamente está presente nas nossas televisões, fazendo parte da nossa paisagem informativa.
Mas é precisamente por essa razão que ele acaba por se banalizar, criando-se a ideia que é um estado natural da vida de algumas sociedades e regiões, contra o qual é difícil lutar.
Eu diria, num parêntisis, que a atitude de muitos de nós ao entendermos que certas regiões do mundo, e, em especial, certas sociedades em vias de desenvolvimento, são terreno normal para certas patologias políticas, tidas quase por endémicas, configura uma espécie de racismo não assumido.
Importa notar que a consciência da importância e da dimensão deste problema está hoje criada nas instituições internacionais e em meios organizados da sociedade civil, nomeadamente em ONG’s.
Isso não significa, contudo, que se tenha já criado uma dinâmica de denúncia pública do problema com impacto real na sua respectiva resolução.
Aproveitando a minha anterior experiência como Representante Permanente de Portugal junto das Nações Unidas e, em especial, o facto de ter chefiado uma delegação portuguesa a uma reunião promovida no ano passado em Nova Iorque sobre o tema, colectei alguns elementos que julguei de interesse para enquadrar o problema e estimular algum debate.
Quero,porém, advertir que não se trata de elementos de informação inéditos, mas sim de uma recolha crítica de dados públicos.
Não gostaria de começar por um lugar comum, mas não é evitável referir que, sendo as crianças um grupo muito frágil em todas as sociedades, a sua exposição às consequências dos conflitos armados reveste-se de aspectos particularmente gravosos, que não estão presentes em qualquer outro grupo humano.
Convirá enquadrar esta temática de forma tão directa e simples quanto possível.
Estamos a falar de direitos, em particular de Direitos Humanos, e de uma matéria que tem de ser considerada no campo das questões internacionais de paz e segurança, que estão ligadas indissoluvelmente às questões de desenvolvimento colectivo.
Vale a pena ter presente que todos os não combatentes devem, segundo as leis internacionais, ser objecto de protecção face aos conflitos armados, mas que é óbvio que as crianças são um grupo particularmente vulnerável e que está menos equipado para se adaptar ou para responder a uma situação de conflicto.
As crianças, que são seguramente as menos responsáveis pelos conflitos, acabam sempre por sofrer desproporcionadamente dos seus efeitos.
Vou começar por fazer uma curta citação de um relatório de 1996, elaborado por um grupo de trabalho chefiado por Graça Machel, e que serviu de “pontapé de saída” para muito do que se fez desde então neste domínio.
Dizia o relatório: “Milhões de crianças são envolvidas em conflitos dos quais não são meros espectadores, mas sim alvos. Algumas acabam por ser vítimas de massacres que atingem populações civis em geral; outras morrem como parte de genocídios planeados. Outras crianças, ainda, sofrem os efeitos da violência sexual e das múltiplas privações decorrentes dos conflitos armados, que as expõem à fome ou à doença. E, de uma forma igualmente chocante, milhares de jovens são cinicamente explorados como combatentes.”
Julgo que dificilmente seria possível resumir de forma mais sintética as várias dimensões deste problema.
Os números
Como se compreende, as avaliações quantitativas sobre esta temática são muito pouco rigorosas e a tentação de jogar com grandes números, para dramatização do problema, é óbvia.
Mas vale a pena citar algumas estimativas conservadoras: elas apontam para que cerca de 2 milhões de crianças hajam perdido a vida em conflitos nas última década, com provavelmente o triplo deste número (isto é, cerca de 6 milhões) a sofrer sequelas ou incapacidades permanentes, com especial relevância para a questão das minas anti-pessoal.
Do mesmo modo, cerca de um milhão de crianças ficaram orfãs por virtude de conflitos armados também durante os últimos 10 anos.
De acordo com as avaliações das Nações Unidas, há hoje para cima de 20 milhões de crianças deslocadas dos seus locais de origem, seja como refugiados noutros países, seja como deslocados dentro do mesmo país (IDP’s).
Os números relativos à utilização operacional das crianças nas forças de combate são também impressionantes: estima-se que cerca de 300 mil crianças (e o conceito de criança aplica-se aqui a menores de 18 anos) continuem ainda a fazer parte de forças armadas, na maioria dos casos de grupos irregulares.
As estatísticas apontam também para que cerca de 800 crianças sejam mensalmente vítimas de minas anti-pessoal, com graus diversos de incapacitação.
