A evolução do quadro internacional, nas últimas décadas, foi marcada por um indiscutível movimento de reforço de regras de observância colectiva, que estruturaram uma tendencial ordem política e jurídica de natureza multilateral, que se foi impondo como um facto quase natural na comunidade mundial.
Foi uma luta complexa, por se ter disputado num terreno marcado pela presença predominante de Estados soberanos, que suportam agendas de interesses nacionais frequentemente conflituais entre si. Além disso, tal esforço situou-se sempre, de forma mais ou menos aberta, em contracorrente com a afirmação de poderes de diferente natureza (políticos, económico-financeiros, militares ou demográficos), tentados a conseguir fazer prevalecer, em cada um dos subsistemas multilaterais entretanto emergentes, uma leitura própria da hierarquia desejável desses mesmos interesses. A competição entre sistemas ideológicos esteve também presente nesta conflitualidade.
A consciência pública de uma crescente interdependência dos Estados, associada à socialização de um difuso desejo de paz, justiça social, harmonia e bem-estar na ordem internacional, assumido como o único pano de fundo eticamente justificável para qualquer sistema colectivo, criou novas condições para o florescimento do multilateralismo, o qual, apesar disso, teve sempre de conviver com o escasso progresso obtido em áreas sectoriais que se revelaram menos passíveis de harmonização de agendas. O refúgio no particularismo continuou a afirmar-se um importante factor limitador e divisor na sociedade internacional.
Mas estamos a falar de uma ordem transnacional que tem como pretensão última abranger a comunidade geral dos Estados e projectar-se sobre eles de forma idêntica. As excepções impostas a essa ordem, em nome da não adesão, da expressão da força ou de uma mera assunção de realpolitik, não ousaram nunca alicerçar-se numa “teoria da excepção”, ou seja, numa tentativa de legitimação da inobservância, assente numa lógica rival de valores. Os comportamentos marginais a essa ordem, por mais passivamente aceites que hajam sido (e a essa aceitação variou, quase sempre, na razão directa do poder de quem os assumiu), nunca deixaram de ser julgados como marginais e desviantes.
O sistema foi criando um corpo institucional cada vez mais denso na substância e abrangente na adesão, tendo as Nações Unidas surgido como o principal centro natural de tutela e legitimação. Mas à medida que as Nações Unidas colocam mais dimensões multilaterais sob o seu “chapéu”, maior é a exigência de resultados e maiores as frustrações quando eles teimam em não aparecer. E estas últimas fazem, por vezes, esquecer a importância do que, entretanto, já se conseguiu.
O recurso a soluções de força, a imposição de regimes de sanções ou a simples condenação política foram, por ordem decrescente, modelos de constrangimento que a comunidade internacional assumiu, quando acordou sancionar a opção pelas vias exteriores às regras. O seu efeito variou, neste caso, na razão inversa da força do prevaricador.
Por outro lado, a circunstância do tecido multilateral se interligar de forma crescente, criou práticas de dependência e influência entre instituições que acabaram por se revelar como um factor de mútuo reforço (os regimes de condicionalidade em matéria de princípios democráticos e de Direitos Humanos são disso um bom exemplo).
O multilateralismo foi, assim, sobrevivendo com algum sucesso aos desafios com que se confrontou e foi adequando no tempo mecanismos de defesa – políticos, jurídicos e filosóficos – para suportar as tensões que sobre ele se faziam sentir.
De uma ordem política, para-jurídica e jurídica voltada essencialmente para o enquadramento de conflitos de poder inter-estatal e seus agentes, o sistema multilateral evoluiu, nas últimas décadas, para a tentativa de regulação transnacional de uma multiplicidade de áreas de actividade, muitas vezes abrangendo actores não-estatais, justificadas pela crescente interdependência que, num tempo mais recente, se corporizou na globalização. O reconhecimento da fragilidade da regulação bilateral, e mesmo regional, a isso obrigou e deu origem a um tecido cada vez mais complexo de instrumentos que tudo apontava serem a estrada óbvia do futuro das relações internacionais.
A ruptura
As tendências que se evidenciam nos últimos tempos – e que, convém lembrar, são já anteriores aos acontecimentos de Setembro de 2001 nos EUA – prefiguram, contudo, a emergência de uma nova ordem de valores no plano internacional. O que é novo nesse comportamento desviante não é tanto a circunstância dele ser assumido pela única potência global do tempo presente (os EUA sempre primaram pelo cultivo das “excepções” nas últimas décadas) mas é o facto desse mesmo comportamento se pretender constitutivo de uma nova filosofia das relações internacionais - ou melhor, do regresso à velha filosofia da preeminência absoluta da força na ordem global.
A grande questão estará em saber se se pretende criar fórmulas que façam, por quaisquer artes, com que essa filosofia seja compatível com os modelos institucionais internacionais vigentes (e com o princípio da igualdade soberana dos Estados em que eles se apoiam) ou se há a intenção de retirar consequências institucionais radicais da nova realidade.
