1 de dezembro de 2008

A independência de Portugal hoje

Há cerca de 40 anos, numa aula no então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, cometi a ousadia de perguntar ao professor Adriano Moreira se, no prazo de algumas décadas, ele visualizava a possibilidade de Angola e Moçambique virem a ser países independentes. A pergunta estava longe de ser inocente e a almofada temporal que eu nela usava era apenas uma forma de adocicar uma questão que sabia ser altamente provocatória. O professor Adriano Moreira foi, como sempre, muito inteligente na resposta e disse-me que, se eu fosse capaz de definir o que o conceito de independência poderia significar, a essas décadas de distância, ele teria o maior dos gostos de me dar a sua opinião. Eu não sabia – ou não fui capaz de descortinar uma contra-resposta rápida – e a coisa ficou por aí.

O aspecto hábil da resposta escondia, contudo, um elemento muito verdadeiro – a questão do conteúdo da ideia de independência. E isso ajuda-me a introduzir o tema que gostaria de lhes trazer aqui hoje.
Faz hoje 368 anos, um grupo de nobres portugueses, cansados do modo como o corte madrilena tratava a aristocracia lusitana no quadro da nobreza ibérica, e aproveitando a atenção prioritária que Castela dedicava então a dissidências na Catalunha, desencadeou um golpe de Estado e colocou um dos seus no poder. Alguns historiadores pouco propensos à glorificação dos actos colocam ênfase menos no patriotismo e mais no sentido prático dos nobres envolvidos na conjura, que se sentiriam prejudicados nos seus interesses pela lógica de distribuição de poder por parte de Madrid. Quaisquer que tenham sido as motivações do acto, a verdade é que o momento terá sido muito bem medido, em termos de avaliação da relação de forças, o que é provado pelo facto de, não obstante tentativas posteriores de retomada de controlo por parte de Castela, ter sido possível assegurar, em permanência, a independência formal de Portugal a partir de então, pondo fim a um período de 60 anos de tutela espanhola.

Portugal era um país independente desde o século XII e esse é um facto que, associado à quase constância histórica das nossas fronteiras, nos traz um grande orgulho e que sempre afirmamos aos estrangeiros com alguma vaidade. Mas se olharmos para História com alguma atenção – e eu não sou um historiador, quero deixar bem claro –, torna-se evidente que a independência de que Portugal desfrutou teve características que variaram muito ao longo do tempo e das circunstâncias.

Independências

A independência que Afonso Henriques assegurou junto do Papa é muito diferente da independência que dom João tinha perante os ingleses, quando veio para o Brasil há 200 anos, como esta é diferente da que hoje possuímos no quadro da União Europeia.

Por isso, vale a pena interrogarmo-nos: a independência é um valor em si ou é um atributo meramente instrumental? O que é que liga, na História, estas diferentes independências? E, já agora, Portugal é hoje um país independente?

No plano dos princípios – ou mesmo da etimologia – ser independente é não ser dependente. Mas será que os Estados Unidos não são altamente dependentes do petróleo do Médio Oriente? No plano mais formal, poderemos dizer que é independente um país que tem possibilidade de afirmar a sua identidade política perante outros e que, para manutenção dessa identidade, não precisa da tutela alheia. Daí que talvez valha a pena perguntar: a República turca de Chipre Norte é um Estado independente, quando apenas a Turquia a reconhece? A Ossétia do Sul e a Abcásia são países independentes, quando necessitam da tutela de Moscovo para se manterem formalmente como tal? Aliás, por aquelas bandas, lembram-se certamente da famosa Comunidade de Estados Independentes (CEI), criada efemeramente após a implosão da União Soviética. A maioria desses Estados achou que tinha de ser mesmo independente e rapidamente esqueceu tal Comunidade. E pode ser-se independente dentro de uma Comunidade? Lá iremos…

Um interessante caso de transição é o Kosovo, que foi uma província da Sérvia até que a Comunidade internacional o colocou numa espécie de limbo, quase semelhante a outros Estados e regiões sob tutela que surgiram no século XX. O Kosovo declarou a sua independência e esta tem vindo a ser reconhecida, quase a conta-gotas, precisamente pela mesma Comunidade internacional que havia decidido que o seu estatuto futuro teria de ser decidido de outra forma.

No passado, o reconhecimento da independência dos Estados começou por ser papal, depois passou, na prática, a ser feito pelos outros Estados, em especial pelos mais poderosos. Hoje, o reconhecimento deriva dessa entidade difusa que é a Comunidade internacional, o que significa um misto do reconhecimento pelos restantes Estados e pela estrutura que os congrega no plano multilateral – as Nações Unidas. Mas tendo sido embaixador junto das Nações Unidas, posso assegurar-lhes que por lá andam muitos países, com direito de voto na Assembleia Geral igual ao dos Estados Unidos ou da China, que de independentes só têm o nome…

E Portugal – para voltarmos ao âmago desta conversa – é hoje um país independente? Portugal perdeu independência quando perdeu o seu império colonial? Portugal é menos independente desde que é membro da União Europeia? E a França? E a Alemanha? São menos independentes desde que fazem parte da União Europeia?