Os últimos estudos da ONU, já de 2003, apontam para a existência de 23 partes em conflito armado, alguns dos quais governos de Estados soberanos, que continuam a utilizar crianças em actividades operacionais.
Por forma a terem uma visão mais completa do problema, julgo que poderá ser útil eu fazer referência segmentada a todo este problema, sublinhando as suas principais dimensões.
Basear-me-ei muito na tipificação seguida pelo relatório de Graça Machel, complementado por outros elementos mais recentes, quer das Nações Unidas, quer de ONG’s.
As crianças como soldados
Começaria pelo recrutamento de crianças como soldados.
Desde sempre na história, as crianças foram envolvidas nas acções militares ou para-militares.
As actividades de natureza logística terão predominado nesse envolvimento, mas a sua integração nas acções militares esteve presente em muitos conflitos.
O recrutamento das crianças como soldados oferece vantagens ao seus promotores porque, como se referre num relatório internacional, “são mais obedientes, não questionam ordens e são mais fáceis de manipular do que os soldados adultos”.
A maioria são adolescentes, mas há muitos casos registados de crianças a partir dos 10 anos, quando não mais novas.
A maioria são rapazes, mas há bastantes casos de raparigas.
A origem social que prevalece é óbvia: famílias pobres, grupos sociais marginalizados e, em especial, crianças separadas das suas famílias de origem.
As formas de recrutamento variam: vão desde a forma regular de alistamento de milicianos até aos modelos forçados de recrutamento, que podem incluir a pressão familiar ou grupal ou mesmo a violência, nomeadamente o rapto.
Casos há em que as crianças são recolhidas nas ruas, nas escolas ou nos orfanatos.
Note-se que a esmagadora maioria das legislações nacionais prevê os 18 anos como idade mínima para o alistamento militar, mas isso nem sempre é cumprido e, em alguns países em vias de desenvolvimento, os registos de nascimento são muito deficientes, o que dá abertura muito fácil para abusos.
Ainda no tocante ao recrutamento dito voluntário, é necessário notar que muitas crianças aderem a grupos ou forças armadas por situações de extrema pobreza e como meio de terem roupa, comida e assistência.
Por outro lado, a circunstância das crianças não estarem enquadradas pelo sistema educativo facilita a sua disponibilização.
Um ponto a notar é o facto das crianças, como forma de autoprotecção em terrenos de elevada conflitualidade, serem frequentemente tentadas a ter uma arma nas mãos.
Estar armado pode também ser um factor simbólico de prestígio grupal e um meio de obtenção de algumas vantagens económicas, em acções de roubo, pressão ou chantagem.
Verifica-se também a bipolarização no recrutamento: pressionadas a integrar exércitos regulares, as crianças optam por vezes por fazer parte de grupos militares do tipo guerrilha, que se opõem aos governos e que têm apoio popular.
Outras vezes fazem-no como reacção a violências cometidas sobre os pais.
Há também que contar com o factor ideológico: as crianças, num período em que estão a desenvolver a sua identidade pessoal, procuram agarrar-se a objectivos com dimensão colectiva, cuja adopção os pode fazer obter respeitabilidade do grupo.
Estão neste caso causas sociais, formas de expressão religiosa e lutas de autodeterminação ou de libertação nacional.
Em alguns casos isto levou ao fanatismo, ao simplismo ideológico e até à martirização, como bombistas suicidas.
Depois de recrutadas, a experiência mostra que as crianças têm geralmente o mesmo tratamento que os seus camaradas adultos, competindo-lhes frequentemente trabalhos de transporte, logística de rotina de aquartelamentos, acções de guarda e funções de portadores de mensagens.
Algumas das funções atribuídas às crianças, como correios de mensagens ou vigilância, mas também colocação de explosivos ou pequenos “golpes de mão”, colocam-nas, por vezes, em risco mais elevado do que aquele que é assumido por soldados adultos.
A sua inexperiência técnica e a escassa avaliação do perigo potencia esse mesmo risco, particularmente nos mais novos.
A utilização do álcool e de drogas para estimular o seu empenho em certas situações de elevado risco foi também registada.
Verificam-se casos em que as crianças assistem ou participam em cenas de grande violência (fuzilamentos, torturas, etc), com vista a induzir-lhes uma atitude similar.
Há elementos que permitem concluir que as crianças podem, nestas circunstâncias, vir a titular actos de extrema atrocidade.
As raparigas recrutadas têm normalmente tarefas de natureza doméstica (gestão de acampamentos, cozinha, lavagens de roupa, etc.) e prestação de serviços sexuais.