No primeiro caso, estaremos perante a necessidade de readaptações estruturais para reforço da legitimidade dos formatos institucionais existentes – e a reforma da ONU e do respectivo Conselho de Segurança seriam das primeiras dessas tarefas. Sendo que os EUA sempre serão instrumentais para a viabilização de tal reforma, fica por apurar se vêm vantagens na respectiva concretização. É que se torna evidente que, se essa reforma vier a ter lugar, a legitimidade, a democraticidade e a consequente credibilidade do CSNU sairão reforçadas. Isso interessa aos EUA, sem a mudança prévia de alguns dos pressupostos em que assenta o funcionamento do Conselho de Segurança e da própria ONU ?
No segundo caso, estaremos em face de uma tentativa de uma inédita consagração institucional da singularidade da única verdadeira potência, com a aceitação da sua isenção das regras de observância comum (o caso do Tribunal Penal Internacional é o exemplo mais flagrante) ou da legitimação de algumas práticas (como a guerra preventiva que não decorra da legítima defesa). A prevalecer uma tentativa de imposição desta última opção, o risco de crise grave nas relações internacionais não é, por ora, mensurável, mas é francamente previsível.
Resta o status quo. Ele pressupõe que os países que aderem ao actual sistema multilateral continuem a tentar mantê-lo a todo o preço, mesmo que esse preço seja o progressivo distanciamento por parte de Washington. Os EUA serão, neste cenário, tentados a modelos de opt out e à promoção de acordos bilaterais que os excluam dos efeitos dos instrumentos colectivos. A degradação do ambiente de relações internacionais e a fragilização das instituições multilaterais (em especial a ONU) é, neste caso, uma possibilidade que terá de ser considerada seriamente.
Fora destas opções, ficam as soluções de compromisso.
Reino Unido – a “chave” do compromisso ?
No momento actual, o Reino Unido dispõe de uma posição internacional única: um perfil diplomático de cariz global, formalmente apoiado no usufruto da sua posição de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU (e de potência nuclear) somado, num importante plano prático que a História recente reforçou, à ancoragem transatlântica preferencial (a consabida special relationship). Sendo óbvio o interesse britânico em prolongar no tempo esta sua singularidade, importa saber que meios Londres tem ao seu dispor para a preservar.
A relação particular com os EUA é um dado de facto, que se revela estruturante enquanto fonte geradora de poder derivado no plano internacional, embora também criadora de uma inevitável dependência, o que induz alguma ambivalência na imagem do Reino Unido, em especial no plano europeu. Se essa relação é, sem dúvida, fautora de alguma influência, o mesmo se não pode dizer no tocante à sua tradução em termos de legitimidade política da acção do país no quadro mundial, quando esta última se afasta ou conflitua abertamente com aspectos essenciais do sistema multilateral – em especial com a ONU.
De facto, Londres não tem condições de assumir, como sua, a racionalidade afirmativa, sem limites aparentes, que os EUA parecem ultimamente tentados a retirar da sua “solidão” como única potência. Não o pode fazer, não apenas porque não é a detentora da força originária, mas também porque tem dificuldades em assumir doutrinariamente tal posição, dado que tal se confrontaria de forma chocante com a cultura de relações internacionais que alimentou e promoveu nas últimas décadas e à qual se vinculou noutras instâncias, como é o caso da União Europeia.
Assim, parece ser do interesse objectivo britânico tentar descortinar hipóteses de promover uma adaptação diacrónica do actual sistema multilateral internacional, que evite a respectiva ruptura e que, simultaneamente, (1) não aliene o seu relacionamento privilegiado com Washington, (2) relegitime a posição formal de que dispõe no contexto multilateral global (maxime no Conselho de Segurança), (3) sirva de factor potenciador da sua influência nacional em contextos regionais (União Europeia) e em quadros bilaterais que cuida em cultivar e, finalmente, (4) que preserve a preeminência formal do sistema multilateral, embora em moldes porventura adaptados.
Três questões ficam por esclarecer.
A primeira prende-se com a disponibilidade de Washington para vir a conceder ao seu parceiro preferido deste lado do Atlântico a margem mínima de manobra que lhe possibilite ser a alavanca para um modelo multilateral adaptado, embora preservado nas suas características essenciais.
Uma absoluta intransigência americana deixaria o Reino Unido numa situação dilemática terrível. Num registo oposto, se os EUA se associarem a alguma qualquer flexibilidade criativa proposta por Londres e passível de aceitação por terceiros (por impotência, realismo ou calculismo), o Reino Unido passaria a dispor de uma oportunidade soberana para reforçar a sua influência mundial – em particular, numa União Europeia onde vai passar a poder contar novos aliados na simpatia perante Washington – e, eventualmente, ajudar a “salvar” o essencial do sistema multilateral, tal como o conhecemos. Neste caso, que fique claro, não há uma terceira via.
