1 de janeiro de 2004

Crise?

A consternação dos que vêem o último Conselho Europeu de Bruxelas como prenúncio de um tempo grave da vida da União não nos deve impressionar demasiado. Aos que apontam o pelourinho a espanhóis e polacos, como os culpados pelo adiar de um sonho bonito, deveremos responder com a máxima portuguesa de que “não há um teimoso sem outro”. Por tudo isso, não alinhamos com os que afirmam que a Europa está em crise.


O que ficou em crise foi uma despudorada operação de “take-over”, através de uma espécie de rolo compressor “politicamente correcto”, que tinha tornado numa revelação de racionalidade divina aquilo que mais não era do que uma mera proposta, formulada por um conjunto heteróctilo de mandatários sem mandato.


Entendamo-nos. O trabalho da Convenção teve algumas inegáveis virtualidades, nomeadamente ao propor integrar a Carta dos Direitos Fundamentais no novo texto, ao aumentar as decisões em que o Conselho e o Parlamento Europeu decidem por maioria qualificada, ao reforçar o papel externo da UE, com a instituição de um MNE europeu, ao dar personalidade jurídica à UE, ao reforçar o controlo da subsidiariedade, etc.


Mas, por um golpe de mágica, assente numa lógica que é facilmente desmontável, a Convenção entendeu, na passada, ver-se livre das presidências rotativas (criando um Presidente do Conselho Europeu e uma “trindade” em conflitualidade óbvia), de uma Comissão com expressão de todas as sensibilidades nacionais (e cujos poderes são reduzidos) e, o mais importante, descobriu a imperatividade do método da “dupla maioria” (com metade dos Estados e 60% da população – e porque não 58% ou 61% ou 63% ?) como a única chave legítima para as decisões por maioria qualificada.


O que é fantástico é que muitos dos que, ainda há meses, lutaram com afinco pela ratificação do Tratado de Nice, dos que o aceitaram como “acquis” para as novas adesões à União, descobrem agora os malefícios de tal texto e que os equilíbrios que projectava eram totalmente errados. Tudo isto sem que o Tratado de Nice tivesse sequer a oportunidade de ser posto à prova.


A Europa tem um Tratado em vigor cujo processo decisório está previsto que dure até 2009 (como o projecto da Convenção aceitava). Porquê esta pressa ? Que autoridade têm os que afirmam que este modelo de decisão é “bloqueante” e incapaz de comportar o alargamento ? Há dois anos era um excelente Tratado (Chirac dixit) e agora já não serve, sem sequer ter sido utilizado ?! Porque não permitem que comece a funcionar e que, com base na constatação prática da sua eventual ineficiência, se proceda então às reformas tidas por necessárias ? Talvez porque essa realidade viesse a provar desnecessário dar o poder, de mão beijada, àqueles que conseguiram impor “demografia” como sinónimo de “democracia” ? Àqueles que pretendem que, num novo processo decisório, o poder conjugado da Alemanha e da França equivalha ao de 19 restantes países somados ?


2004 é um ano decisivo para a Europa, para testar os que querem ou não que o alargamento seja um sucesso. Para tal, veremos quem está disposto a mostrar a sua generosidade e a sua vontade de ajudar os novos Estados, “abrindo os cordões à bolsa” no quadro das novas Perspectivas Financeiras. É que as contribuições para o orçamento comunitário são a outra face do Mercado Único e de quem mais o aproveita.


Crise na Europa ? Só para os que têm o seu poder ameaçado.

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