No termo dos conflitos, raramente o anterior recrutamento de crianças é reconhecido.
No caso da Renamo, por exemplo, cujas tropas incluiam imensas crianças, nada ficou expresso nos acordos finais especificamente destinado a enquadrar o seu regresso à sociedade civil.
Esta é, aliás, uma das directrizes do trabalho actual das organizações internacionais neste domínio: tentar conseguir o reconhecimento no termo dos conflitos das situações que envolvam as crianças, por forma a garantir uma planificação e uma programação do seu reenquadramento.
A maioria das crianças que estão sujeitas ao recrutamento militar cresceram entretanto, foram separadas das suas famílias e foram privadas das oportunidades normais de desenvolvimento físico, emocional e intelectual.
Raramente há condições para uma reintegração familiar, até porque as condições das famílias são quase sempre de grande precariedade no final dos conflitos.
Daí que haja necessidade de apostar na educação e formação profissional acelerada, com a necessidade de prever cursos específicos com apoio de entidades externas.
Em várias sociedades africanas verifica-se uma rejeição muito forte no tocante à integração de crianças ex-combatentes, pelos efeitos disruptores que tal pode ter no equilíbrio dessas sociedades.
O caso das raparigas que foram violadas ou abusadas sexualmente é particularmente complexo, dado o confronto com os padrões culturais tradicionais e as dificuldades de casamento.
A deriva para a prostituição tem sido, neste caso, um caminho vulgar.
Veremos adiante o que tem sido feito para prevenir ou contrariar as acções de recrutamento de crianças soldados.
Mas é óbvio que aqui estaremos sempre confrontados com duas realidades muito diferente: de um lado, os Governos, cuja ânsia de credibilidade pode ser utilizada pela comunidade internacional e podem ser sujeitos a pressões, e, por outro, os grupos armados, naturalmente menos sensíveis ao “politicamente correcto”.
Crianças refugiadas ou deslocadas
Uma segunda questão prende-se com as crianças refugiadas ou deslocadas.
Os conflitos armados da últimas décadas, em especial em África e na Ásia, provocaram imensas deslocações de populações, quer no âmbito interno dos Estados (os chamados IDP’s), quer para Estados vizinhos, como refugiados.
Há hoje cerca de 25 milhões de refugiados e cerca de 30 milhões de IDP’s, dos quais cerca de metade são crianças, o que resulta em cerca de 27 milhões de crianças deslocadas dos seus locais de origem.
Estas deslocações de populações têm um efeito muito desproporcionado sobre as crianças, por representarem traumas, rupturas e sacrifícios em períodos cruciais das respectivas vidas.
Para além dos efeitos das acções violentas, as crianças deslocadas estão sujeitas a privações a que são particularmente vulneráveis, em matéria de alimentação, alojamento, saúde, instabilidade psicológica e familiar, etc.
Durante as suas deslocações forçadas, as crianças e as sua famílias estão sujeitas a ataques violentos da vária natureza, confrontam-se com o perigo das minas anti-pessoal, são obrigadas a deslocar-se a pé por longos períodos, com escassas quantidades de comida e água.
A subnutrição abre caminho fácil às doenças, pelo que as crianças nestas condições têm uma esperança de vida ainda inferior à que normalmente teriam.
De acordo com as estatísticas, as primeiras semanas de deslocação são as mais mortíferas, com diarreias, infecções respiratórias agudas, malária e subnutrição a serem responsáveis por 60 a 80% das mortes.
As deslocações de populações fazem ainda aumentar o número de crianças não acompanhadas, isto é, sem um adulto sob cuja responsabilidade o seu quotidiano se processe.
A insegurança física e emocional destas crianças é, como se compreenderá, muito maior, ficando à mercê da mais elementar falta de atenção, mas igualmente de violência, de recrutamento militar ou de abuso sexual.
Muitas vezes, estas situações decorrem da própria decisão dos pais de fazerem evacuar as crianças de locais de conflito agudo, como aconteceu na Bósnia-Herzegovina, ou mesmo de emergências médicas promovidas por instituições nacionais ou internacionais.
O problema da recuperação da documentação e o restabelecimento das ligações às famílias de origem é, neste caso particular, uma das grandes preocupações da comunidade internacional.
No quadro das deslocações de populações, a atenção da comunidade internacional tem vindo também a voltar-se para as situações decorrentes da presença das crianças no campos de refugiados.