A segunda questão, também vital, tem a ver com o modelo concreto de compromisso possível neste esforço de compatibilização de agendas aparentemente ainda muito distantes. Excluída, por absurda, a hipótese radical da consagração institucional formal do poder americano no contexto multilateral, a única via que parece explorável vai na linha de definição de alguns modelos derrogatórios de “auto-exclusão”. Trata-se, sem dúvida, fórmulas diluidoras do tecido multilateral, mas, paradoxalmente, são talvez as únicas que o podem fazer sobreviver limitadamente no actual contexto. Mas não se pode ignorar que têm como indesejável efeito colateral funcionarem como “caixa de Pandora” para as tentações de opting-out de outros, podendo representar um retrocesso considerável ao acervo da comunidade internacional.
E é neste último aspecto que se coloca a importante questão da aceitabilidade de um modelo deste tipo por parte de outros actores internacionais. Para além dos paladinos dos princípios e dos sofredores naturais das suas consequências, haverá que ter em primeira conta os Estados cujo poder formal pode ser afectado por este rearranjo. Estão neste caso a Rússia e a China, sendo que os acontecimentos dos últimos tempos não devem levar-nos a excluir que possam estar interessados, por pragmatismo, a querer também beneficiar de alguma flexibilidade de regras mundiais, particularmente se acompanhadas de algum direito informal de tutela de influência privilegiada sobre áreas que se situam nos seus cenários geo-estratégicos de proximidade. Esse pode ser também, curiosamente, o caso da França, tradicional jocker neste contexto, mas que poderá continuar a sua óbvia “aliança” com Londres na preservação da posição formal de que dispõe no Conselho de Segurança das Nações Unidas. O que sempre terá de se fazer em detrimento da União Europeia, como resulta óbvio.
O lugar de Portugal
Portugal é um país tardiamente convertido ao multilateralismo. Adoptou-o em vários contextos não excessivamente constrangentes (EFTA) ou de oportunidade (NATO), mas, durante muito tempo, beneficiou menos do que sofreu dos respectivos efeitos (sob o fogo da vaga anti-colonial na ONU e suas agências).
Após 1974, Portugal entendeu que a assunção de uma política de valores nas suas relações externas absolveria historicamente o país e ajudaria a corporizar legitimidade na imagem do novo regime democrático. O mea culpa face a Timor-Leste acabou por dar à diplomacia de Lisboa uma causa em matéria de Direitos Humanos, que teve efeitos sensíveis sobre a matriz global da sua cultura de relações externas. Algumas hesitações pontuais, com laivos de realpolitik face a práticas de poder em alguns PALOP, não chegaram para pôr em causa a prevalência desta atitude. Verdade seja que não ter interesses económicos relevantes na ordem externa representa sempre um contexto confortável para a afirmação de uma coerência de princípios.
A experiência de integração europeia, que sublinhou as vantagens da protecção de Bruxelas (o resultado final do Uruguay Round do GATT foi positivo) face aos efeitos negativos colaterais de alguns conflitos inter-regionais (as retaliações comerciais americanas face à União Europeia e alguns acordos comerciais inter-regionais também sob tutela da União penalizaram Portugal), provou sobejamente que o terreno multilateral é e será o principal espaço de defesa de um país que tem escassos argumentos de afirmação autónoma de poder no plano internacional. A circunstância de interesses portugueses estarem, por vezes, em contra-ciclo com as tendências maioritárias no seio de algumas estruturas multilaterais continua a representar um risco que não se pode ignorar mas, ao mesmo tempo, acaba por constituir um desafio para “puxar” pelo país, forçando-o a uma agenda de modernidade (as políticas de ambiente e de consumidores são disso bons exemplos).
Por outro lado, a consciência da crescente dificuldade em potenciar interesses próprios em contextos bilaterais mais relevantes (relações com a Espanha), por ausência de temas de contrapartida negocial significativa, e as experiências negativas vividas na exposição do país ao peso de poderes nacionais (negociações institucionais europeias), tudo isso vocaciona Portugal para se acolher à sombra do multilateralismo, regulado por terceiras entidades que são supostas velar por regras comuns e com mecanismos de tendencial equidade internacional.
O interesse português parece ir, assim, no sentido de reforçar e diversificar o actual sistema multilateral e de acompanhar em pleno as tendências que venham a gerar-se, nomeadamente no âmbito da UE, para o proteger no essencial da sua integridade.
Mas a fragilidade objectiva do país, até na leitura simbólica que cultiva do seu próprio lugar no mundo, também aponta – e seria ingenuidade escondê-lo – para que venha a acomodar-se, sem reacção significativa, se acaso a ordem internacional acabar por consagrar alguma “domesticação” do multilateralismo pela preeminência da razão da força.
(Publicado em "Janus 2004 - Anuário de Relações Externas", Lisboa, 2003)
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