A diplomacia é uma técnica cujas regras básicas constam dos manuais. Com o tempo, ganha-se acesso a exemplos que nos permitem assentar, na prática, muito de quanto se aprendeu na teoria. Com a experiência, vamos decantando uma dimensão mais pessoal, avaliando a nossa própria capacidade de reacção perante os acontecimentos, o nosso comportamento em situações de tensão, o modo como interagimos com os outros, quer com os que connosco colaboram, quer com aqueles com quem temos de regular interesses que nos compete defender. Dir-se-ia que, cumpridos todos esses passos e maturada essa linha de experiência, um diplomata está formado, preparado para reagir no quadro de dificuldades expectáveis ao longo da sua carreira. A vida prova-nos, porém, que os factos são sempre muito mais imaginativos do que os homens.
Os factos que envolveram a vida de Aristides Sousa Mendes são, em si mesmos, a prova provada de que a vida diplomática (de que a dimensão consular era, ao tempo, um capítulo muito importante) acarreta consigo um conjunto de exigências que vão muito para além das possíveis lições académicas, das regras da rotina administrativa e mesmo de alguns possíveis exemplos de similitude histórica. E esses factos também nos mostram como é fácil virem a ocorrer, sem uma automática solução bebida nos manuais, graves contradições que se revelam insanáveis entre algumas dessas mesmas dimensões. E ensinam-nos que a superação de tais contradições é feita, quase sempre, através de rupturas e de choques, de que algo ou alguém sairá forçosamente ferido.
O livro que Paulo Martins agora nos apresenta é um fresco sobre um tempo muito particular no Portugal de meados do século XX e do papel trágico, nesse período complexo, de um homem só, agindo sob a pressão da História e dos apelos da sua consciência, que teve a coragem de escapar ao álibi da disciplina burocrática para colocar a sua vida ao serviço de uma opção ética.
Mas este livro, naquilo que nos mostra e naquilo que nos induz a entender, é também, em si mesmo, um retrato escrito e julgador do próprio Portugal desse tempo, que ficou marcado por uma matriz autoritária e que jogou diplomaticamente nos interstícios dos grandes conflitos, tentando passar despercebido no tabuleiro do “great game” europeu, adoptando uma espécie de estratégia de equívocos que disfarçava a sua fragilidade.
Porque o destino do país passou a identificar-se com um mundo que se assemelhava a um teatro de sombras, encenado pela habilidade manhosa de Oliveira Salazar, que lhe tentava dar o ar dignificado de uma opção política, a lógica dos princípios rapidamente cedeu lugar à cínica lógica de fins. A decisão por essa opção é, porventura, o retrato mais cruel, mas também mais verdadeiro, de um regime cuja ortodoxia assentava mais na desesperada procura da sua sobrevivência do que no sério cultivo de valores que só cinicamente dizia espelhar. Nada, aliás, que não viesse na decorrência de um certo declínio político e moral do Portugal de então.
Portugal viveu o século XX como uma espécie de espelho turvo de muito daquilo que foram as grandes tragédias europeias, o resultado das contradições entre os nacionalismos e a feroz luta em torno das heranças coloniais. Sem uma verdadeira revolução burguesa que lhe criasse uma solução regeneradora, face ao sentimento de finis patriae que marcou todo o seu século XIX, com a pressentida decadência económica que o fim da presença no Brasil prenunciou, o país deixou o seu destino internacional depender muito da tutela estrangeira, neste caso britânica. Esse seu tropismo estratégico nem sequer aprendeu então as frias lições do episódio do “mapa cor-de-rosa”, persistindo na ilusão de que essa era uma linha eficaz de defesa contra as ambições que sobre si se projectavam – tanto na Europa como nas colónias.
Com a doentia emergência dos autoritarismos por toda o continente europeu, com uma República parlamentar que vivia com uma identidade ainda em gestação, e que era uma espécie de regime vanguardista de extracção e ambição urbanas a tentar firmar-se num país rural e retrógrado, o velho Portugal do “antigo regime” divisou, então, a sua derradeira oportunidade de retorno à cena da História.
O golpe militar de 28 de Maio de 1926 foi esse momento. A face civil dessa ditadura musculada, Oliveira Salazar, construiu então uma máquina política que arrastou consigo, num mundo de equívocos bem geridos, republicanos descontentes e monárquicos iludidos, nostálgicos do império em crise aliados a algumas figuras seduzidas pelas ideologias assentes no culto radical da tradição. Era uma aliança complexa, que o carácter do líder soube conservar, através de algumas ilusões bem desenhadas e do sublinhar de certas bases programáticas que eram afirmadas como comuns, numa linha doutrinária a que alguns, ainda hoje e surpreendentemente, procuram conferir a dignidade de uma matriz ideológica nacional. Outros, nunca viram essa resultante teórica como sendo mais do que uma adaptação simplista do reaccionarismo europeu reinante a um modelo caseiro, retrógrado e historicamente auto-contemplativo.
Mas não há como negar que muitos, no Portugal de então, se reviram inicialmente naquilo que viria a ser o “Estado Novo”, que foi tido como um movimento de recuperação essencial num país em crise, uma espécie de regeneração por um choque de autoridade, uma etapa, que para alguns deveria ser apenas episódica, mas vista como indispensável para a salvação da pátria em risco. Como quase sempre acontece nos modelos sem controlo democrático, quem entendeu correr o risco da experiência autoritária pagou com a sua continuidade no tempo. Que foram 40 anos.