Com efeito, tratando-se de ambientes naturalmente mais protegidos, estes campos não deixam frequentemente de criar problemas muito específicos, resultantes de lutas de poder, com elevados graus de violência, envolvendo alcool, drogas, abuso sexual, exploração económica, etc.
A tensão conflitual entre hierarquias provoca um ambiente de grande tensão, a que as crianças se tornam muito vulneráveis.
Isto é particularmente evidente nas distribuições de comida, roupa, água, aquecimento – onde se criam circuitos e cadeias informais de poder, com abusos, chantagens e favores sexuais.
Vale a pena notar que está provado que as situações de deslocação no seio do país de origem acabam por agravar os riscos, se as compararmos com as de refugiados em países vizinhos.
Com efeito, a proximidade das situações de conflito cria normalmente piores condições de vida dado que os focos de tensões (étnicas, religiosas, políticas ou outras) estão mais presentes.
A provar isto estão os números: a taxa de mortalidade de IDP’s é 60% mais elevada do que em caso de refugiados em países próximos.
Exploração sexual das crianças nas situações de conflito
Um terceiro ponto que desejo focar prende-se com a explotração sexual.
De acordo com o relatório de Graça Machel, de 1996, “as violações são uma ameaça constante para as mulheres e raparigas durante os conflitos armados, do mesmo modo que outras formas de violência baseadas no género, tais como a prostituição, as humilhações sexuais e a mutilação, o tráfico e a violência doméstica”.
As adolescentes são um grupo e uma faixa etária com um risco particular, tanto mais que são tidas com probabilidade maior de não serem portadoras de doenças sexualmente transmissíveis.
Embora a violência neste domínio afecte , em prioridade, crianças do sexo feminino, estão registados muitos casos de adolescentes do sexo masculino sujeitos a violências sexuais.
E não é preciso irmos a África ou à Ásia para encontrar estes casos: os recentes conflitos nos Balcãs apresentaram várias destas situações de violência sexual de adolescentes masculinos, com actos chocantes de violência e sadismo.
Como é evidente, a pobreza, a fome e as situações de desespero decorrentes das guerras são factores que forçam mulheres e raparigas à prostituição, em troca de alimentação e abrigo, de acesso a determinadas zonas ou obtenção de privilégios para si ou para as suas famílias.
Crianças são igualmente objecto de tráfico, trabalhando forçadamente em prostíbulos, muitas vezes por iniciativa dos pais, em situações limite de desespero económico.
Casos há em que estas crianças acabam por prestar favores sexuais em troca da protecção das suas próprias famílias, nomeadamente face a grupos irregulares de guerrilha em zonas rurais.
Mas também, há que dizê-lo, a atenção da comunidade internacional começa a voltar-se para a acção neste domínio das forças de manutenção de paz.
Cada vez há mais relatos de abusos sexuais cometidos por forças sob mandato internacional.
Parece um contrasenso, mas a verdade é que os que são supostos vir a criar as condições para o restabelecimento da paz acabam por explorar as vítimas da guerra.
Outras dimensões
De forma muito breve, referir-me-ei a cinco outras dimensões dos efeitos dos conflitos armados sobre as crianças:
- a exposição a minas anti-pessoal, a explosivos vários decorrentes de conflitos e a proliferação de armas de pequeno calibre. Só um número: há mais e 120 milhões de minas por explodir em cerca de 70 países.
- as políticas internacionais de sanções. É hoje uma questão do passado, mas as lições aprendidas, por exemplo, no caso do Iraque justificam que a comunidade internacional, e em especial a ONU, revejam os mecanismos gerais de sanções e procurem isentar as crianças dos seus efeitos.
- as questões de saúde e nutrição. Milhares de crianças morrem todos os anos como resultado directo dos conflitos, por armas brancas, balas, bombas ou minas, mas muitas mais morrem por falta de nutrição ou doenças potenciadas pelos conflitos. A interrupção dos circuitos alimentares, a destruição das colheitas e das infraestruturas agrícolas, a destruição dos serviços de saúde e a precariedade dos sustemas sanitários e de abastecimento de água são factores potenciadores da morte das crianças. A prioridade às estruturas de saúde e de circuitos específicos para ajuda aliementar às crianças nos conflitos deve tornar-se uma prioridade. A questão dos “corredores humanitários” e dos “dias de tréguas” deve ser abordada de modo formal pela comunidade internacional.