O conceito de independência traz consigo a questão simbólica do reconhecimento do Estado. Sem querer enveredar pelo Direito Internacional, mas exclusivamente pela dimensão cultural e política da questão, eu diria que um Estado independente é aquele cuja população vive sob a mesma bandeira e numa mesma unidade política – internamente gerida da forma que quiser. Muitas vezes, como é o nosso caso, essa independência acarreta o peso de uma longa Historia, de uma identidade que favorece o auto-reconhecimento colectivo dos seus cidadãos, tendo uma língua e cultura comuns. Portugal está perfeito nesse retrato, como perfeita estaria a nação curda se a deixassem organizar como Estado – diga-se de passagem.

Somos independentes?

Mas somos, de facto, independentes? Algum país o será?

Economicamente, estamos longe de o ser. Dependemos do investimento estrangeiro, dos mercados externos para os nossos produtos, da energia estrangeira e dos produtos importados para o nosso consumo e equipamento. Estamos hoje na moeda única, não podemos fazer desvalorizações para promover exportações, não temos autonomia para decidir o nível das taxas de juros praticadas pelos nossos bancos. Mas o que teria acontecido a Portugal se, perante o recente deslizar das contas públicas para financiar o bem-estar, não estivéssemos protegidos pela protecção do “euro”?

Em matéria de defesa, se fôssemos alvo de um ataque externo, que hipóteses teríamos de reagir? As mesmas que tivemos na Índia. Isto é, nenhumas. E politicamente? Integrados no bloco ocidental, membros da NATO e da União Europeia, o que aconteceria a Portugal se acaso decidisse apoiar causas internacionais impopulares?

Mas, por outro lado, como teria sido possível promover a causa timorense, bloqueando, por anos, os acordos entre a União Europeia e a Asean, para isolar a Indonésia, se não estivéssemos nas Comunidades Europeias? E que hipóteses teríamos de ser os promotores da Parceria Estratégica entre a União Europeia e o Brasil e, dessa forma, mostrarmos o nosso peso na reorientação da política exterior europeia?

Confesso que, com o decorrer dos anos, e não obstante ter um grande orgulho histórico nas raízes da nossa independência – e esta ser, provavelmente, das poucas coisas pela qual me vejo a arriscar a vida – associo-a hoje a uma visão bastante mais pragmática. A independência é-nos útil para aculturar um projecto comum, assente em alguns pontos de consenso nacional e para garantir a preservação daquilo que, em cada momento, são os interesses que consensualmente entendemos dever defender.

Os interesses portugueses

Mas os interesses não são nem foram sempre os mesmos. Num passado não muito distante, esses interesses eram identificados com a preservação das colónias, das possessões ultramarinas ou do ultramar – só para utilizar três formulações que o regime caído em 25 de Abril de 1974 usou em momentos distintos. Ora o império foi-se com os ventos da História mas a nossa sabedoria – a sabedoria do nosso regime democrático português, sublinhe-se – foi capaz, depois de um longo e laborioso processo, de recuperar os traumas provocados por uma descolonização que só teve de ser apressada porque foi tardia. E é importante que se diga – porque alguns teimam em esquecê-lo – que a política colonial portuguesa, desde a Índia aos três teatros de guerra que tivemos em África no século XX, nos criou um ambiente de má-vontade internacional que demorou décadas a superar.

Hoje as coisas evoluíram, como evoluíram os protagonistas desses conflitos. Estamos com os países africanos que falam português a trabalhar no quadro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, em temas em que o Brasil está cada vez mais presente. Mas alguém terá a coragem para dizer que houve alguma virtualidade em ter mantido uma guerra de 13 anos em Angola ou de 10 em Moçambique e na Guiné? A nossa independência passava por aí? Ou não passa muito mais pelo entendimento fraterno que hoje estamos a desenvolver e que poderia ter começado a gerar-se mais cedo, se uma solução negociada tivesse sido assumida como possível, desde a década de 50?

Sei que este é um terreno polémico, mas há que dizer que os interesses de Portugal, como nação independente, assentam hoje nesta magnífica capacidade de nos termos sabido reconciliar connosco mesmos, neste sentido de descoberta de um novo destino, que pode não ser tão glorioso e heróico à luz das epopeias históricas, mas que é singelamente útil a todos nós. Esse destino é saber aproveitar a democracia, a liberdade, o usufruto da nossa cultura e a nossa inata capacidade para nos relacionarmos com todos.