Aristides Sousa Mendes estava longe de ser um opositor ao salazarismo, a sua família tinha dado mesmo um chefe da diplomacia, se bem que por um curto período, ao regime vigente. O diplomata que o destino vai colocar na História como Cônsul em Bordéus era um conservador, um homem de família e de princípios cristãos tradicionais – talvez o paradigma daquilo que o regime tinha por seus apoiantes mais óbvios.
Podemos mesmo imaginar hoje que Sousa Mendes terá aprovado o método drástrico do saneamento das contas públicas que o “lente” de Coimbra levou a cabo, apoiado nas armas dos tenentes do 28 de Maio, bem como a implantação da Constituição corporativa de 1933, que destilava formalmente os valores morais onde se revia um certo Portugal, como ele tradicionalista e católico.
Podemos também presumir, sem esforço, porque se tratava de um patriota com sentido da História, que Aristides Sousa Mendes tinha igualmente um carinho pela gesta ultramarina e que entendia, e apoiava, uma acção diplomática que era apresentada como destinada a preservar o Portugal pluri-continental, então geralmente considerado como uma vocação inalienável do próprio destino do país, enquanto entidade internacional independente.
Tudo isto, todo este perfil conservador de Aristides Sousa Mendes, só torna mais heróica a sua posterior opção de ruptura, não com um regime que ele nunca terá contestado, mas com uma filosofia comportamental que esse mesmo regime destilou como doutrina estratégica de oportunidade.
O fabrico da acção diplomática portuguesa, destinado a sustentar uma ambiguidade posicional no quadro europeu, que Salazar levou a cabo com fria maestria, passou a acarretar consigo a necessidade da adopção de algumas opções que vieram a colidir com princípios que pessoas como Aristides Sousa Mendes não estavam dispostas a sacrificar no altar do pragmatismo.
E é aqui que regressamos ao início deste texto, à acção diplomática individual e às suas referências. Sousa Mendes tinha, no seu quadro de conhecimentos e instruções, as regras certas para poder reagir, de acordo com os “livros”, perante a complexa situação com que se confrontava, com a imensidão de pedidos de vistos que lhe era feita. Esse receituário burocrático não deixava dúvidas sobre o que lhe era solicitado pelas suas autoridades que fizesse. E, mais ainda, o carácter imperativo das instruções específicas entretanto chegadas não dava margens para interpretações equívocas ou subjectivas.
O Portugal de Salazar havia optado, perante os medos que o atravessavam, por um comportamento em que a secundarização dos interesses vitais de algumas dezenas ou centenas de milhar de estrangeiros, em fuga e vítimas de perseguição, passou a ser a regra.
E foi aí que as águas se dividiram para Sousa Mendes.
Esse é, aliás, um tempo em que a diplomacia pode, ou não, optar por se deixar subordinar por um quadro de princípios, que vai muito para além da transitoriedade das leis e, ainda mais, da sua regulamentação e aplicação seca e desapiedada.
Aristides Sousa Mendes sofreu o choque emocional de uma situação de tragédia e, num instante que imaginamos deva ter sido de grande angústia, decidiu colocar-se do lado do que entendeu ser uma leitura ética, a qual, em face da sua formação humanista, assumia uma preeminência perante a fria lógica subjacente às ordens que recebia.
Para um diplomata, como para um qualquer outro profissional cuja acção se cruze com dimensões humanas e morais de grande importância, este tempo de tensão e de risco é, do mesmo modo, o momento da verdade. A verdade perante si próprio, perante aquilo em que se acredita, na luta interior resultante do conflito entre a ordem e a ética.
O caso de Aristides Sousa Mendes é uma história notável que acarreta importantes lições de ética deontógica, a qual nos coloca perante a necessidade de ver o mundo através do prisma dos princípios, subalternizando pontualmente a mera obediência burocrática, que é o refúgio triste onde muitos atenuam a cobardia de uma decisão que pressentem errada.
O verdadeiro serviço público, de que Sousa Mendes era uma simples peça, deve ser, em si mesmo, portador de uma ética de comportamento que tem de estar acima da sua utilização oportunista pelos titulares episódicos do aparelho político. As ordens ilegítimas não merecem obediência, devem merecer resistência e oposição. Os grandes servidores públicos medem-se pelo modo como sabem interpretar o sentido do dever e do interesse colectivo, não devendo ser premiados pela acéfala aceitação de toda e qualquer instrução que recebem, por mais elaborada ou elevada que ela surja.
Na história da diplomacia portuguesa, Aristides Sousa Mendes é um caso ímpar. Porém, tenho a sensação de que o Ministério dos Negócios Estrangeiros português poderá não ter ainda interiorizado o quanto o seu exemplo lhe pode vir a servir como valor referencial, como atitude a ponderar e a estudar, ao serviço de uma diplomacia de princípios que, de acordo com os grandes momento da nossa História, sempre deve orientar a acção externa de um país como Portugal.
Paulo Martins, ao ligar neste livro a figura de Sousa Mendes a outros vultos do humanismo, os quais, cada um a seu modo, se destacaram ao serviço dos povos e das instituições que representaram, em momentos complexos mas fundamentais da vida contemporânea, suscita-nos um debate muito interessante sobre a dimensão histórica do próprio serviço público.
O conhecimento que Paulo Martins tem do caso de Aristides de Sousa Mendes, bem como o retrato sócio-histórico que, a seu propósito, faz do Portugal de então, representa uma muito louvável contribuição para uma reflexão necessária sobre a nossa própria contemporaneidade. Sobre o que somos como povo e o que queremos ser como destino.
Prefácio a um livro de Paulo Martins sobre Aristides Sousa Mendes
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