- a questão da recuperação psicológica e reintegração. Recuperação dos valores das suas sociedades (“role models”); pessimismo, depressão, suicídio. Perca de objectivos pós-conflito, com desaparição de famílias. Tradicionalmente deixados sem atenção.
- as questões da educação e formação profissional pós-conflito. Manter estruturas de educação; educação nos campos de refugiados;
O que está feito e o que se está a fazer
Perante este panorama, cuja dimensão de tragédia não é demais salientar, importa tentar definir, em linhas gerais, o que tem sido feito e o que está em curso.
As bases jurídicas essenciais em que se fundamenta esta luta são conhecidas: as Convenções de Genebra (de 1949) e os seus protocolos, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, que entrou em vigor em 1990 e, finalmente, o Protocolo Opcional desta última Convenção, sobre a protecção de crianças vítimas de guerra, que entrou em vigor em Fevereiro de 2002.
Há ainda outros instrumentos, tais como Convenções, resoluções e diversos tipos de compromissos de natureza internacional ou regional.
Mas é óbvio que não é por falta de instrumentos jurídicos que as soluções não são encontradas.
É por falta de vontade política, ou melhor, por falta de vontade para acções positivas de ordem política que forcem as partes responsáveis a alterar o seu comportamento.
Os avanços são muito lentos, como Graça Machel reconheceu no ano passado, com a autoridade que lhe advém da qualidade da sua contribuição para a sistematização do assunto em 1996.
Nunca é demais sublinhar a relevância deste estudo, intitulado “O impacto da guerra nas crianças”, que foi como um “murro no estómago” da comunidade internacional.
A consciência internacional para o problema cresceu a partir de então, com as agências das Nações Unidas, vários governos e ONG’s a mobilizarem-se.
As ONG e a defesa da Crianças perante os conflitos armados
No contexto desta mobilização internacional, creio de justiça salientar o excelente trabalho desenvolvido por um conjunto de ONG’s dedicadas às crianças, que criaram a “Watchlist on Children and Armed Conflict”, destinada a responder à necessidade de uma monitorização e informação sobre as situações, com vista ao desencadear de alertas rápidos e acções de acompanhamento durante e após os conflitos armados.
A “Watchlist” fornece aos decisores políticos informação quantificada e qualificada em tempo muito curto, com análises estratégicas e recomendações práticas, nomeadamente para orientar o trabalho das Nações Unidas e das suas agências.
Esta “Watchlist” funciona ainda em conjugação com outras redes temáticas de ONG’s, dedicadas a áreas como as armas ligeiras e de prequeno calibre, as minas anti-pessoal e as crianças soldados.
Fornece também dados como os impactos das situações nas vidas das crianças, incluindo saúde, HIV/SIDA, refugiados e IDP’s, tráfico e exploração, violência baseada no género, etc.
Vários importantes relatórios têm saído do trabalho da “Watchlist”, nomeadamente sobre o Afeganistão, o Burundi e Angola, havendo compilação de dados sobre a situação palestiniana, Israel, Sudão e RD Congo.
Aspectos mais recentes do trabalho das Nações Unidas
Nunca é demais notar que as Nações Unidas têm tido um papel pioneiro nesta matéria.
Em 1997, o Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, criou um Representante Especial para as Crianças no contexto dos Conflitos Armados (Olara Otunnu).
Esta figura tem como mandato sensibilizar e mobilizar os diversos actores internacionais, de natureza nacional, regional ou internacional, para este problema, em todas as suas dimensões.
A acção deste Representante Especial tem sido intimamente articulada com o trabalho da “Watchlist” de que falei.
Além disso, o Conselho de Segurança tem-se pronunciado amplamente sobre o assunto, considerando a protecção das crianças um ponto essencial para a promoção e manutenção da paz e da segurança internacionais.
Em Setembro de 2002, a primeira Conferência Internacional sobre Crianças Afectadas pela Guerra teve lugar e, desde então, houve já alguns progressos concretos em áreas como a educação em situações de emergência, proliferação de armas ligeiras e de pequeno calibre e o tema das crianças soldados.
É forçoso reconhecer que a questão das crianças está hoje no centro da agenda internacional de paz e segurança, tendo o Conselho de Segurança da ONU aprovado no passado resoluções muito importantes sobre a matéria.
Já em Janeiro deste ano, o Conselho de Segurança aprovou uma nova e importante resolução sobre o assunto.
Alguns se perguntarão para que serve este tipo de resoluções.
É preciso ter consciência da natureza, eu diria, “paciente” das resoluções da ONU, em particular do seu Conselho de Segurança.