O mundo multilateral

Perguntar-se-ão alguns se, ao entregarmos alguma gestão do quotidiano aos braços das instituições internacionais em que participamos, não estará a nossa independência em risco. Em minha opinião, o actual quadro de inserção de Portugal na ordem internacional, podendo formalmente aparecer como beliscando um tradicional conceito de independência, e mesmo como gerador de novas dependências, é aquele que melhor serve os interesses do nosso país. Senão vejamos alguns exemplos.

Em matéria de defesa e segurança, e tendo em atenção a nossa insuperável debilidade, a pertença a uma organização de defesa colectiva – como é a NATO – que tem no seu cerne a preeminência dos interesses dos Estados que a compõem e uma cultura de entendimento em torno de valores comuns, é a nossa única protecção eficaz no mundo de hoje. Independência no seio da NATO impõe, contudo, que saibamos posicionar-nos de forma a preservar os paradigmas fundamentais que fizeram o sucesso da organização, adaptando-os às novas realidades em termos de ameaças, mas evitando tentações de extrapolação de objectivos que podem pôr em causa a sua própria identidade.

Numa outra área, como é a segurança pública, atento o carácter transversal da criminalidade e das novas ameaças, julgo evidente que só uma participação activa e cooperante num quadro internacional alargado tem condições de nos dar o mínimo de capacidade para a preservação dos nossos interesses. Mas ser independente no quadro dessa política é, da mesma forma, ter a coragem de carrear para o debate europeu as temáticas da luta contra a intolerância, o racismo e a xenofobia, a necessidade de respeito pelo Direitos Humanos, de atenção às minorias, de defesa de políticas migratórias sãs e solidárias.

Em matéria de integração política, económica e social, por determinantes geográficas e económicas, a pertença à União Europeia é a melhor garantia de que os nossos cidadãos têm o usufruto de um espaço comum para a sua realização, marcado por uma cultura democrática, de defesa de liberdades e como fonte de progresso e desenvolvimento. A Europa comunitária é um pólo de estabilidade no mundo mas, no seu seio, devemos sempre lutar pela adopção de uma visão aberta e cooperativa com áreas like-minded, como é geralmente o caso dos Estados Unidos e da América Latina.

Por razões óbvias, e para um país como Portugal, ter uma voz independente na definição da política externa da União Europeia significa também, por exemplo, lutar para definir uma estratégia solidária para a África e para a América Latina, ajudar a desenhar rotas para a paz e segurança nas várias regiões do mundo e garantir que a Europa se mantém na linha da frente dos processos multilaterais de ajuda ao desenvolvimento.

Em termos da promoção de valores à escala global, e para além de trabalhar para a respectiva aculturação no quadro da União Europeia, importa destacar que Portugal dispõe hoje de uma posição altamente confortável no quadro das Nações Unidas. Aí somos vistos como um poder moderado e moderador, com importantes laços com África, com um registo muito positivo de diálogo com o mundo árabe, com um excelente relacionamento com a América Latina, com um património histórico de prestígio em muitos lugares do globo. Quando fui embaixador na ONU, pude testemunhar esse imenso capital de simpatia de que o Portugal democrático hoje dispõe no quadro internacional, não obstante termos meios económicos muito limitados para sustentar de forma significativa políticas activas de cooperação e ajuda ao desenvolvimento. Portugal é visto, no quadro mundial hoje, um soft power que – acreditem! – joga numa divisão acima daquela que o seu peso demográfico e económico justificariam, com uma capacidade de interlocução muito superior a países mais ricos da nossa dimensão.
Será que isto não reforça a nossa independência? Ou será que éramos mais independentes quando vivíamos acantonados pelo mundo nas organizações internacionais e “orgulhosamente sós” contra a História?

Por que razão isso acontece hoje? Isso é produto de estarmos fixados no imaginário do mundo como um país com uma longa história, com interesses materiais limitados, mas com uma projecção cultural muito interessante – que a expansão da língua portuguesa tenderá sempre a potenciar. O grande desafio que se nos coloca é sabermos utilizar este poder cultural e humano que fomos criando, não obstantes alguns recuos históricos, para, em conjunto com aqueles Estados e povos que nos acompanham nos mesmos terrenos, construir uma mais alargada identidade colectiva à escala global. E o Brasil é, sem a menor dúvida, o parceiro nº 1 para essa nova aventura. Essa é, nos dias de hoje, a chave para afirmar um voz portuguesa própria no cenário internacional. À luz dos interesses que, nos dias de hoje, nos compete defender, essa é a chave da nossa verdadeira independência.

Texto baseado na intervenção proferida no Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, em 1 de dezembro de 2008

2 comentários:

  1. Ás vezes sentimos que alguém é sempre muito mais capaz de transmitir o que pensamos com a clareza que se impõe nos assuntos sérios em que coexistimos por inerência.

    Mas o texto vai mais longe traz-nos a possibilidade de participar indelevelmente na escolha através do assentimento e da rendição à solidez dos argumentos.

    Gostei muito.

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