O debate em torno das virtualidades do novo Acordo Ortográfico, que em Portugal mobilizou diversos sectores, teve uma expressão diferente na opinião pública brasileira. Para a maioria dentre os poucos que, no Brasil, se pronunciaram sobre o Acordo, o novo normativo linguístico é irrelevante, por entenderem que a língua que se fala do outro lado do Atlântico dificilmente se sentirá limitada na sua própria dinâmica.
Este sentimento coloca-nos o problema de saber se, ao enveredarmos por introduzir, na escrita em Portugal, as alterações decorrentes do Acordo, não estaremos a dar um passo desnecessário, dado que o Brasil pode rapidamente vir a colocar-se para além de tudo quanto agora possamos fazer para nos aproximarmos dele em matéria de grafia.
Julgo que ninguém terá uma resposta satisfatória para esta angústia, mas o debate só ganhará se reflectirmos um pouco mais sobre o modo como o Brasil olha hoje para a língua portuguesa e, em especial, sobre como ela se insere na sua matriz cultural.
A independência do Brasil, em 1822, não significou a descolonização das mentalidades do novo país. Os padrões e os gostos culturais europeus continuaram dominantes, a linguagem escrita e falada pelos sectores sociais elevados permaneceu muito próxima da de Portugal, com a sua adopção a manter-se como um factor de prestígio para quantos aspiravam à ascensão dentro da nova ordem nacional.
Este estado de coisas começou a mudar já no século XX. Em 1911, e no tocante à língua, Portugal introduziu unilateralmente uma reforma ortográfica, assumindo-se como liderança na evolução do padrão linguístico do Português. A partir dos anos 20, impulsionada pelo seu movimento modernista, começou a gerar-se no Brasil uma revolta contra a prevalência da cultura de origem europeia, numa acção favorável à identificação de uma “brasilidade” onde pudessem já estar representados sectores marginalizados da sociedade, cujas expressões culturais o Brasil-colónia tinha abafado desde sempre –negros, índios e populações rurais miscigenadas. Alguns intelectuais, em especial marcados pelo marxismo, deram substância ideológica a este esforço de “descolonização cultural”, a qual não raramente acabou por ter laivos de alguma lusofobia.
Neste ambiente de nacionalismo cultural, o Português falado no Brasil não passou impune. Alguma escrita literária abriu-se a um vocabulário que ia já muito para além do “Português de Coimbra”, para uma maior absorção escrita de expressões da oralidade, a uma mais alargada representação da diversidade linguística nacional, quer nativa, quer induzida pelas novas levas de imigração – que começavam a ter consequências bem audíveis na própria evolução fonética do Português brasileiro.
Nesse contexto, não será de estranhar que a sociedade política brasileira se sentisse motivada, já nos anos 40, a não dar sequência legal àquilo que os seus académicos tentaram então acordar com Lisboa, como forma de reaproximar o Português de ambos os lados do Atlântico. É que, para muitos brasileiros, o Português contemporâneo confunde-se com a língua que escrevem e falam, pelo que olham as variantes de Portugal e do resto do mundo lusófono como curiosas e bizarras derivas, seja no “sotaque português”, seja na “estranha” linguagem escrita que é utilizada fora do seu país. O padrão seguido pelo Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo, criado há poucos anos, é bem demonstrativo dessa completa apropriação do Português pela norma brasileira. Alguns, mais radicais, vão mesmo mais longe e propõem que se passe a utilizar a expressão “Brasileiro” para se qualificar o Português que 194 milhões de pessoas falam no Brasil.
É este o cenário de fundo que nunca pode ser perdido de vista quando ponderamos o interesse em se utilizar o Acordo Ortográfico como derradeiro instrumento estratégico para travar uma ainda maior divergência futura entre as normas do Português escrito contemporâneo. O novo Acordo pode não ser suficiente para evitar, em absoluto, esse afastamento, mas é conforme com a particular responsabilidade que compete a Portugal em evitar que ele se torne cada vez maior.
Publicado no nº 300 da revista "Tempo Livre", do INATEL
Este sentimento coloca-nos o problema de saber se, ao enveredarmos por introduzir, na escrita em Portugal, as alterações decorrentes do Acordo, não estaremos a dar um passo desnecessário, dado que o Brasil pode rapidamente vir a colocar-se para além de tudo quanto agora possamos fazer para nos aproximarmos dele em matéria de grafia.
Julgo que ninguém terá uma resposta satisfatória para esta angústia, mas o debate só ganhará se reflectirmos um pouco mais sobre o modo como o Brasil olha hoje para a língua portuguesa e, em especial, sobre como ela se insere na sua matriz cultural.
A independência do Brasil, em 1822, não significou a descolonização das mentalidades do novo país. Os padrões e os gostos culturais europeus continuaram dominantes, a linguagem escrita e falada pelos sectores sociais elevados permaneceu muito próxima da de Portugal, com a sua adopção a manter-se como um factor de prestígio para quantos aspiravam à ascensão dentro da nova ordem nacional.
Este estado de coisas começou a mudar já no século XX. Em 1911, e no tocante à língua, Portugal introduziu unilateralmente uma reforma ortográfica, assumindo-se como liderança na evolução do padrão linguístico do Português. A partir dos anos 20, impulsionada pelo seu movimento modernista, começou a gerar-se no Brasil uma revolta contra a prevalência da cultura de origem europeia, numa acção favorável à identificação de uma “brasilidade” onde pudessem já estar representados sectores marginalizados da sociedade, cujas expressões culturais o Brasil-colónia tinha abafado desde sempre –negros, índios e populações rurais miscigenadas. Alguns intelectuais, em especial marcados pelo marxismo, deram substância ideológica a este esforço de “descolonização cultural”, a qual não raramente acabou por ter laivos de alguma lusofobia.
Neste ambiente de nacionalismo cultural, o Português falado no Brasil não passou impune. Alguma escrita literária abriu-se a um vocabulário que ia já muito para além do “Português de Coimbra”, para uma maior absorção escrita de expressões da oralidade, a uma mais alargada representação da diversidade linguística nacional, quer nativa, quer induzida pelas novas levas de imigração – que começavam a ter consequências bem audíveis na própria evolução fonética do Português brasileiro.
Nesse contexto, não será de estranhar que a sociedade política brasileira se sentisse motivada, já nos anos 40, a não dar sequência legal àquilo que os seus académicos tentaram então acordar com Lisboa, como forma de reaproximar o Português de ambos os lados do Atlântico. É que, para muitos brasileiros, o Português contemporâneo confunde-se com a língua que escrevem e falam, pelo que olham as variantes de Portugal e do resto do mundo lusófono como curiosas e bizarras derivas, seja no “sotaque português”, seja na “estranha” linguagem escrita que é utilizada fora do seu país. O padrão seguido pelo Museu da Língua Portuguesa, em S. Paulo, criado há poucos anos, é bem demonstrativo dessa completa apropriação do Português pela norma brasileira. Alguns, mais radicais, vão mesmo mais longe e propõem que se passe a utilizar a expressão “Brasileiro” para se qualificar o Português que 194 milhões de pessoas falam no Brasil.
É este o cenário de fundo que nunca pode ser perdido de vista quando ponderamos o interesse em se utilizar o Acordo Ortográfico como derradeiro instrumento estratégico para travar uma ainda maior divergência futura entre as normas do Português escrito contemporâneo. O novo Acordo pode não ser suficiente para evitar, em absoluto, esse afastamento, mas é conforme com a particular responsabilidade que compete a Portugal em evitar que ele se torne cada vez maior.
Publicado no nº 300 da revista "Tempo Livre", do INATEL
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