A vida multilateral funciona por pequenos passos, por avanços de linguagem, pela consensualização progressiva de certos conceitos, aparentemente teóricos mas, na realidade, com impacto em acções concretas no futuro, que se reivindicam desses acordos para obrigar os Estados a certo tipo de compromissos, nomeadamente na adaptação da sua legislação interna ou das opções orçamentais.
Além disso, a vizualização e o apontar do dedo aos Estados em incumprimento tem tido consequências positivas e concretas em muitas áreas internacionais.
Esta é, a meu ver, uma significativa virtualidade desta última resolução do CSNU sobre as Crianças em conflitos armados.
A sistematização por parte do Conselho de Segurança de um conjunto de recomendações constituiu-se como um meio de pressão política sobre os Estados e grupos de natureza armada, com o endosso do relatório do Secretário-Geral que nomeia vários países incumpridores, alguns dos quais foram obrigados a justificar-se perante o Conselho de Segurança, numa espécie de “tribunal político” a que não puderam escapar.
Pela primeira vez, o CSNU pede uma actualização regular ao SG sobre os Governos e entidades armadas que usam ou recrutam crianças soldados, independentemente de estarem ou não na agenda de trabalhos do Conselho.
A denúncia individualizada de todos os Estados e partes incumpridores era uma reivindicação antiga da UNICEF, para a qual só agora foi possível encontrar consenso.
O relatório do SG nomeou 23 partes em conflitos que estão na agenda do CS, mas o relatório aponta mais 10 outros Estados e grupos armados como Colômbia, Myanmar, Sudão, Uganda, Sri Lanka, bem como áreas de conflito recentenente terminados: Angola, Kosovo, Serra Leoa, Guiné-Bissau.
Esta é uma mensagem muito clara para quantos violam os direitos das crianças de que as suas acções não ficarão impunes e que serão responsabilizados por elas.
Esta resolução do CSNU tem outros aspectos: ela abre também caminho, com consequências práticas evidentes, para que os direitos das crianças sejam tomados em consideração, por exemplo, em todas as acções de manutenção de paz, nos códigos de conduta de diferentes estruturas dependentes, nos acordos de desarmamento, desmobilização e reintegração, etc.
Por outro lado, esta mesma decisão do CSNU acaba por apontar linhas directrizes às agências especializadas da ONU, que passam a ser obrigadas a ter questões específicas sobre crianças em conflito no âmbito dos seus programas de acção, o que não deixa de ser relevante no contexto da alocação de fundos para as acções a desenvolver.
Um ponto importante na parte preambular desta Resolução: é “notado” que a mobilização e alistamento de crianças com idade inferior a 15 anos ou o seu uso para participar activamente em hostilidades é classificado como crime de guerra pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, que recentemente entrou em vigor.
Confesso que, como tive o prazer de fazer a entrega formal ao SGNU do instrumento de ratificação do TPI por parte de Portugal, esta referência diz-me alguma coisa, até porque todos sabemos as atribulações que o TPI está a passar por virtude da posição americana.
O que não impediu, convém sublinhar, que o TPI haja sido “notado” nesta resolução do CSNU, logo com a aprovação dos EUA. Podia ser pior...
Esta palestra já vai longa e eu tenho que reconhecer que este é um tema árido e certo modo pesado.
Mas creio que uma audiência como esta não pode deixar de ser sensível a uma problemática que afecta muitos milhões de crianças, que se entrecruza com dimensões de saúde, de protecção social, de educação, de violência e exploração.
Todos temos por vezes a tentação de colocar geograficamente este tipo de questões em continentes à distância, nos terríveis conflitos interétnicos em África, nas tensões de guerrilha da América Latina, na exploração e tráfico em zonas problemáticas da Ásia.
O que se passou nos Balcãs prova que este tipo de questões está aqui à nossa porta, que o que se passa todos os dias no conflito israelo-palestiniano é quase um problema interno do mundo ocidental.
E, já agora, a “ocidentalização” do que se passou no Iraque conduz-nos a que todos nós tenhamos que ser, à medida da nossa consciência, co-responsáveis pelas consequências desse conflito na vida das crianças iraquianas.
É que o gesto mediático de dar àquele menino iraquiano sem braços e sem família, que todos vimos na televisão, um momentâneo acolhimento de luxo, não absolve, nem por um segundo, a acção que lhos retirou.
Muito obrigado pela vossa atenção.
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